Uma  bem  nutrida  plêiade  de  autores,  desde  Nietzsche até Adorno, passando por Heidegger, Marcuse  e  Benjamin,  não  se  cansaram   de  anunciar  ao  logo  dos  últimos  cento e cinquenta   anos  a  morte  da  arte. Não admira pois  que  os  especialistas  opinem  hoje  que  a  instituição  artística  atravessa   a  fase  final  do  seu  esgotamento,  contando  já  com  um  certificado  oficial  de  morte, ou que, pelo menos,  se  encontra  já  em  adiantado  estado  de  decomposição,  o  que não  impede  obviamente  de  continuar  a  haver  artistas, críticos, teóricos de arte, revistas de arte, páginas, notícias   e  anúncios sobre arte,  e  até  mesmo   a  continuação  do  funcionamento  de faculdade  e  departamentos  universitários  de  arte, procurados  como  nunca  por  uma    enorme  clientela,  facto este    que, de  resto,   não  está  ainda  devidamente esclarecido... O anúncio antecipado  da  morte  da  arte  não  impede  igualmente  o  uso  sistemático   e  altissonante   do  termo “arte”,  tanto  para efeitos  políticos ( veja-se a impressionante  máquina  de  fazer  dinheiro  em que  se  tornou  a  Cultura)  como  para  efeitos especulativos ( o negócio da arte), ou  ainda  como  simples  objecto  de  teorização.
Novidade  marcante  é, sem dúvida, utilizá-lo  para  efeitos  de luta  antimilitarista  e  crítica  à  guerra  e  ao  complexo militar-industrial  dominante. Na  verdade,  entre  as  novidades  recentes  do  panorama  artístico    tem  surgido  um  novo  tipo  de  artista: o artista  insubmisso militar. O caso  mais  conhecido  foi  o  do  estudante  das  Belas  Artes  que  se  declarou  refractário  e  insubmisso  ao  Serviço  Militar  Obrigatório, ao  Exército   e  a  todo a  máquina  estatal  de  guerra  invocando  a  favor    da  sua  atitude  motivos  e  razões  do  foro  artístico,  aproveitando  até  a  ocasião  para  redigir  um  Manifesto  Artístico  Insubmisso,  ao  longo  do  qual  argumentava e  defendia  a  sua  concepção  da insubmissão  à tropa e à  guerra  como  obra  de  arte, recorrendo  para  tal   a  toda  uma  forte  tradição  artística  insubmissa – Dada, Tzara, Duchamp, Beuys, Zaj,... – legitimada  pela  História  da  Arte,  e ensinada  inclusivamente   nas  Faculdades  Estatais  de  Belas-Artes.  Toda  a  sua  alegação  rematava  com a  invocação  do  Artigo 13º ( “É livre  a criação intelectual, artística e científica”) e do Artigo 78º ( que  dá   ao  Estado  a  incumbência  de  apoiar  as  iniciativas  que  estimulem  a  criação  individual e colectiva), ambos da Constituição da República.
Claro  está  que  a  estratégia   jurídico-argumentativa  apresentada  sofre  de  não  poucas  fraquezas  face  ao  conteúdo  e  espírito  do  texto  constitucional  que  noutras  partes   consagra   injunções  de  teor  e  fins  opostos  aos  que  foram  invocados, pelo  que  não  foi  difícil   rebatê-los  na  decisão que  veio a ser  proferida  pouco tempo depois.
Por  outro  lado   a  via  escolhida  para  realizar  a crítica  antimilitarista  não  se  nos  afigura  ter tido   grande  eficácia. Todos  sabem  a  pouca  receptividade  dos  militares  e  até  do  Estado  a  razões  puramente  artísticas  para  a  fundamentação  de atitudes  e  comportamentos.  É  certo  que  teve  oportunidade  para    desmistificar  certos  preconceitos  vulgares e muito  comuns   que  estão  na origem  do  Exército  e  do  Estado       ao  recorrer   a   razões  de  ordem  artística. Todavia,  a luta  antimilitarista  só  se  mostrará  consequente  se  tiver  impacto  junto  de  conjuntos  significativos  da  população, o  que  nunca  veio  realmente  a  acontecer
Além do mais  enveredar  por  uma  “estratégia  artística  antimilitarista”  envolve  algum  perigo  na  medida  em  que  o  raciocínio  que  aí  se  convoca  é  muito semelhante  ao  utilizado  nas  operações  militares ( e já  agora, o  mesmo  pensamento  se  poderá  aplicar   ao  de  “vanguarda  artística”), se  bem  que  dúvidas não  subsistem  que  os  inimigos  mais  persistentes   dos  militares  não  são   propriamente  os  militares  adversários  mas  sim os  antimilitaristas.
