6.10.08

Entrevista ao Jornal de Notícias de Jorge Valadas, autor do livro «A Memória e o Fogo»


"É a podridão que mantém o regime"

Jorge Valadas, ensaísta português radicado em França que viveu por dentro o Maio de 68, traça um retrato impiedoso e polémico do século XX nacional em "A memória e o fogo"


O conformismo não encontra lugar na vida e na obra de Jorge Valadas, autor do recente ensaio "A memória e o fogo" (edição Letra Livre), uma incursão desassombrada pelo século XX português.

Nascido em Lisboa há 63 anos, exilou-se em Paris após ter desertado da Guerra Colonial. Desde 1972 tem publicado vários ensaios de índole libertária nos quais a inquietação está sempre presente, como em "O tigre de papel" e "Crónicas portuguesas" (assinados com o pseudónimo de Charles Reeve). Reside entre Paris, Nova Iorque e Tavira.

Analisando o seu percurso, há uma palavra que nos ocorre: insubmissão. As convenções nada lhe dizem?

Não possuo património genético de insubmissão, mas carrego um património cultural dos meus anos de adolescência no salazarismo tardio, sistema opressor e asmático. Como outros, fui o produto dessa dinâmica. Hoje onde estão os que partilharam essa dignidade ? Algures… Poucos, os mais visíveis mediaticamente, venderam o que melhor havia neles para aceitarem a normalização, em nome do sacrossanto realismo democrático.

À distância de 40 anos, como vê o Maio de 68, em que participou?

Há que fazer uma revelação: o Maio de 68 ainda não acabou, ou melhor, está ainda para vir! Foi um movimento de subversão dos valores e das hierarquias, criado pela vibração da vida quotidiana. Foi um desejo de um mundo novo, de viver de uma outra maneira. Nada a ver com reivindicações quantitativas negociáveis. Em Maio de 68 não me lembro de ter uma única vez olhado para o relógio. Era um presente intenso e que durava.

Optou por uma profissão - electricista - que não lhe manietasse a independência crítica. Foi uma escolha ditada pela consciência?

As circunstâncias lá me levaram. A deserção, o exílio, a recusa de optar pelo estatuto de refugiado político, controlado pela Polícia francesa... Enfim, a necessidade de trabalhar para sobreviver. O ofício de electricista deu-me a prova quotidiana que todo o trabalho manual é também trabalho intelectual. Para conceber e realizar uma instalação, o canalizador deve ter capacidades de abstracção e síntese que não são assim tão afastadas das de um universitário banal. Também percebi que o trabalho dito manual me mantinha o espírito livre e motivado para pensar outras questões. Assim foi.

A leitura do nosso século XX em "A memória e o fogo" distancia-se, pela crueza, do que estamos habituados a encontrar. A história social lusitana ainda é ignorada?

Se a minha leitura é assim tão insólita, isso levanta outra questão: por que razão esta história é evitada fora de alguns círculos confidenciais, universitários e outros? Tenho para mim que este silêncio faz parte da obra de reconstrução de um passado conveniente e desinfectado. A que Ministério Público convém que se saiba que houve em Portugal, nos primeiros quartéis do século XX, um forte movimento anarco-sindicalista, portador de um projecto utópico de igualdade social e universalista?

No livro, afirma que "a vida actual carrega um passado em ruínas". A tendência actual acentuar-se-á no futuro?

A fase actual do capitalismo caracteriza-se pela extracção de lucros fenomenais que são orientados para os sectores especulativos, alimentando redes corruptas. Onde funciona, o neoliberalismo significa o empobrecimento das sociedades, com uma riqueza cada vez mais concentrada. Lê-se hoje nos jornais que, em Portugal, 35% dos pobres é gente que trabalha! Precisa de explicação?

A arrogância atribuída às principais forças políticas é um resquício do passado?

As necessidades políticas do neoliberalismo requerem um controlo cada vez mais apertado de sociedades onde as desigualdades aumentam. Por exemplo, o PS renascido dos anos salazaristas ganhou o seu lugar ao sol, não na luta contra o Antigo Regime mas na sua acção contra as tendências radicais. É o partido do 25 de Novembro de 1975. Esta génese marca o partido e os seus 'aparatchiks' até aos dias da corte do vice-rei Sócrates.

Alguns dos problemas que aponta a Portugal são extensivos à realidade europeia, mais a sua "democracia mercantil". Os burocratas de Bruxelas são um óbice ao desenvolvimento e justiça social?

A Europa é este espaço capitalista que a queda do Muro de Berlim impôs como necessidade dos centros do capitalismo. Não foi difícil convencer o pessoal das terrinhas da periferia que a sua conversão em europeus ia trazer-lhes vantagens.

As tentativas de manipulação acontecem todos os dias. Ainda embarcamos em futebóis e esquecemo-nos do essencial?

O patriotismo efémero do futebol é uma última bóia de salvação num país que se afoga. Mais do que um resíduo do sebastianismo, essa histeria exprime algo de mais concreto, de mais real e imediato, a compensação de um grande vazio, a consciência que se vive numa sociedade que já não tem os meios de existir na forma clássica de Estado-Nação. Reduzida a um golfe para ricos rodeado de subúrbios feios, tristes e cinzentos. Não é manipulação, é desespero de uma sociedade sem fôlego que não acredita em nada.

Acredita que o regime irá cair de podre?

Não sou determinista e a política do pior não me convém. Mas é inegável que a vida política é um campo de podridão. Hoje, sem corrupção e especulação não há municípios, não há políticos, não há Estado. Os regimes mantêm-se de pé porque são podres. Cabe a cada um recusar as regras do jogo, não o praticar. Investir as energias e os desejos fora desse campo contaminado, em todas as actividades colectivas e individuais onde ainda se manifestem os valores do tal futuro que mostrou a cara em Maio de 68, no desejo de uma outra vida.