3.2.09

O comunitarismo e a cultura comunitária da aldeia de Aivados (em Castro Verde, Alentejo)


A aldeia de Aivados, com 150 habitantes, situada a 13 quilómetros da sede do concelho, Castro Verde, é única no Baixo Alentejo: é uma aldeia comunitária, desde o século XVI, possuindo, além de um “governo”, com o seu próprio regulamento interno, 400 hectares, um rebanho comunitário, vários prédios urbanos e alfaias agrícolas.

Quem é natural ou reside há mais de um ano na pequena comunidade dos Aivados não precisa de se preocupar em arranjar dinheiro para comprar um terreno para construir casa própria: por “lei”, em efectividade desde, pelo menos, 1562, tem direito a esse terreno gratuitamente, só o pagando, à comunidade, se entretanto decidir vender a casa. Mais: como cidadão de pleno direito da comunidade, tem também direito a uma parcela de terreno nos “ferrageais” junto à aldeia, onde poderá fazer uma horta, criar galinhas ou outros animais, desde que não criem problemas ambientais aos restantes habitantes. Mais, ainda: na véspera de Natal, para reforçar a ceia e poder comprar mais uma ou outra peça de roupa para suportar o Inverno, receberá uma verba em dinheiro, uma percentagem dos lucros obtidos pela comunidade na exploração dos terrenos mais desviados da aldeia, a que chamam as “folhas”.

Aivados é uma aldeia única no Baixo Alentejo. No entanto, a sua história, que remonta ao século XVI, é pouco conhecida, inclusive a nível regional, talvez por só existirem publicados e pouco divulgados dois trabalhos, com profundidade, sobre a aldeia: um jornalístico, publicado no “Diário do Alentejo”, em Setembro de 1982; outro na área da antropologia, um trabalho de mestrado, realizado em 1997.

Não se sabe ao certo em que ano e quem doou aos moradores os 400 hectares que cercam a aldeia de Aivados. Terrenos que, ao longo da história, têm sido cobiçados por muitas entidades públicas e privadas e sido alvo de várias tentativas de usurpação. No entanto, através de processos judiciais, um dos quais demorou 93 anos a ser resolvido, os moradores sempre conseguiram preservar o seu património

O “governo” dos Aivados

Diz a tradição oral que os Aivados sempre foram “governados” por uma comissão, eleita por todo o povo, composta por vários cidadãos. É de 31 de Janeiro de 1934 a acta, escrita, mais antiga que fala no assunto, referindo que essa comissão era constituída por um presidente, um secretário, um tesoureiro e três vogais. Essa comissão – que, refira-se, sempre funcionou, mesmo no tempo do fascismo – tinha plenos poderes para resolver todos os problemas da comunidade. Sem capacidade jurídica que transcendesse as “fronteiras” do território, a comissão foi, em termos práticos, o executivo que levava à prática as deliberações tomadas em assembleia geral pelo povo da aldeia. Entre essas deliberações, contaram-se, por exemplo, a dado momento da história, “atribuir ao forasteiro o estatuto de cidadão, ao serem-lhe concedidos todos os direitos e deveres que usufruiam os naturais”.Por motivos legais, em 1989, foi necessário criar uma entidade com “corpo jurídico” que acabaria por substituir a “comissão”. Essa entidade, a Associação do Povo de Aivados, que em termos práticos substituiu a “comissão”, possui uma direcção, um conselho fiscal e uma assembleia geral. O presidente da direcção, António Ventura, explica-nos que, “embora a Associação possua estatutos, para nós, o que tem mais importância é o nosso regulamento interno, que dantes era apenas oral e que agora, aos poucos, começa a ser redigido”. No entanto, por força da tradição, os moradores continuam a tratar os responsáveis da associação por “comissão”.