Acerca  do  acto  em  si  enquanto  atitude  que  releva  do  foro  artístico  será  necessário, como ponto  prévio,  elucidarmo-nos  sobre  se  a  arte  existe,  sobre  o  que  é  a  arte,  e  ainda  se  é possível  uma  definição  institucional  da  mesma.
Sustentar  a  insubmissão  à  tropa  e  à  guerra  em  nome  da  arte  sugere  logo  uma  perspectivação  da  prática  artística  como  desobediência, transgressão de normas e  até  de  delito.  E  não  há  dúvidas  que  a  arte  do  século XX  nos  oferece  uma  grande  parentesco  entre  o  impulso  criativo  e  anticonvencional,  antagónico   à  dimensão  burguesa  convencional  estabelecida. Este  parentesco  encontra-se  inclusivamente  corroborado  na  moderna  ideia  segundo  a  qual  a  atitude  não  conformista é  a  condição  prévia  e  indispensável  para  a  criação  artística.
Porém  não  nos  iludamos:  o  anticonvencionalismo, o inconformismo, a desobediência,  a  insubmissão,  o  delito,etc, são  sempre  conceitos  relativos  a  um  determinado  grupo  de  referência  que, por  consenso, define   socialmente o  conteúdo da norma e  do  desvio,  pelo  que  uma desobediência  relativamente  a  um  grupo  social  ( dominante, por exemplo)  poderá  ser  vista  também  como  de  obediência  a  outro  grupo social ( dominado).
De  qualquer  forma  o  certo é  que  existem  na  História  da arte  sólidas  referências, isto é,  precedentes  reconhecidos,   que  permitem  encarar  a  criação  artística  não  tanto  como  uma   habilidade   especial  para  gerir  certos materiais  e  formas,  mas  como  antinomia  de  toda  e  qualquer  restrição  e  limitação. Nas  palavras  de  Beuys  “o  artista  e  o  delinquente  são  companheiros  de  caminhada, dispõem  ambos  de  uma  louca  criatividade,  e  ambos  carecem  de  moral...”
Evidentemente  que  não se  trata  aqui  de  atribuir  a  categoria  artística  a  alguns  bem  conhecidos  delitos ( como  os  crimes  perfeitos,  o  dos  colarinhos  brancos, as  falsificações  refinadíssimas,  as  fugas  de  prisão...),  nem  é  sequer  intenção  nossa parte   trazer  à  colação   os  numerosos  artistas  que  foram  delinquentes  ( Caravaggio  foi  um  criminoso, Rimbaud e Verlaine  são conhecidos  pelas  rixas  em que  se  envolveram,  e  os  primeiros  dadaístas  de  Zurich   famosos  desertores  da  I Grande  Guerra),  trata-se  sim  de  apurar  se  a  arte  supõe  em si  mesma  alguma  forma  de  insubmissão  ou  de  delito. O caso  de  Egon  Schiele, preso  por  ser  considerado  pornógrafo, a  acção  dos  primeiros graffiters  novaiorquinos  alvo  da  perseguição  da  polícia,  as  galerias  de  arte  processadas por  imoralidade   após  as  exposições  de  Mapplethorpe, as  provocadoras  exibições  públicas da   Action and Body Art  na década  de  sessenta, o happening  político  de  Maio  68, o  Accionismo  vienense  e  a  sua  luta  anarquista  por  uma liberdade  dionisíaca  sem  limites, o  movimento  Fluxus, a Anti-Arte, Zaj e  o  não-Zaj,  e  em  grande  medida de  toda  a  corrente  conceptualista ( desenvolvida    desde  Duchamp),  representam  todos eles  o  questionar   da  própria  ideia de  arte.
