5.1.09

A Turma, filme do realizador Laurent Cantet, vai ser exibido pelo Cineclube de Barcelos ( dia 7 de Janeiro às 21h30)




A TURMA, DE LAURENT CANTET
7 DE JANEIRO ÀS 21:45
NO AUDITÓRIO DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE BARCELOS‏

http://www.zoom.pt/


A TURMA
Palma de Ouro - Cannes 2008
Realização: Laurent Cantet
Argumento e Diálogos: Laurent Cantet, François Bégaudeau, Robin Campillo a partir do romance « Entre les murs » de François Bégaudeau (Editions Gallimard, Verticales, 2006)
Montagem: Robin Campillo, Stéphanie Léger


Sinopse:
François, um professor, e os seus colegas, preparam-se para um novo ano escolar no liceu de um bairro problemático em Paris.
Cheios de boas intenções, estão decididos a não deixarem que o desencorajamento os impeça de tentar dar a melhor educação aos seus alunos.
As culturas e as atitudes diferentes frequentemente colidem dentro da sala de aula, um microcosmos da França contemporânea. Apesar de divertidos e inspiradores, tanto quanto os adolescentes podem ser, o seu difícil comportamento pode, no entanto, pôr em causa o entusiasmo de um professor pelo seu trabalho mal pago.
François insiste num atmosfera de respeito e empenho. Sem ser rabugento ou inflexível, a sua extravagante franqueza surpreende muitas vezes os alunos. Mas a ética da sua sala de aula é posta à prova quando os estudantes começam a desafiar os seus métodos.

Críticas:

Le Monde
Excepcional. Consegue ser sério, subtil, incisivo, perturbador e cómico. A sua recompensa é indiscutível. O seu impacto ultrapassa largamente as fronteiras francesas. (…) História de um ano escolar, condensado em duas horas e por isso reduzido aos seus momentos de tensão, de crises, de acontecimentos significativos. História de um pedagogo adulto, optimista, confrontado com a juventude, o imprevisto, a intolerância, a ingratidão, as dificuldades de comunicação, os fossos dialécticos, o choque de culturas, as armadilhas, os riscos da profissão, a solidão. (…) A magia do filme está na destreza com que Cantet capta esta vida fervilhante entre quatro paredes, este blá blá permanente, a vergonha de uns e a conversa dos outros, as eternas palavras, debates agitados, protestos contra um professore demasiado enervado, irrupção brutal da emoção… (…) Fundado na maiêutica, este filme presta homenagem a este professor capaz de conduzir os alunos a descodificar o saber, falando com eles como se fossem adultos.

Télérama
Um confronto constante, democrático, entre um professor e os seus vinte e quatro alunos – melhores ou piores, mais ou menos indisciplinados, mas todos sem excepção com um papel importante neste mosaico humano. (…) A energia é a palavra-chave. Energia transbordante de uma juventude muito pouco “gaulesa”, multicultural, plural, que raramente foi filmada de forma tão positiva. (…) Não esperemos a verdade definitiva sobre a escola. Nem estados alarmistas, nem professores com um optimismo beato, o filme consegue mostrar este lugar como o espaço de um formidável jogo social. Um jogo de poder, de representação, de dissimulação, de estratégias várias, em que cada um tenta, melhor ou pior, distinguir-se. Não é por acaso que o filme termina com um jogo de futebol, espécie de prolongamento dos jogos a que assistíramos. Um empate a zeros, mas com um belíssimo jogo.

Cahiers du Cinéma
Um projecto de uma extrema coerência. A escola é o tema dos temas. É o lugar público por excelência, o primeiro que encontramos na vida. (…) Numa dialéctica permanente, ora alegre, ora trágica, Cantet desenha o retrato cruzado de um professor pela sua escola e da sua escola por um professor: o esboço concreto de um universo escolar que vai da amortização do custo da máquina de café até às estratégias para travar o insucesso escolar. No fim do ano, a escola de Cantet aparece sobretudo como um lugar político. Um grande labirinto onde um poder se exerce das mais variadas formas: o voto, a assembleia, o comité. Não é tanto uma verdade sobre a instituição mas sim um contra-campo dirigido aos espectadores. E estará provavelmente aí o sucesso do filme: o desejo dos espectadores de participar nos jogos de poder que se desenham no ecrã, de participarem nas utopias efémeras que aí florescem.