E é esta “associação/comissão” que continua a governar, a gerir os interesses da comunidade, sendo periodicamente todos os assuntos discutidos em assembleia geral de moradores. Hoje, por motivos legais e burocráticos, colocam-se novas tarefas aos responsáveis da aldeia, tanto mais que, nos últimos anos, graças a uma boa gestão, o património da comunidade tem crescido, existem constantes entradas e saídas de dinheiro, há contas bancárias, enfim, é preciso uma contabilidade organizada, muito diferente daquela que existia há algumas décadas.Por exemplo, presentemente, os terrenos conhecidos como “folhas”, que até há poucos anos eram explorados individualmente pelos moradores interessados, passaram a ser explorados directamente pela Associação do Povo de Aivados, que possui vários tractores e alfaias agrícolas. Os pastos desses terrenos já não são vendidos a terceiros (agricultores vizinhos) mas sim aproveitados para o rebanho colectivo, que possui mais de 500 cabeças de ovinos. Ou seja, a Associação, como pessoa colectiva, passou a funcionar como uma empresa agrícola. E não só.E não só porque, além das vertentes agrícola e pecuária, a Associação tem a seu cargo outras tarefas, tal como, por exemplo, renovar um contrato de arrendamento com uma empresa que explora uma pedreira dentro dos terrenos comunitários. Para António Ventura, “tão ou mais importante do que a verba envolvida no aluguer desse terreno – verba que dá um certo desafogo financeiro à comunidade – existem outras questões à margem também importantes, como a empresa criar postos de trabalho aos moradores da aldeia ou, por outro lado, respeitar as questões ambientais”.
A acção dos “governantes” da aldeia também se faz sentir nos contactos com o poder local (Junta de Freguesia e Câmara Municipal), em obras de beneficiação de espaços públicos e mesmo na aquisição de prédios urbanos ou construção de algumas obras, como seja a casa mortuária.Uma das próximas metas da Associação do Povo de Aivados é realizar obras de beneficiação num prédio comunitário e transformá-lo em sede e arquivo, “um arquivo seguro – no dizer de António Ventura – onde possa ser guardada toda a documentação relacionada com a história da aldeia, nomeadamente os manuscritos, hoje à minha guarda, na minha casa, que naturalmente não oferece condições de segurança, porque, além da humidade normal de uma casa, que estraga documentos, é sempre possível um fogo, um assalto ou outra anomalia qualquer”.

“Tudo é de todos, nada é de ninguém”

Entre as várias lições que se podem retirar desta aldeia comunitária, além de que a união e a persistência demonstradas pelo povo durante várias séculos foram compensadas, é uma nova doutrina (consubstanciada na prática) na área da economia política. Ou seja, à margem de todas as doutrinas económicas, o povo de Aivados conseguiu, durante séculos, explorar e utilizar um solo e outros bens materiais colectivos em regime de propriedade individual. Para tal, usaram o princípio “Tudo é de todos, nada é de ninguém”.
Vejamos como é que o sistema funciona há quase cinco séculos – com pequenas variantes de adaptação ao longo dos tempos, como sucede presentemente, por a agricultura já não dar rendimento suficiente:


O território comunitário, com 400 hectares, foi desde sempre divido em dois círculos concêntricos, à volta da aldeia, para efeitos de exploração agro-pecuária. O círculo interior, junto à aldeia, tem o nome de “ferrageais”; o exterior, de “folhas”. Todo o casal (ou pessoa individual, no caso de solteiros ou viúvos) tem o direito de usufruir de uma porção desse círculo, dividido em tantas parcelas quanto os interessados. Por sorteio ou adrego (“adregue”, como se diz incorrectamente na aldeia), cada casal recebe uma porção de terreno que pode explorar (geralmente pequenas hortas, com alguns animais) enquanto reside na aldeia.


