A República das Putas
Por João Magueijo
texto publicado no jornal Público de 11 de janeiro de 2013
João Magueijo é professor de Física Teórica no Imperial College da Universidade de Londres, depois de ter passado pela Universidade de Cambridge (St. John's College) onde fez o seu doutoramento (Trinity College).
A expressão não é original, mas o plágio é deliberado. Quando Josef Skvorecky escreveu o livro A República das Putas, havia na então Checoslováquia o sentimento de um país traído, entregue ou vendido a uma ideologia questionável, por uma classe dominante corrupta e por políticos que eram de facto putas, metafórica e literalmente. No caso de Portugal não houve tanques a entrar pelo país e a ideologia a que fomos vendidos será a outra, supostamente oposta. Mas de resto a história é tal e qual, especialmente no que diz respeito à qualidade e moralidade dos políticos.
E o pior é que paga o justo pelo pecador, ou pelo menos há pecadores, a nível mundial, que não pagaram nada. Até isto se resolver não me parece que faça grande sentido ser optimista, ou filosofar sobre o estado das letras e das ciências. Antes falar de tourada.
Ainda deve haver por aí quem se lembre da Dona Branca, a autodenominada banqueira do povo. Para quem não sabe, era uma senhora que mais não fazia que comprar e vender dinheiro, fazê-lo circular, o que lhe era levado de novo era usado para pagar juros chorudos aos que já lá estavam, e cada vez havia mais. Ela arrecadava uma comissão, a coisa foi crescendo até que um dia PUM, foi tudo pelos ares. Recordo-me de uma Dona Arminda, que lavava as escadas lá do prédio, que perdeu as poupanças todas nestas andanças, ainda me lembro da senhora a chorar muito, faz-me lembrar o Portugal de hoje. E a Dona Branca inevitavelmente foi dar com os costados na prisão, coitada da senhora, estava muito avançada para a época, se fosse hoje davam-lhe um bónus de milhões, e teria uma posição de topo na Wall Street.
Não sejamos hipócritas, já todos recorremos aos bancos, e houve tempos em que o mundo das finanças fazia algum sentido. Precisava-se de algo agora, a ser pago com dinheiro que se iria ganhar mais tarde, os bancos tratavam da necessária máquina do tempo financeira. Em Itália vai-se a uma terriola qualquer, e lá há-de estar a Caixa Agrícola de Montemerdini, ou lá o que for: emprestava para se comprar os adubos, as sementes, as alfaias, e quando se fazia a colheita pagava-se, ficava tudo contente, belos tempos.
Eram tempos em que o capitalismo tinha um lado quase bom, ou pelos menos paternalista. Claro que a pobreza era extrema, e deixa lá as coisas correrem mal e logo se via quem passava fome. Mas o capital nesses tempos era usado para produzir riqueza real, e o sistema financeiro apoiava o processo, conduzia a coisas que se viam, que resultavam em produtos tangíveis e reais.
O capitalismo de hoje é bem mais tenebroso. Os jogos financeiros contemporâneos são tão abstractos e auto-referenciais que trocando a coisa por miúdos mais não são do que comprar e vender dinheiro, como fazia a Dona Branca. Por razões que nunca entendi, muitas das galinhas dos ovos de ouro, em Londres e Nova Iorque, são físicos teóricos e matemáticos falhados, ex-colegas meus em alguns casos. Temos tido acesas discussões, mas numa coisa concordamos: a teoria do caos e o Lema de Ito que se lixe, aquilo é simplesmente jogar na lotaria. Como é que trocar acções por computador ao microssegundo, como se tem vindo a propor, pode corresponder a alguma operação económica real? Aquilo é verdadeiramente a Dona Branca: uma pescadinha de rabo na boca financeira, "financiar o financiamento das finanças financiadas", num jogo bem enterrado no umbigo da Wall Street e da City de Londres, um totoloto mundial mas com um belo seguro contra perdas: quando se ganha, ganham eles; quando se perde ,pagamos todos, em cascata. E é aí que entram as tais putas, especificamente as nacionais.
Ao longo dos anos vimos o país a endividar-se com coisas que eram precisas e coisas que não eram. Tínhamos um serviço nacional de saúde do terceiro mundo e uma taxa de mortalidade infantil a condizer, analfabetismo e subdesenvolvimento a níveis do Subsara... e as coisas mudaram dramaticamente nos últimos 20 anos. Saí de Portugal em 1989 e sempre que voltava via algo de novo que era genuinamente preciso: portos para pescadores, estradas ao nível europeu, uma enorme expansão do ensino, etc., etc. E claro que tudo isto custa dinheiro, mas podia argumentar-se que se a Europa não queria ter um país do terceiro mundo no seu seio que o pagasse.
