29.12.08

Um Dicionário da Anarquia, organizado por Michel Ragon, acaba de ser editado em França


Na Abadia de Thélème, imaginada por Rabelais, fazia-se o que se queria. Este constituiu um dos antecedentes daquilo que alguns séculos mais tarde se veio a designar por anarquia. As bases deste anti-sistema floresceu no lastro do iluminismo com William Godwin e Charles Fourier, mas o verdadeiro teorizador da anarquia foi, sem dúvida, Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), autor de uma doutrina política socialista que sempre se mostrou extremamente crítica em relação a outra corrente de pensamento, o socialismo de Karl Marx.

Enquanto movimento político propriamente dito, a anarquia só aparece por volta de 1880, pouco depois da morte do aristocrata Michel Bakounine (1814-1876), considerado o pai de todos os anarquismos, e que foi excluído por Marx da Internacional. A anarquia assume-se como um movimento exterior a todos os partidos, e agrega múltiplas variantes e tendências.


«O que há de comum entre o anarquismo individualista, de Stirner a E.Armand, e o comunismo libertário de Kropotkine senão a oposição mais completa ao aparelho estatal ? Assim como, pouco ou nada há em comum entre o pacifismo integral do anarquista Louis Lecoin, e a sua defesa da objecção de consciência, e o nihilismo terrorista, já sem falar do anarquismo cristão ou, até mesmo, do anar-capitalismo»

Michel Ragon acaba de editar em França um Dicionário da Anarquia destinado a esclarecer uma corrente de pensamento e um movimento social muito pouco conhecido pelas pessoas em geral. Um pensamento que Michel Ragon, filho de camponeses, e hoje octogenário ( nasceu em 1924), sempre partihou, e o marcou no seu percurso de autodidacta, desde o tempo que era alfarrabista nas margens do Sena até se ter consagrado como crítico de arte e de arquitectura.

De Proudhon a Cohn-Bendit, de Brassens a Léo Ferré, de Mirbeau a Camus, de Breton a Sartre, de Henry Thoreau a Herbert Marcuse, da Surréalisme ao Situationnisme, sem esquecer desenhadores como o belga Frans Masereel ou o pintor impressionista Camille Pissarro, a família libertária é de uma espantosa riqueza e de uma enorme diversidade, o que constitui simultaneamente o seu ponto fraco mas também a sua maior capcidade de atracção. Ora é todo este panorama que a obra de Michel Ragon, agora editada, pretende dar conta sob o ambicioso título, Dicionário da Anarquia.

Os nunerosos jornais e publicações que pontuam a história do anarquismo atestam essa vitalidade. Basta lembrarmo-nos que o jornal «A anarquia», título publicado por Anselme Bellegarrigue em Abril de 1850, e que foi o primeiro em França a reclamar-se do anarquismo, tinha como subtítulo a expressão «jornal da ordem». Tal não impede que o mesmo título seja escolhido para outra publicação, por Albert Libertad, em 1905, em que se assumia claramente uma postura anti-sindical, anti-obreirista, anti-pacifista, onde a crítica ao álcool e ao tabaco era acompanhada pela defesa do amor livre.

Para ajudar à polémica, a definição que Prodhon dá de anarquia é tudo menos pacifica :

«A anarquia é uma forma de governo, ou constituição, na qual a consciência pública e privada formada pelo desenvolvimento da ciência e do direito se mostra suficiente para a manutenção da ordem e da garantia de todas as liberdades, e em consequência, o princípio de autoridade, as instituições de polícia, os meios de prevenção e de repressão, o funcionarismo, etc, encontram-se reduzidos à mais simples expressão, e em que as formas monárquicas, assim como a forte centralização, são substituídas por instituições federativas e os usos comunais» ( "L’anarchie est une forme de gouvernement, ou constitution, dans laquelle la conscience publique et privée formée par le développement de la science et du droit suffit au seul maintien de l’ordre et à la garantie de toutes les libertés, où par conséquent le principe d’autorité, les institutions de police, les moyens de prévention et de répression, le fonctionnarisme, etc., se trouvent réduits à leur plus simple expression, où les formes monarchiques, la haute centralisation, remplacées par les institutions fédératives et les mœurs communales, disparaissent." )

Até mesmo o lema «Nem Deus Nem Senhor», que é reivindicado pelos anarquistas contemporâneos, resulta de uma expressão de autoria de Blanqui que serviu de título para o seu jornal de 1880.

Não falta sequer neste dicionário a menção do nihilismo dos terroristas russos, referidos por Tourgueniev, Tchernychevski, Dostoïevski ou Nietzsche, ou os terroristas franceses, que se reivindicam anarquistas, desde Ravachol à Bande de Bonnot, ou mesmo da Action directe.
Figura tutelar em todo este movimento é, sem dúvida, Louise Michel (1830-1905), professora e conhecida figura da Comuna de Paris, a quem é reservada uma atença especial nas múltiplas entradas de que é constituído este valioso dicionário da anarquia