Entrevista Laurent Cantet e François Bégaudeau

Entrevista por Philippe Mangeot

Laurent Cantet - Antes da rodagem de Vers le Sud, tive a ideia de um filme sobre a vida de uma escola. Rapidamente, o projecto configurou-se de forma a decorrer entre muros. Cada vez mais as pessoas falam em tornar as escolas santuários. Eu queria, pelo contrário, mostrá-la como uma caixa de ressonância, um lugar atravessado pelas turbulências do mundo, um microcosmos onde se jogam de forma muito concreta as questões de igualdade ou desigualdade de oportunidades, de trabalho e de poder, de integração cultural e social, de exclusão. Desenvolvi uma cena no conselho de disciplina, que eu via como uma espécie de “caixa negra” da escola. Na estreia de Vers le Sud encontrei François que apresentava na mesma altura um novo livro, “Entre les Murs”. O seu discurso era um contra-ataque às acusações à escola de hoje: pela primeira vez um professor não escrevia para acertar contas com os adolescentes, apresentados como selvagens ou brutos. Li o livro e senti imediatamente que trazia duas coisas ao meu projecto inicial: primeiro, uma matéria, uma espécie de lado documental que me faltava, e que eu pensava construir passando eu próprio algum tempo numa escola; e sobretudo, a personagem de François, a sua relação tão frontal com os alunos. Ele condensou e incarnou as diferentes facetas de professor que eu tinha imaginado.

François Bégaudeau - O livro queria documentar um ano escolar, ao nível das experiências quotidianas. Não tinha por isso uma linha narrativa clara, não era ficção em torno de um acontecimento particular. Eram sobretudo factos, que seguiam cada um o seu curso. Neste material, Laurent e o co-argumentista Robin Campillo puxaram pela linha narrativa que lhes interessava. O livro era uma soma de situações, eles escolheram algumas para as ficcionar. Não tinha personagens propriamente ditas. Eles criaram-nas, às vezes operando enxertos entre vários miúdos do livro.

Laurent Cantet - Queríamos que este fio narrativo não fosse logo evidente, e que as personagens se desenhassem progressivamente, sem os termos apercebido logo. O filme é antes de mais a crónica da vida de uma turma: uma comunidade de 25 pessoas que não se escolheram, mas que são chamadas a estar lado-a-lado e a trabalhar entre quatro paredes durante um ano. Inicialmente, Souleymane é apenas um aluno dessa turma, igual aos outros. Depois de uma hora de crónica, uma história “toma” forma, em que ele é o centro. Só olhando retrospectivamente percebemos que ele já estava lá.

François Bégaudeau - Durante a escrita do argumento a minha intervenção foi sobretudo no lado documental. Alguns episódios podiam funcionar muito bem narrativamente mas, se me parecessem improváveis na realidade da escola, ajustava-os.

Laurent Cantet - Escrevemos uma sinopse inicial, uma coluna vertebral do filme, destinada a ser irrigada e modificada durante o ano de preparação, segundo um dispositivo que já tinha experimentado em “Recursos Humanos”. Tratava-se de partir de uma escola que existisse e englobar no processo do filme todos os actores da vida escolar. A primeira porta que abrimos, a da escola Françoise Dolto em Paris, no 20º bairro, foi a boa (até ai teríamos filmado se não estivesse em obras): todos os adolescentes do filme são alunos em Dolto, todos os professores dão lá aulas, Julie Athénol é a directora, o senhor Simonet, presidente do Conselho Executivo. E à excepção da mãe de Souleymane, cujo papel é mais ficcional, os pais do filme são os pais dos alunos na vida real.


