Artigo de Tito Cardoso e Cunha*
Publicado na edição de 7 de Maio de 2008 do JL, Jornal das Letras, Artes e Ideias, que contém um dossier sobre os acontecimentos de Maio de 1968
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Um novo espírito libertário
por Tito Cardoso e Cunha
Maio 68 foi certamente um acontecimento relevante, antes do mais para os franceses, mas foi também e sobretudo um sintoma de toda uma época e do ar do tempo que então se respirava. A francofonia era nesse tempo, particularmente entre nós, uma área cultural de grande influência e que delimitava os interesses e a atenção de sectores sociais com grande visibilidade politica e cultural.
Passados 40 anos, a francofonia não ocupa mais esse lugar, o que torna possível, hoje, reavaliar e recentrar a relevância daquilo de que Maio 68 foi sintoma. E foi sintoma sobretudo do estado de espírito de uma geração, nascida imediatamente depois da guerra e que se confrontava com uma cultura tradicionalmente patriarcal e autoritária. Nuns casos mais do que noutros. Mais entre nós, que vivíamos em ditadura, esquecido que tinha sido, pelos aliados, o ímpeto libertador anti-fascista no fim das hostilidades, em nome da nova guerra fria.
Maio 68 foi o sintoma sobretudo de um novo espírito libertário e anti autoritário que se exprimira também filosoficamente num existencialismo como o sartriano para o qual Maio representou, a nosso ver, o apogeu e simultaneamente o canto do cisne.
Com a sua filosofia libertária, decifrando a existência como um constante exercício da escolha livre do indivíduo, único responsável de si mesmo, Sartre tinha fornecido o background ideológico que iria lançar toda uma geração ao assalto das autoridades e dos seus dispositivos de obediência. Tudo o que vem a seguir, pelo menos em França, Foucault, Barthes, Levy-Strauss, Althusser, etc., já pertence a um outro mundo então nascente.
Hoje, à distância de 40 anos, torna-se no entanto claro que o sintoma Maio 68 foi apenas um elo numa cadeia mais vasta do que aquilo que o etnocentrismo francês poderia fazer crer. Maio 68 começou muito antes e muito longe dos acontecimentos parisienses. Mesmo entre nós que, não nos esqueçamos, vivíamos sob o então mais feroz e simultaneamente mais serôdio dos autoritarismos europeus, a geração do pós- -guerra já tinha iniciado a sua luta seis anos antes, na chamada crise académica de 1962, com todos os seus prolongamentos até 1968-69, em Coimbra. Aí se atingiram níveis de combatividade raramente até então conhecidos com a ocupação policial da Universidade e a greve aos exames.
A nível global não se pode esquecer o que pouco antes, em 1964, se passava na distante Califórnia, então governada pelo conservador Ronald Regan. Aquele que ficou conhecido como Free Speech Movement, desencadeou na sua Universidade, em Berkeley, uma luta pela liberdade de expressão contra o autoritarismo universitário conservador que deixou marcas e teve repercussões em quase todo o mundo estudantil da época. A guerra do Vietnam, então no auge, viria a ser, também na Europa, o leit motiv de todas as reivindicações anti-autoritárias. Era igualmente na Califórnia, bem perto de Berkeley, na cidade de San Francisco, contemporaneamente a Maio 68, que florescia o movimento hippy, na esteira e no lugar de eleição da sua antecedente beat generation.
Mesmo na Europa, Paris não foi o único centro da batalha. Na Alemanha as universidades também se mobilizavam contra os autoritarismos, nomeadamente em torno do emblemático Rudi Dutschke e fazendo circular entre fronteiras personalidades igualmente emblemáticas, como Sartre ou Cohn-Bendit. Sem esquecer, naturalmente, outros nomes de referência como um Herbert Marcuse, este fazendo a ponte entre a Califórnia e a Alemanha, passando pelo resto da Europa.
Foi da Alemanha que saiu também uma das consequências mais gravosas de todo esse movimento geracional, sob a forma militarizada da Rote Armee Fraktion (RAF). Não único, aliás, porque contemporâneas são ainda as Brigate Rosse italianas, se não mesmo a ETA basca, na sua fase anti-franquista.
Uma referência caberá também aos Weather Underground que nesse terreno privilegiado da Califórnia então representaram uma vontade mais violenta de afrontar o establishment e que ainda hoje alguns dissabores causam, ao que parece, à candidatura do senador Barak Obama.
Outros casos houve na Europa, no mesmo ano de 1968, de que pouco se fala, mas cujas consequências ainda hoje persistem e estão activas. É o caso da Bélgica, onde a crise académica de 68, em torno da Universidade de Lovaina, tomou contornos de início semelhantes a todo o restante movimento geracional mas, com o andar dos tempos, inscreveu-se na main stream politics ao ponto de poder ser hoje vista como um momento chave na história da reivindicação nacional(ista) flamenga.
Nessa época, outros fenómenos mais longínquos não deixavam de ter algum eco no espírito combativo e reivindicativo do(s) movimento(s). Era o caso do que se passava, por exemplo, em África com as lutas anti-coloniais, na América Latina com o guevarismo e até no mais que longínquo Império do Meio com a celebrada Grande Revolução Cultural Proletária, então percebida como uma manifestação de anti-autoritarismo em que a juventude rebelde partia ao assalto do quartel general, na florida linguagem dos «guardas vermelhos», guiados pela estátua impávida do Grande Timoneiro.
