DESIGUALDADES SOCIAIS: OS MODELOS DE DESENVOLVIMENTO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM QUESTÃO
I – MERCADOS GLOBAIS, DIREITOS UNIVERSAIS?
Nas últimas décadas, tem-se assistido a uma notável intensificação das relações económicas, culturais e sociais entre espaços nacionais.
A internacionalização da economia, em concreto, avançou muito, permitindo que amplos sectores da população mundial vissem significativamente aumentados os seus níveis de consumo e bem estar. Contudo, ao assentar em lógicas que estão longe de garantir igualdade de oportunidades a todos os países e, dentro destes, a uma parte significativa dos seus habitantes, essa internacionalização não impediu que se consolidasse uma ordem social global injusta, instável e insegura e, por isso, também, cada vez mais contestada. A desregulação dos fluxos de capitais e a pressão competitiva baseada numa redução forçada de custos, só possível, em muitos casos, com utilização de mão de obra sub-remunerada e sem direitos, são dois dos aspectos da globalização que mais frequentemente se invocam nessa contestação.
Para todos os que, defendendo uma globalização respeitadora da dignidade do trabalho onde quer que ele se realize, recusam que ela tolere ou promova a anulação de direitos sociais, tantas vezes conquistados à custa de enormes sacrifícios das populações, fundar em novos moldes o aparelho institucional e as regras de governação da globalização é, então, uma exigência inadiável. E isso, tanto mais quanto se têm revelado frustrantes os efeitos da ajuda financeira internacional hoje predominante: indispensável em situações de fome e pobreza extremas, de catástrofes naturais devastadoras, de guerras sem fim à vista, não deve esse tipo de ajuda de emergência servir de pretexto para adiar soluções políticas que permitam mudar efectivamente o sentido da globalização.
Sem uma alteração qualitativa das lógicas de actuação dos actores e forças globais que hoje condicionam, no xadrez das relações internacionais, as práticas e projectos de vida de milhares de milhões de cidadãos, não será fácil continuar a acreditar que a mundialização dos mercados a todos garanta os mais elementares direitos civis, políticos e sociais.
II – SOCIEDADES DESIGUAIS, CIDADES INCLUSIVAS?
Os problemas ligados à habitação dos grupos sociais com menos recursos são, sem dúvida, uma dos mais delicados elos da relação entre economia, sociedade e Estado.
A forte mediatização de que são alvo alguns desses espaços residenciais, nomeadamente aqueles que associam localizações periféricas a pobreza, multiculturalidade e conflitualidade, tem contribuído para difundir e amplificar preconceitos e interpretações infundadas sobre as condições de vida das populações envolvidas, homogeneizando o que é heterogéneo, dramatizando e generalizando o que é excepcional. Parece inegável, em qualquer caso, que a questão do alojamento de amplas camadas da população urbana mais carenciada coloca efectivos desafios à acção do Estado, não sem obrigar a pensar com rigor o funcionamento dos mercados fundiário e da habitação.
O domínio de intervenção das políticas públicas e da acção da administração central e local é, nesta matéria, muito vasto, já que percorre questões tão diversificadas como a regulação do mercado do alojamento, a promoção de habitação dirigida aos sectores mais desfavorecidos da população, a integração social de imigrantes e minorias étnicas, a animação sócio-cultural e a activação de projectos de desenvolvimento local, o incentivo à articulação de serviços públicos e iniciativas privadas no combate ao isolamento de espaços residenciais desqualificados face ao tecido citadino mais dinâmico, etc.
Mas há um outro lado da questão social urbana que se situa de algum modo a montante da exigente e incontornável acção do Estado em prol da coesão social. E esse é o lado, nem sempre explicitado nos debates em causa, dos modelos de desenvolvimento que tendem a reproduzir desigualdades territoriais profundas à escala internacional, nacional e regional, das migrações internas e internacionais com amplitude e ritmos dificilmente reguláveis, de padrões de distribuição de rendimento muito desequilibrados, da precariedade de emprego, do desemprego de longa duração, etc. É também por aqui que passa a dificuldade em transformar o território citadino, tão rico em interacções e aparentemente tão propenso a fomentar a criação de espaços públicos abertos e tolerantes, em cidades verdadeiramente inclusivas.
III – REGULAÇÃO ECONÓMICA E PARADIGMAS DE GESTÃO – UM NOVO RUMO DEPOIS DA CRISE?
“Mercado” é o nome dado a um domínio da realidade que incorporou, desde a génese, e em rigorosamente todas as fases da sua evolução, compromissos institucionais mediados e regulados pelo Estado. Actuando estes como pré-requisitos e constrangimentos económicos e sociais efectivos que, como quaisquer outros, são contingentes e transformáveis, o modo de regulação da economia é uma questão política em aberto e não, como tantas vezes se sugere, um repositório de procedimentos técnicos que as lógicas de mercado naturalmente imporiam.
Nesta perspectiva, a desregulação dos mercados, de que tanto se falou a propósito da última grande crise económico-financeira, não correspondeu a qualquer interrupção da presença do estado na economia, mas sim a uma fase peculiar dessa presença, que teve nas opções de liberalização dos mercados financeiros o factor desencadeador mais visível e na precarização do emprego e na acentuação das desigualdades sociais as suas consequências mais dramáticas.