Laurent Cantet - O trabalho com os adolescentes começou no início de Novembro de 2006 e durou até ao fim do ano escolar. Eram ateliers abertos, todas as quartas-feiras, da parte da tarde, com todos os alunos do quarto e do terceiro ano que quisessem. Contando com aqueles que apareceram uma única vez, vimos cerca de 50 alunos. Quase todos os que formam a turma no filme são os que apareceram todo o ano. Os outros foram deixando de aparecer.

François Bégaudeau - 25 em 50, estamos longe dos números de que se fala quando se discutem os castings com adolescentes “encontrámos 3000 miúdos e de repente encontrámos a pepita de ouro”. Mas não, há pepitas em todo o lado.

Laurent Cantet - Ao logo do ano, uma turma formou-se. François participava em todos os ateliers. Aprendemos progressivamente a conhecê-los e a explorar em conjunto o que eles poderiam acrescentar da sua personalidade aos esqueletos das suas propostas. As personagens do argumento inicial, que só existiam enquanto pontos de partida para determinadas situações, foram-se precisando. O jovem chinês do livro, por exemplo, interessava-me pelo seu domínio frágil do francês e por causa do episódio de expulsão dos pais. Mas o Wei do filme deve muito ao rapaz que o interpreta. Não escrevemos uma palavra do seu auto-retrato, nem da parte em que ele explica que às vezes tem vergonha dos outros.

François Bégaudeau - No livro, Ming era muito estudioso : quase não falava para não dar erros. Wei é super falador. Desde as primeiras sessões dos ateliers, lançou-se em monólogos de meia hora, sem nenhuns complexos.

Laurent Cantet - Todas as figuras se apresentaram, sendo as personagens mais ou menos construídas pela ficção. Artur, o gótico, por exemplo, não estava no argumento. Algumas semanas antes da rodagem, a responsável de guarda-roupa veio vê-los e perguntou se algum deles queria ser gótico. Porque não? Arthur aceitou a proposta. Imaginei que talvez quisesse viver uma experiência que não ousava verdadeiramente viver. Saltou para a ficção. Dei uma reviravolta com esta decisão e pedi à sua mãe que o discutisse com o professor. Foi o único encontro que realmente orientei. Os outros pais propuseram eles próprios os temas, projectando nas personagens o que eles esperavam dos próprios filhos.

François Bégaudeau - Para os adolescentes a maioria das suas personagens são composições. À saída do filme, poderíamos dizer “estes miúdos são formidáveis, mas não são propriamente actores, porque são naturais, estão a interpretar a sua própria vida! Nada de mais falso!
Laurent Cantet - Nas improvisações, durante as sessões do atelier, tentámos empurrá-los em determinadas direcções, para perceber se poderiam fazer uma ou outra cena. Um dia, pedi ao Carl para responder ao professor e ele propôs uma cena com uma violência inesperada. Alguns segundos depois, propus-lhe uma outra situação: ele chega a outra escola, foi expulso, agora quer passar por bom rapaz. E, automaticamente, ele compôs uma personagem comedida, intimidada pelo François. A cena está aliás no filme.

François Bégaudeau - Quando filmámos a cena, no final da aula, em que eu e a Khoumba nos chateamos, pedimos à Rachel, que a interpreta, que fosse realmente chata. Ela tão querida, tão simpática, satisfez bem o nosso pedido.

Laurent Cantet - Quem fez o maior trabalho de composição foi o Frank (o Souleymane no filme), que é um rapaz muito doce, o oposto total da sua personagem. Tivemos de fabricar com ele essa imagem de pequeno rufia, mudámos por completo o aspecto dele, ao ponto de, no primeiro ensaio, ele ter a sensação de estar mascarado. Foram aliás estas roupas que o ajudaram a encontrar a personagem. Com o decorrer das cenas, surpreendeu-me pela violência de que era capaz. Esméralda é Esméralda, monolítica, perfeitamente à vontade na relação de força e no conflito. O que mesmo assim não a impediu de incorporar todos os conselhos que lhe dei. Penso, por exemplo, na descrição que fez de A República. Na véspera da rodagem, François falou-lhe do livro, que ela não tinha lido. Antes de apontar a câmara, pedi-lhe que falasse de Sócrates como se ela o conhecesse pessoalmente. E, desde a primeira take, que ela nos deu uma explicação justa e lacunar do livro. Fiquei bastante emocionado, como ficaria um professor num desses momentos.