Reinstauradora  do  vínculo platónico  entre  moral  e  estética,  será  que  a  arte  deve  abandonar  a  complacência  administrativa  e   avançar  no  caminho  da  crítica  institucional   tal  como  faz   Hans  Haacke    que  denuncia   a  experiência  quotidiana  capitalista,  lançando as  suas  obras contra  as instituições artísticas estabelecidas,  e  indústrias  congéneres?
Inspirados  nesta  ideia  numerosos  artistas  optaram  por  esta  via ( bastará  lembrar  o  caso  de Wolf  Vostell, Julien Blaine, Joel  Hubaut, Patrice Loubier...) e  que  acabam  justamente  por  reconhecer   a  natureza artística  a  uma  acto  como  o   de  insubmissão  antimilitarista.
Reticentes  a  uma  concepção  destas  serão  certamente  as  instituições  estabelecidas  como  as  academias, universidades, associações  de  críticos, museus, etc , circunstância  essa  que  só  dará   razão  a  Gomez  de  la  Serna quando  este  escreve “...as  academias  não  têm  nada  a  ver  com  a  arte; constituem-se  acima  de  tudo  como  recintos tétricos,  repletos  de  chefes  de língua   de  negócio”.
Chegamos  assim  a  este  ponto  do  problema: se  as  faculdades  de  arte  não  têm  capacidade  para  dizer  o  que  é  a  arte,  então  quem  o  pode  fazer? A  resposta  óbvia  é  remeter  para  o  próprio  foro  de  cada  indivíduo  na  hipótese  de  se  considerar  a  arte  como  uma  experiência  eminentemente  subjectiva  e  intransferível,  e  que dura  enquanto  acontece  num  determinado  sujeito  criador. Mas  nesse  sentido  qualquer  um  pode  ser  artista, quer seja militar ou  civil, oprimido ou  opressor. 
Mas  se  se  busca uma  resposta  mais  elaborada  então  as  coisas  complicam-se. E torna-se hoje  ainda  mais  difícil  descortinar  alguma  saída  para  esta  questão  depois  de  tantas  evoluções a  que  se  assistiu  neste  domínio  no  último século.
Novos  enfoques  sobre  o  assunto  ( o  que  é   a  arte?)  não  vão  faltar  com  o  passar  do  tempo,  mas  hoje  desgraçadamente  temos  de  reconhecer  que  a  arte  é  definida  institucionalmente pelos...media! São  estes, mais  o  dinheiro  investido ( ou  a  investir)  que  definem  institucionalmente  a natureza artística  de  uma  obra.
Por  isso,  um  artista  insubmisso  militar  que  queira  elevar  o  seu  acto  à  categoria  de  arte  não  tem  outro  solução  que  não  seja   comprar  um  bom  e  apelativo  anúncio  televisivo,  ou  em  algum  outro  meio audiovisual  de  massas...
Podemos  concluir  assim  que  a  Arte  a  a  Justiça  têm  algo  de  comum  entre  si : ambas  são  instituições  fraudulentas.
A Arte  por  dissimular  uma  existência  improvável ( quase impossível)  nas  actuais  condições demotecnocráticas  e  hipertecnologizadas   em  que  a  própria  realidade  acabou por  sucumbir  às  mãos  de  ficções  tornadas  realidade.
A  Justiça  não  somente  pelas  disfuncionalidades  congénitas  de  qualquer  aparelho  ou  máquina  judicial mas  sobretudo   pela  contradição  que  se  revela  entre   as  suas  leis  e  os  fundamentos  morais  que  pretensamente  aquelas  se  apoiam, como  ainda  por  sancionar  justamente  os  indivíduos  que ao   avaliar  criticamente  a  actuação  do  Estado,  qual  máquina  de  poder   em  potência e em acto, mais  longe  levam  o  seu  direito  de  cidadania   (1) ao exigir  que  o   Direito  Penal  deste   corresponda  ao  seu próprio  fundamento originário , que  é  o  de  se  constituir  como  um  conjunto  normativo  que  garanta  tão  só  os  requisitos  mínimos  para  a  convivência  social, (2) assim  como   à  recusa  de   se  aglutinar  a  uma  massa  informe  de  indivíduos  através  da  activa  participação  cívica  e  social. 
Tradução livre ( e adaptada de um artigo de José Saborit Viguer publicada na Revista  El Viejo Topo nº 96)
 