Mas onde a porca torce o rabo é que se via também uma orgia de infra-estruturas desnecessárias: túneis nas entranhas da Madeira que levavam a lado nenhum, estradas em duplicado nos cus de judas regionais, coisas tão ridículas que davam vontade de rir. Foram-se fazendo obras públicas completamente faraónicas, de novo-rico que não sabe o que há-de fazer ao dinheiro. Tornava-se óbvio que se construíam infra-estruturas, não para preparar o futuro, mas sim para alimentar o presente, numa cumplicidade corrupta entre Estado e empresas privadas, em que o último elo da cadeia era o mundo das finanças internacionais. E esses andavam entretidos com os seus jogos de totoloto, e quando a bolha rebentou lixou-se o proverbial mexilhão, tradução, nós.
Como Skvorecky notava, as "putas" que tinham antes vendido o seu país aos nazis eram as mesmas que agora acolhiam os soviéticos (e mais tarde, muito depois de o livro ser publicado, acolheriam o capitalismo selvagem, sem que ele o soubesse). O mesmo se passa no nosso caso: não tenham dúvidas de que em tempos de fascismo os nossos primeiros-ministros teriam sido rapazes de sucesso. Mas de certa forma estamos a bater no ceguinho. Se eles (e nós, por extensão) fizeram figuras tristes e agora estamos a pagar por isso, houve quem fez pior e se está agora a rir. Os usurários mundiais nem sequer construíram túneis inúteis: construíram castelos de valores inexistentes, que continuam a crescer e a alimentar a sua ganância. Até isto se resolver falemos de tourada, porque não faz muito sentido discutir o estado da nossa sociedade, e o demais, em 2013.
Aliás, parece-me que a nossa sociedade estaria muito bem, muito obrigado, se não fosse este "pequeno detalhe" político e financeiro. Por exemplo: a sociedade portuguesa é muito mais sã do que a inglesa. Na Inglaterra, quem abre a boca inevitavelmente vomita uma etiqueta de classe social autenticada. Os famosos sotaques britânicos fornecem informações precisas sobre a classe, uma pena não se ensinar isto nas aulas de inglês do secundário que cá se apanham. E este simples facto cria uma quase ausência de mobilidade e interacção entre as classes; pior, torna as pessoas em estereótipos da sua classe social. Por exemplo, a classe operária inglesa força-se a seguir um cliché de ignorância e estupidez, atitudes racistas e xenófobas, contra a cultura e a educação. A sua imagem de marca é falar com erros de gramática que em Portugal só um atrasado mental cometeria... assim as classes superiores os têm vindo a controlar.
Nada disto se passa em Portugal (e já agora na Grécia, onde se encontram camponeses analfabetos a pagar a educação dos filhos em Cambridge). Ainda fui daqueles que tiveram de ir fazer a inspecção para a tropa, estava já então em Inglaterra, e o que mais me impressionou foi que entre os 500 "mancebos" de pirilau de fora que lá estavam, não se sabia de que classe era quem (tirando os casos extremos de dois grosseiríssimos labregos e de um pretendente à coroa). Ora na Inglaterra nada disto seria assim, e com graves consequências: ao contrário de Inglaterra, se há cultura e identidade neste país, elas residem precisamente na classe trabalhadora. E diria que é este o maior potencial de Portugal: temos uma sociedade muito mais saudável, em termos de identidade e de classe, apesar de todos os problemas com que nos deparamos.
Sim, éramos um país de pobres que passou temporariamente a um país de novos-ricos. Mas agora somos um país de novos-pobres: miúdos cheios de talento desempregados há dois anos, pessoal de ponta a emigrar para o estrangeiro, médicos educados cá a colmatarem as faltas de sistema de saúde inglês... um desperdício óbvio de uma geração. Em vez de usarmos estas fontes de rendimento, deixámos os tanques financeiros entrar pelo país, para aumentar os impostos e baixar os salários, já de si entre os mais baixos da Europa.
Não sei se haverá soluções milagrosas, mas uma quebra total com o que se tem vindo a fazer é evidentemente necessária. Lembro-me de uma senhora perguntar a um médico meu amigo se podia usar água benta para a sua enfermidade. O médico respondeu-lhe que sim, mas que a fervesse primeiro. Não me parece que doses sucessivas de banha da cobra sejam a solução dos nossos males. Muita da nossa dívida, e consequente austeridade, não é legítima, em perfeita analogia com as dívidas contraídas pelas prostitutas, e que as mantêm nas malhas dos seus donos. Se a nível mundial algo tem de ser feito para refrear os chulos financeiros, a nível nacional um corte com o passado seria um primeiro passo. Ou então que se dê o Prémio Nobel da Economia à Dona Branca. E viva a República das Putas.