François Bégaudeau - Paralelamente a este à vontade nas improvisações, é preciso sublinhar que, uma vez encontrada a cena, eles eram capazes de a refazer de forma idêntica, com uma naturalidade e uma precisão de interpretação incríveis. Fossem os alunos ou os professores, nunca senti que alguém sentisse um impasse na representação. Pialat dizia: on oublie toujours que les gens sont des « bêtes à jouer ». É esse o caso dos adolescentes do filme e talvez de todos os desta geração. Este saber é afinado pela escola, porque é uma incitação permanente ao jogo de representação, à dissimulação, à batota. Os maus alunos têm muitas vezes este talento, porque devem compensar as suas dificuldades pela conversa, pela má fé, pela invenção.

Laurent Cantet - Quando peço a um aluno que interprete um aluno, quando peço a um professor para interpretar um professor, não estou à espera que façam deles mesmos. Gosto da ideia de recriação, de representação de si que a interpretação implica. Podemos também construir personagens baseadas na imagem que os actores têm deles próprios, a sua forma de falar, a sua maneira de ser. Os professores, por exemplo, foram implicados muito cedo na elaboração da sua personagem, à semelhança dos alunos. Durante as sessões de improvisação, reflectiram em conjunto nas diferentes nuances das cenas, questionando nesse momento as suas próprias práticas, ou contestando as propostas que eu fazia. É uma das fases mais apaixonantes de um filme. E esta construção tem sempre qualquer coisa de misterioso. Nunca meço exactamente o que induzo e depois de uma cena filmada tenho dificuldade em saber exactamente quem trouxe o quê.


Laurent Cantet - Os adolescentes nunca tiveram o argumento nas mãos. Percebemos, quando eles improvisavam a partir de situações que lhes dávamos, que eles encontravam certas expressões, certas construções de frases que François tinha no livro. Como se estivéssemos a lidar com arquétipos da língua ou as suas preocupações.

François Bégaudeau - A maioria dos filmes sobre a adolescência mostram-na sobretudo muda, à excepção, é claro, de “A Esquiva”. Para nós não havia dúvidas: o que domina em A TURMA é a adolescência viva e loquaz e não a adolescência melancólica e inibida. Cada espectador é livre de imaginar Esmeralda a sonhar sozinha no quarto, mas o filme só a mostra na sala de aula, em que a sua presença a torna um puro bloco de vida. Mas, na questão da linguagem, A TURMA propõe algo diferente do filme de Kechiche. O mundo de “A Esquiva” é partilhado entre aqueles que sabem sempre o que dizer em todos os momentos e aqueles que não têm este talento e que por isso estão perdidos socialmente e escolarmente. 
A TURMA trabalha, pelo contrário, na forma como as lacunas de linguagem afectam toda a gente: todos os alunos são susceptíveis de ter momentos em que dominam a fala, mas isso pode descarrilar de repente – tanto para os alunos, como para os professores.

Laurent Cantet - Às vezes há um verdadeiro júbilo linguístico, pouco conforme ao que esperamos deles. E no minuto seguinte, já não conseguem : “sei perfeitamente o que quero dizer mas faltam-me as palavras”.

François Bégaudeau - Passamos frequentemente da fluidez à impotência e o contrário. O filme recusa os lugares–comuns: nem as lamentações do défice proclamado da linguagem dos adolescentes nem o maravilhamento beato do génio formidável “daquelas pessoas”.
Laurent Cantet - Todo o filme é construído à volta da linguagem. Queria filmar esses jogos de linguagem tão frequentes numa sala de aula: pouco importa a força e a pertinência das posições, o que conta é ter a últimapalavra. É um jogo em que os adolescentes são excelentes, uma espécie de retórica encadeada para a qual os professores são frequentemente empurrados. Há tantos mal-entendidos que faz com que às vezes não se compreendam ou só compreendam metade. É o quiproquó sobre o significado da palavra “galdéria” que espoleta o conflito. Ou a palavra, demasiadas vezes repetida, por François no conselho de disciplina – “escolarmente limitado” que, na boca dos delegados se resume a um inaceitável “limitado” – que vai levar Souleymane ao conselho de disciplina.


