10.10.09

Ruim por Ruim...Vota em Mim (Galo de Barcelos contra o eleitoralismo dos caciques autárquicos)



Sobre a vitória da abstenção

Numa época como a nossa o que separa as águas entre os que partilham a defesa do Sistema dos que querem a sua derrocada é a forma como se olha para o Estado e para a representação política. Vem isto a propósito da análise que pode ser feita sobre as recentes eleições que geraram toda uma verborreia omnipresente sobre vitórias e derrotas, sobre o crescimento da direita e da esquerda, sobre arranjos políticos e por aí fora. O que os profissionais políticos e os analistas, não menos profissionais, evitam referir é o facto mais evidente: a crescente perda de legitimidade dos donos do Poder, ante uma abstenção próxima dos 40%, superior à obtida pelo partido mais votado.

O crescimento da abstenção é tanto mais relevante quanto aparentemente o espectro eleitoral se abre, muito pluralisticamente, da extrema-direita à extrema-esquerda, com uma variedade de discursos e cores capaz de satisfazer todos os gostos. Soma-se a isso a propaganda insidiosa dos meios de uniformização da massas, bem como todas as autoridades político-religiosas, a apelar ao voto, tentando convencer o povo que estão nas suas mãos os destinos do país. Contra tudo isto levantou-se o muro da indiferença de quase quatro milhões de portugueses que se recusaram a votar e ao se recusar estão explicitamente a expor a sua desconfiança ante todas as formações e discursos políticos que disputam as eleições.

Esta evidência incomoda todos os que partilham crenças comuns sobre a democracia representativa e sobre o papel dos cidadãos domesticados que têm de se integrar em algum rebanho, mesmo que seja no das ovelhas ranhosas. Até os mais conservadores preferem um voto na extrema-esquerda à abstenção. Sendo a abstenção a grande ameaça à legitimidade dos donos do Poder há necessidade de desacreditar o comportamento abstencionista identificando-o com passividade, comodismo, irresponsabilidade, inconsciência e por aí fora usando todos os adjectivos depreciativos que se possam encontrar nos dicionários.

No entanto, a realidade não parece ser essa, resistir ao discurso da máquina de propaganda, manter uma postura contra-a-corrente não é um indicador de comodismo e indiferença. Mas não se espere, isso é óbvio, que o partido abstencionista possa ser visto com excesso de optimismo só lhe reconhecendo virtudes e atribuindo-lhe uma consciência contestatária que estaria ausente em todos os partidos da Situação. Não me parece ser assim. Na abstenção, como no voto, convergem diferentes razões, ideias e vontades, mas certamente que se poderão descobrir no acto abstencionista um potencial crítico e uma descrença no Sistema que dificilmente se encontrarão no acto do voto com todas as ilusões que lhe estão associadas sobre o papel das eleições na mudança social. Até porque o mero acto de votar significa desde logo reconhecer os mecanismos legitimadores dos donos do Poder.

Se uma coisa é possível concluir da história é que é nas ruas que se pode decidir o futuro das sociedades contra a vontade dos gestores políticos da Ordem. Até porque o Poder político não é determinado pelo voto mas pelos interesses dominantes numa dada sociedade. As políticas nacionais dependem cada vez menos dos deputados de São Bento e cada vez mais da vontade dos grupos que decidem os destinos dos povos e esses não se submetem ao voto popular mas actuam na sombra, seja em Portugal, seja em Bruxelas, seja em Washinghton.

Num momento em que os partidos políticos e as elites no poder desde o 25 de Abril estão a atingir o seu ponto mais baixo na credibilidade dos cidadãos, devido à sua patente natureza corrupta e mafiosa, não nos cabe a nós sermos defensores da lógica política-eleitoral e repudiar o abstencionismo eleitoral, ao lado das direcções partidárias, órgãos de poder e comissões eleitorais.

Na tradição libertária do uso da desobediência e do boicote como armas sociais, e de acordo com a nossa visão sobre o Estado e o poder, a única postura aceitável e consequente é a da abstenção eleitoral. Mais que em qualquer outra época, é na crítica do Estado, das elites políticas, e deste falso sistema democrático em que se decide a facção que se vai locupletar com a riqueza social que os anti-capitalistas mais razões têm para defender a abstenção, mesmo que a abstenção eleitoral não esgote a recusa do Sistema, nem seja um momento decisivo da luta social, não deixa de ser um indicador fundamental das ilusões (ou das desilusões) dos cidadãos em relação aos grupos dominantes. Por tudo isso a opção só pode ser recusar a colaboração com os donos do Poder nos seus rituais periódicos de legitimação.

Quanto ao que se costuma chamar de «participação política», no melhor estilo da linguagem insípida dominante, que é a ritual participação através do voto em eleições, melhor seria que se referisse à necessidade do envolvimento das pessoas, principalmente dos grupos dominados e excluídos, na luta social que foi, e continua a ser, o único meio dos de baixo forçarem as mudanças sociais como a história nos tem ensinado ao longo dos séculos. A renovação, teórica e prática, do pensamento anti-capitalista, não se dá pela sua adaptação ao discurso, e interesses, dos donos do Poder mas à defesa intransigente das ruas e da luta social como meio de combate às classes e elites dominantes e a defesa da ideia de que é possível outro tipo de sociedade baseada no auto-governo das comunidades.

Para nós, em síntese, o actual sistema democrático-capitalista, baseado na desigualdade económica, social e política, só pode continuar a merecer a crítica radical e uma boa dose de asco. A ida às urnas só se justificaria se fosse para vomitar dentro.



Texto de Manuel de Sousa, in