Se estas últimas vieram colocar novas responsabilidades ao Estado social de direito, dúvidas há, e não apenas entre os detractores deste último, que a sua sustentabilidade financeira esteja, a prazo, assegurada.
Talvez seja então oportuno interrogarmo-nos sobre se a intervenção do estado social, que, não obstante a difusão de direitos a que deu lugar, mantém uma componente eminentemente reparadora, não deve procurar outras direcções. Se se aceitar que a nova questão social está fortemente enraizada nos riscos, contingências e estruturas de oportunidade dos sistemas económico-produtivos e não apenas, nem principalmente, em disfuncionamentos e imperfeições “extra-económicos” mais ou menos circunstanciais, faz sentido, com efeito, considerar que os objectivos de inclusão e coesão social próprios do estado social se insiram extensivamente e de pleno direito nas práticas económicas. Encarar a elevação dos níveis de integração, segurança, equidade e qualidade de vida no trabalho como “ganho de eficiência” e como “vantagem comparativa” e não como característica supérflua, secundária ou meramente subsidiária da vida económica será, nesta perspectiva, a forma mais promissora de reformar o estado social de direito.
O modo como, no passado recente, certas preocupações ambientais, mau grado múltiplas resistências, se foram traduzindo em “boas práticas” empresariais e depois em princípios gerais incorporados na vida económica sugere que a metamorfose do estado social acima delineada não é nem utópica, nem irrealista. Dificilmente se compreende, aliás, que os desígnios de sustentabilidade reivindicados para os modelos de desenvolvimento, que já vão incluindo com naturalidade algumas exigências ambientais, prescindam de uma componente de socialidade forte.
José Madureira Pinto
(Coordenador do Colóquio)
http://coloquio-desigualdades.centenariorepublica.pt/
Colóquio
Desigualdades Sociais: os Modelos de Desenvolvimento
e as Políticas Públicas em Questão
Data: 18 a 19 de Novembro de 2010
Local: Porto, Biblioteca Municipal Almeida Garrett
Organização: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República
Coordenação: José Madureira Pinto
Resumo: Os níveis de riqueza e bem-estar das populações de grande parte dos países, incluindo Portugal, cresceram muito significativamente no último século. A verdade é que, sobre este fundo de crescimento económico e de melhoria de condições de vida, não deixaram de se desenhar, à escala mundial e em cada espaço nacional, acentuadas assimetrias económicas e sociais. Mesmo nas economias ditas desenvolvidas, a “questão social” nunca deixou de marcar, ao longo desses cem anos, quer o quotidiano e os projectos de emancipação dos grupos mais desfavorecidos, quer o horizonte de preocupações dos responsáveis políticos. E se isso contribuiu para consolidar um corpo de políticas e instituições voltadas para melhorar os níveis de protecção e alargar o âmbito de direitos sociais das populações, a verdade é que as desigualdades (expressas em termos de amplitude dos leques salariais, de oportunidades de acesso à propriedade e ao crédito, aos cuidados de saúde, à habitação, à instrução e à cultura e às próprias condições de participação política efectiva) estão longe de se desvanecer, com isso se perpetuando níveis surpreendentemente elevados de pobreza, de iliteracia e de retracção e exclusão social e cívica.
Ora, se o aumento do esforço financeiro do Estado em matéria de protecção social tem conseguido manter, dentro de limites toleráveis, o potencial de conflitualidade de tais desigualdades, certo é também que não se inverteram decisivamente os mecanismos económico-sociais que as geram. E aqui está por que razão a abordagem do problema das desigualdades não deve prescindir de uma análise crítica dos fundamentos dos modelos de desenvolvimento e dos paradigmas de gestão dominantes. Neste sentido, e após um primeiro conjunto de intervenções que se propõem proceder ao enquadramento geral do tema, o Colóquio orientar-se-á em torno de três grandes blocos temáticos:
- Mercados Globais, Direitos Universais?
- Sociedades Desiguais, Cidades Inclusivas?
- Regulação Económica e Paradigmas de Gestão – Um Novo Rumo Depois da Crise?
Programa:
18 de Novembro de 2010, quinta-feira
09h00 – Recepção aos participantes
09h30 – Sessão de Abertura
09h45
Enquadramento do Tema Geral do Colóquio
Introdução – José Madureira Pinto
Intervenções de João Ferreira de Almeida e de António Manuel Figueiredo
Debate
14h30
Mercados globais, direitos universais?
Intervenções de António Joaquim Esteves, Raymond Torres e de Jorge Sampaio
Debate
19 de Novembro de 2010, sexta-feira
09h30
Sociedades desiguais, cidades inclusivas?
Intervenções de Robert Castel, Isabel Guerra e de Virgílio Borges Pereira
Debate
14h30
Regulação económica e paradigmas de gestão – um novo rumo depois da crise?
Intervenções de Xavier Timbeaud, João Rodrigues e de João Cravinho
Debate
17h00 – Pausa
17h15
Intervenção de Maria Manuela Silva
Intervenção de Encerramento do Colóquio – Artur Santos Silva