Laurent Cantet - Queria que a rodagem seguisse o trabalho de improvisação dos ateliers, com a mesma liberdade. O vídeo de alta definição era por isso indispensável. Tinha constatado em “Recursos Humanos” que o custo e peso do 35 mm deixam pouca margem à improvisação. Para A TURMA queria pelo contrário conseguir filmar em continuidade durante 20 minutos, mesmo quando não acontecia nada, porque sabia que bastaria uma frase para tudo recomeçar. Nas cenas da turma, François começava uma aula com um determinado assunto. Era preciso que a determinado momento se operasse uma viragem. Tínhamos explicado a situação aos dois ou três alunos que deveriam conduzir a cena, indicando-lhes os momentos- chave: quando François falasse de tal ou tal assunto a sua reacção deveria ser de determinada maneira. Mas eles não sabiam como é que nós chegávamos a esta etapa. Os outros descobriam os acontecimentos ao longo da take. François conduzia por isso a cena como se conduz uma aula e eu podia intervir durante as takes, reorientar a cena, pedir para alguém precisar uma ideia, alguém reagir a um comentário, etc. Era impressionante vê-los retomar instantaneamente, com a mesma energia que tinham antes de os interromper, mas integrando perfeitamente os conselhos.

François Bégaudeau - Evidentemente, este tipo de dispositivo adaptava-se especialmente a uma cena com uma turma : porque um professor tem de facto de dar a palavra aos alunos e mesmo provocá-la no momento adequado. O mesmo com os pais dos alunos. Tinha por isso em mente as indicações do Laurent e tentava que tudo acontecesse nos momentos-chave que estavam previstos.

Laurent Cantet - Percebi que iríamos precisar de três câmaras : uma sempre com o professor, outra com o aluno que conduziria a cena e uma terceira que pudesse apanhar outras coisas : uma cadeira em equilíbrio em cima de um pé, uma rapariga a cortar os cabelos da colega, um aluno que sonha e depois acorda – detalhes do quotidiano de uma turma que nunca conseguiríamos reconstituir. Mas essa câmara deveria também adivinhar quando alguém iria tomar a palavra, os pequenos acontecimentos que faziam oscilar uma cena. A sala de aula era quadrada, transformámo-la em rectangular criando um corredor técnico de uns dois ou três metros. As três câmaras estavam do mesmo lado, com uma orientação sempre idêntica: o professor à esquerda, os alunos à direita: raramente estamos no eixo dos olhares. A ideia era filmar as aulas como jogos de ténis – o que exigia pôr o professor e os alunos em igualdade. Estava em frente aos três monitores e ia soprando ao câmara para ele apontar para tal ou tal sítio porque suspeitava que lá se iria passar qualquer coisa. Com o François, aprendemos pouco a pouco a atrasar ligeiramente o momento em que alguém iria tomar a palavra de forma intempestiva, para que a câmara estivesse pronta. A forma como o François conduzia cada cena, depois de termos discutido em conjunto as durações e os resultados, exigia uma cumplicidade que raramente se atinge entre um realizador e um actor - regra geral o actor faz o que o realizador lhe sugere – ou entre um argumentista e um realizador. No seu processo, A TURMA é diferente de todos os meus outros filmes, porque provém de uma realidade realmente partilhada.

Laurent Cantet - Queria ser justo com todo o trabalho que se faz no espaço de uma escola. Numa turma, há sempre inteligência em jogo – nos malentendidos e confrontos também. Era esta inteligência que ambicionávamos cada vez que iniciávamos uma cena. No diálogo entre professor e alunos, entre os alunos e entre os professores há ideias que são colocadas em questão, que se compreendem ou mudam. Ora esta forma de apostar na inteligência correspondia à forma muito singular e muito pouco ortodoxa como François exerce o seu trabalho. 