Tudo isto de certo modo estava presente e se confundia no Paris de Maio 68, bem como em todos os outros campos da batalha anti-autoritária que então percorria o mundo e muito especialmente, se não mesmo exclusivamente, os campus universitários.
Tudo era também sintoma de uma mutação fundamental no campo político da esquerda saído da II Guerra Mundial, pelo menos no que diz respeito ao espaço europeu. De uma esquerda hegemonizada pelos partidos comunistas no imediato pós-guerra, a baby boom generation iria, nos anos 60, fragmentar esse espaço politico sobretudo sob influência de um certo espírito libertário. No então chamado Bloco de Leste, o acontecimento mais emblemático foi certamente Praga 68, que só veio reforçar ainda mais a referida fragmentação politica à esquerda.
A prevalência da atitude crítica não era apenas no campo politico que se fazia sentir. Também culturalmente as correntes libertárias fortemente se manifestavam. O então chamado Internacional Situacionismo, com Guy Debord como figura carismática, teve uma influência relevante no espírito de Maio e mesmo entre nós também.
Os mais célebres slogans que Paris consagrou, como por exemplo «É proibido proibir!» ou «Sejam realistas, peçam o impossível!», reflectiam de algum modo um estado de espírito que abarcava domínios do quotidiano, não propriamente políticos no sentido estreito do termo, como sejam a famosa «revolução sexual», civilizacionalmente permitida e induzida pela descoberta e generalização dos meios contraceptivos e o surgimento dos feminismos, americanos e europeus, onde a figura de Simone de Beauvoir, muito apoiada no pensamento sartriano, desempenhou um papel de relevo com o seu célebre Deuxième Sexe.
Sendo os campus universitários, na Europa como nos Estados Unidos, um terreno privilegiado para toda essa agitação que percorre os anos 60, a própria instituição universitária se posicionava como alvo central da inquietação estudantil, bem como da sua atitude crítica. A organização interna das academias, estruturada em torno do chamado mandarinato, sofreu um inevitável abanão. Nada, no entanto, que não lhe tenha sido permitido recuperar posteriormente, até por via dos mais jovens lobos que a vieram a integrar.
Aliás, de alguma pertinência é hoje a pergunta inevitável sobre o que dos anos 60 vai restando. Poderá haver quem se lamente do afastamento da juventude relativamente a um certo empenhamento social e politico que então era proverbial. Nada disso poderá ser motivo de espanto. Cada geração só pode recordar e de algum modo integrar o que constitui a sua experiência vivida. E as vivências são sempre diferentes de geração para geração. O que para uns foi profundamente existencial para outros é apenas História e as duas coisas não são o mesmo.
Algumas diferenças existenciais são profundamente marcantes. Os que nos anos 60 eram jovens e frequentavam as universidades (muito antes da explosão demográfica que mais tarde teve lugar, particularmente entre nós) sabiam que nenhuma incerteza de fundo lhes toldava o horizonte. É claro que corriam riscos. No caso português, a prisão fora de qualquer protecção legal séria, as incertezas do exílio ou a guerra colonial que já então se percebia estar condenada ao desastre, eram ameaças muito reais. Mas, de uma maneira geral, o jovem universitário sabia que mais cedo ou mais tarde, com as suas qualificações, a vida lhe asseguraria uma estabilidade reconfortante e muito provavelmente no domínio de actividade da sua eleição.
Bem diferente será a situação actual. Para os jovens de hoje a liberdade é já de tal modo adquirida que nenhuma resistência se lhe opõe. O problema deixou de ser esse, em qualquer das formulações que nos anos 60 ele tinha, político, artístico, sexual ou outro. Em contrapartida, o horizonte é que se fechou. Em liberdade mas sem perspectivas numa vida condenada à precariedade, ao provisório, à instabilidade em contraste com os seus maiores que, porventura sem liberdade, tinham mesmo assim como horizonte a perspectiva securizante de um destino que eles próprios poderiam construir. É isso que hoje falha. A ansiedade, não pela falta de liberdade, mas pela falta de futuro, que era o que antes abundava, terá necessariamente consequências gravosas em termos políticos e até civilizacionais. Quais elas venham a ser, ignoramos. Mas podemos vir a esperar o pior.
Um outro aspecto faz divergir radicalmente a situação actual do que então se experimentava no quotidiano. Em 1968 ainda eram os jornais o principal meio de comunicação social. Os movimentos estudantis exprimiam-se sobretudo através da escrita, se bem que a rádio tivesse tido algum papel no caso parisiense. Mas a rádio era então um meio de comunicação de controle sobretudo governamental e a televisão, se bem que já existisse, não tinha ainda a proeminência que veio a ter. Pode-se imaginar o que teria sido todo esse movimento sob o império do lixo televisivo tal como hoje a conhecemos: um imenso reality show maximamente espectacularizado.
Quando se tenta hoje em dia interrogar o alheamento da juventude, dever-se-ia também ter em mente esse império televisual que quotidianamente manieta os espíritos. Se, como diz Niklas Luhman, «o que sabemos acerca da nossa sociedade , ou mesmo o mundo em que vivemos, sabemo-lo através dos meios de comunicação de massa»1 (mormente da televisão, poder-se-ia acrescentar), compreende-se que a mentalidade reinante seja feita de alheamento e fait divers, porque é esse o enquadramento do real que tais meios nos comunicam. l
*Prof. da Un. de Coimbra, Nova Lisboa e actualmente da Beira Interior. Doutorado em Lovaina com a tese "Estrutura e Existência"
Notas: (1)Niklas Luhman, The Reality of The Mass Media. Stanford University Press, 2000.