O círculo exterior, ou “folha”, é dividido em tantas partes quantas as requeridas, por alturas do Natal, pelos moradores. De três em três anos – ou seja, ao fim de um ciclo de exploração: alqueive, cevada, trigo –, havia um novo sorteio, o que vinha permitir, através de um processo de rotatividade, que todos explorassem os melhores e os piores terrenos. Os moradores que, por qualquer motivo (terem outra actividade profissional, por exemplo), não estavam interessados numa parcela nas “folhas” e abdicassem a sua parte a favor da comunidade, recebiam, por alturas do Natal, uma compensação monetária (que variava de ano para ano, em função dos lucros), que outrora tinha o nome de “esmola”. Presentemente, devido à crise na agricultura e por existirem cada vez mais outras alternativas profissionais, por decisão de todos, em assembleia geral, as “folhas” passaram a ser exploradas pela Associação do Povo de Aivados, recebendo os moradores, perto do Natal, uma quantia em dinheiro em função dos lucros obtidos na exploração dos terrenos – nas vertentes agrícola, pecuária (o rebanho comunitário possui mais de 500 cabeças de ovinos) e aluguer de uma parcela para exploração de uma pedreira por parte de uma empresa.Durante muitos anos, as pastagens das “folhas” foram vendidas a agricultores vizinhos, servindo essa verba para pagar contribuições e efectuar pequenas obras, como arranjar um poço ou efectuar obras de beneficiação de ruas.Embora não existam muitos registos das actividades agrícolas e pecuárias,sabe-se, por exemplo, que em 1936, as “folhas” foram divididas por 127 moradores. Em 1945, a escola primária local atingiu o seu máximo em alunos, 45, entre jovens da aldeia e dos montes circundantes.A partir dos anos Sessenta, muitos aivadenses começaram a deixar a aldeia e a procurar melhores condições de vida na zona metropolitana de Lisboa, sobretudo na zona do Barreiro. Isto porque a agricultura que se praticava era de subsistência, por processos artesanais, insuficiente, pois, para manter as famílias, algumas das quais com muitos membros.


Todavia, um dado deve ser sublinhado: enquanto os moradores de outras aldeias, sem terrenos, estavam sujeitos aos caprichos (leia-se: exploração) dos agrários da região, os aivadenses tinham onde “cair mortos”, já que possuíam terreno para construir a sua própria casa, terrenos (“folhas”) para fazer sequeiro e terreno (“ferrageais”) para ter a sua horta (com favas, ervilhas, couves, animais de capoeira, porcos...), podendo ainda vender a sua mão de obra a agrários da região.


Abílio Pereira de Carvalho tira duas conclusões interessantes do “modos vivendi” da pequena comunidade: “A primeira, é o apego à defesa e preservação de um solo colectivo, do qual cada um pode usufruir parte sem dela se tornar dono perpétuo; a segunda, o apego à produção individual, que põe nas mãos de cada um o fruto do seu trabalho e a liberdade de o consumir de acordo com a visão que tem da economia, em termos de gastos e poupança”.

Uma aldeia pouco conhecida

Exceptuando o artigo de Abílio Pereira de Carvalho, com alguma profundidade de análise
histórica, este caso único (aldeia comunitária) no Baixo Alentejo não tem merecido grande atenção, nomeadamente por parte da antropologia cultural e da investigação jornalística. É mesmo um caso um tanto desconhecido a nível nacional e mesmo regional. Algumas notícias (referências) publicadas pela comunicação local, regional e nacional foram insuficientes para chamar a atenção do grande público para a existência da aldeia comunitária de Aivados.


Na área da antropologia, existe, felizmente, um trabalho de mestrado, efectuado em 1997, por Maria Inês Pinto Fonseca
. Esta ex-aluna da Faculdade de Ciências Social e Humanas permaneceu, durante oito meses, na aldeia, tendo efectuado um trabalho com muita profundidade, inclusive conseguiu recuperar algumas tradições entretanto perdidas pelos aivenses.