François Bégaudeau -Tentámos que as cenas correspondessem a momentos clássicos de transmissão de conhecimento : os verbos, o conjuntivo, Anne Frank, etc. Depois, há um desvio. Assumo este desvio voluntariamente como pedagogo. Mas também há aí um “efeito de arte”, tanto no livro como no filme. Ou seja, mesmo se tentarmos uma colagem ao real e eventualmente à sua monotonia, um livro e um filme encaminham-se naturalmente para a excepção. Quando o livro saiu disseram-me muitas vezes “as aulas são realmente animadas”. Mas isso acontece porque guardei sobretudo esses momentos, porque isso enriquecia o livro! Quando todos estão calados, não há cena. Nas aulas entre as 8h e as 9h, em que os alunos estão a dormir, não há nada para ver e nada para contar.

Laurent Cantet - São de qualquer forma estes momentos de desvio que me interessam e que o filme defende. Poucos professores assumem tantos riscos com os alunos: o risco de derrapar, o risco de falhar. Evidentemente é muito mais fácil dizer que conseguimos transmitir tal ou tal conhecimento porque demos uma aula do que inspirá-los pelo método. Isso exige um sangue-frio que muitas pessoas talvez critiquem a François, mas que muitas pessoas também invejam: há algo de Sócrates neste homem!

François Bégaudeau - Nem tanto assim! Não fiz a referência ao Sócrates como uma piscadela de olho, no livro. Um dia, um aluno falou-me da República. Guardei essa referência no livro como um momento de graça. Laurent quis guardá-la também no filme.

Laurent Cantet - É tão boa que me perguntei a um dado momento se não seria demasiado didáctica. De qualquer forma se quisermos ver no filme uma tomada de posição pedagógica, assumo-a completamente. Quando o professor fala com os alunos como falaria a adultos pode ser duro, mas seria mais insultuoso se ele estivesse sempre a falar com pézinhos de lã. E ser duro também é uma forma de lhes reconhecer um papel activo no que acontece numa aula. O mesmo acontece com o uso da ironia, que é uma forma de solicitar aos adolescentes que usem a sua faculdade de descodificar. Este desejo de esventrar que François tem frequentemente parece-me ser uma forma de respeito para com os alunos, porque isso faz com que ele os considere como interlocutores que valem a pena. A sua pedagogia consiste em ir sempre “procurar” os alunos, mesmo quando pode ser doloroso, mostrando-lhes que os seus raciocínios no início ainda não são suficientemente elaborados para serem válidos. Se é possível falar de democracia na escola, é aí que a encontramos.
Frassores há ideias que são colocadas em questão, que se compreendem ou mudam. Ora esta forma de apostar na inteligência correspondia à forma muito singular e muito pouco ortodoxa como François exerce o seu trabalho.

François Bégaudeau - A minha personagem é construída, claro. Mas há sequências que reivindico enquanto professor. Penso na cena em que Souleymane me pergunta se sou homossexual. A maioria dos professores teriam cortado logo aí a discussão, ou até mesmo ter pedido a caderneta do aluno. Eu interesso-me por estes momentos, porque percebo que há alguma coisa que podemos tirar da situação. Agir como Sócrates, destruir a visão arcaica do aluno em questão. O contrato igualitário é isso: eu chateio-vos mas aceito que num determinado momento vocês utilizem o sarcasmo comigo ou que digam que sou homossexual.

Laurent Cantet - Não queríamos fazer de François um super-herói. Quando arriscamos, as coisas podem correr mal, suscitar mal-entendidos. Trabalhámos nesse sentido.

François Bégaudeau - Se nos focássemos inteiramente na agilidade verbal e na eloquência, estaríamos a fazer um “Clube dos Poetas Mortos” de esquerda, acrescentando o lado social e sério de Cantet. Isso não nos divertia nada.

Laurent Cantet - Durante as primeiras takes na cena de confronto no corredor, o François estava a dominar demasiado a situação. Pedi-lhe para perder o pé, ficar destabilizado, porque ele também sabe que cometeu um erro, e também porque está em minoria. Nestes conflitos, o professor não é sempre o mestre do jogo. Nas aulas coloca questões que vão até ao osso, mas os alunos também têm perguntas que o metem em dificuldades. Penso, por exemplo, na cena em que ele responde que a diferença entre a linguagem escrita e a linguagem oral se percebe com a intuição. Ele chega ao fim dos seus argumentos, mas é assaltado por uma série de perguntas dos alunos a que é suposto responder.

François Bégaudeau - Há um momento em que ele diz, depois de ter pedido aos alunos para redigirem os seus auto-retratos, “a vossa vida é interessante”. Pedagogicamente, ele tem razão para fazê-lo. Mas Angélica percebe isso: “de facto, não me parece que a nossa vida o interesse assim tanto”. Ela tem razão! Todos têm razão nesta história.

Laurent Cantet - É também o caso dos professores, quando discutem entre eles as suas próprias práticas. Quando estão no conselho de turma de Souleymane, o ponto de partida é evidente: ele será excluído. Mas esta evidência não é uma certeza. Pelo contrário, ninguém parece estar muito convencido do que diz: começam por afirmar uma coisa, na frase seguinte introduzem uma nuance, de tal forma que o que foi dito agora parece incerto. Gosto de mostrar em “tempo real” como se produz uma reflexão verdadeira. Esta cena também permite marcar a linha entre François e os outros professores. François é parte de uma discussão comum, não está contra os outros, é mais um entre os outros.

François Bégaudeau - Acho que ao contrário de uma certa tradição do cinema francês, A TURMA é um filme sem um culpado puro.

Laurent Cantet - O filme não procura nem defender uns, nem mudar os outros. Todos têm as suas fraquezas e os seus pontos fortes, os seus momentos de graça e de mesquinhez. Cada um pode experimentar alternadamente a clarividência ou a cegueira, a compreensão ou a injustiça. Acho que o filme diz qualquer coisa bastante positiva: a escola é, efectivamente, por vezes, muito caótica, é inútil esconder a cara. Vivemos momentos de desencorajamento, mas também momentos de graça, de imensa felicidade E deste grande caos, nasce finalmente bastante inteligência. François Bégaudeau Estes momentos são suspensos em duas condições: de um lado o professor nem sempre consegue criar um dispositivo que resulte e por outro lado, sabemos bem que a máquina de triar faz o seu trabalho. Mas é verdade que esses momentos estão muito relacionados com o prazer que tenho a dar aulas. Ou de estar numa sala com trinta miúdos e tentar pensar com eles. Quase à mesma altura.

Laurent Cantet - O contrato entre professor e a os alunos rompe-se no último terço do filme, por causa do conselho de disciplina, com o que isso pressupõe de hierarquia e autoridade. Mas não é, no entanto, anulado. Porque todo o filme mostrou uma utopia em funcionamento. Não a afirmação do que a Escola “deveria” ser, mas a experimentação do que a escola pode verdadeiramente ser. E depois chega um momento em que a utopia choca com uma máquina maior que ela, contra algo que se parece com o que acontece fora daquelas paredes. Mas isso não impede que alguma coisa tenha acontecido.

François Bégaudeau - A escola cria sem cesar situações geniais, mas sabemos bem que ela discrimina, não é igual para todos, fabrica reprodução. Esta tensão é a que se sente no filme. Encontro este tipo de tensão nos meus filmes preferidos. No momento de cada cena, há tanta energia que todos são salvos. Mas o movimento do argumento faz com que se caminhe para a ruptura, a impossibilidade, a catástrofe. Cadasituação é uma utopia mas a soma das situações é trágica. É exactamente isso que acontece no filme de Laurent: podíamos ver nele a história de um insucesso, mas também podemos reter os momentos de utopia concreta.