A sua dissertação de mestrado em antropologia, com o título “ O dia em que deixaram de comer de boca fechada – Memórias de um conflito social – Formas de resistência em meio rural”, é um trabalho que deve ser consultado por quem desejar aprofundar este tema. Existe um exemplar do trabalho na Associação do Povo de Aivados.
A “República” dos Aivados

A 22 e 29 de Setembro de 1982, o “Diário do Alentejo” publicou um extenso artigo, dividido em duas partes, assinado por Abílio Pereira de Carvalho, com o título “A República dos Aivados – Aspectos da Vida Comunitária numa Aldeia Alentejana desde o Séc. XVI”, que divulgava, por um lado, todo o processo de “conquista” do território a favor do povo dos Aivados, e, por
outro, descrevia como se processava a utilização e a exploração comunitária do território e como era “governado”.

A primeira parte do artigo baseava-se sobretudo em cópias dactilografas dos manuscritos existentes há vários séculos, hoje encadernados e na posse do presidente da Associação do Povo de Aivados, António Ventura. O artigo revelava, em pormenor, o conflito jurídico existente, entre o povo de Aivados e a Câmara Municipal de Castro Verde, no mínimo, desde 1562, até 1655 – ou seja, durante 93 anos –, ano em que D. João IV deu o seu veredicto final e acabou com a questão, dando razão ao povo de Aivados.

Dizemos que o caso teve início, no mínimo, em 1562, uma vez que os manuscritos existentes referem essa data, mas não revelam dados mais para trás, nomeadamente como, por quem e em que ano é que os terrenos (400 hectares) foram doados ao povo de Aivados. Um trabalho de investigação que a Associação do Povo de Aivados gostaria que alguém, com capacidade,
fizesse. Mas o caso não ficaria sanado por aqui, já que, no século XIX, um agrário com terrenos contíguos aos comunitários deslocou, ilegalmente, os marcos que delimitavam a sua herdade, tendo usurpado 118 hectares ao povo de Aivados, parcela essa que chegou a estar registada na conservatória predial em nome da família Falcão. Apesar da contestação, durante mais de um século, só depois de 25 de Abril de 1974 é que os aivadenses voltaram à carga e tentaram recuperar esses terrenos. O processo judicial teve início em 1975 e arrastar-se-ia durante 16 anos. Defendido pelo advogado Celso Pinto de Almeida, o povo de Aivados acabaria por ganhar mais esta batalha jurídica, em 1991, travada inicialmente no Tribunal de Ourique, depois na Relação de Évora e por fim no Supremo Tribunal de Lisboa.

Voltemos aos manuscritos, ou melhor, ao artigo de Abílio Pereira de Carvalho. O articulista começava por referir que “não foi sem dificuldades que os antepassados dos actuais moradores legaram aos seus vindouros o espaço com as fronteiras que estes hoje possuem e usufruem”. Diz a seguir:

“A luta travada na ‘conquista’ desse espaço teve como contendores, por um lado, os habitantes, ao tempo, dessa pequena povoação e, por outro, os oficiais da Câmara da vila de Castro Verde: os primeiros, porque se consideravam os legítimos herdeiros dos ‘rossios’ que circundavam a aldeia e os segundos, representantes do poder local, porque pensavam que os terrenos tinham o estatuto de ‘baldios’ e não de ‘rossios’, resolveram aforá-los e pô-los a render para oconcelho”.


Curiosamente, as armas utilizadas na contenda foram as penas de pato e o campo de batalha as instâncias judiciais, não desarmaram uns e outros e a “guerra” durou cerca de um século, com vitória para os aivadenses. Com humor, Abílio Pereira de Carvalho refere que, “saído de Castro Verde, da instância judicial base (devida a recursos), o processo, caminhando a passo de mula, atravessou os coutos, os baldios, os morgados, as capelas, as comendas, descansou à sombra dos chaparrais, ziguezagueou por entre estevas e searas, e assistiu, algures, às lutas pela independência de Portugal contra o jugo castelhano, já que é D. João IV que lhe põe ponto final em 1655”.

(este texto foi publicado há alguns anos atrás no Indymedia - Portugal)