30.3.08

A apatia do povo português ( numa crónica de Aquilino Ribeiro)

Stop Apatia
Acabem com a apatia.
Organizem-se e cooperem uns com os outros na igualdade social e fraternidade entre todos.





Na tebaida houve um eremita que merece ser espanejado do pó das crónicas e ser posto às barbas dos portugueses.

Um dia, cansado de passar camandulas, subiu a um fragão que se alteava no meio do deserto, e aí passou anos e anos, de pé, hirto, como um arauto inglês, alma e olhos perdidos num espasmo imbecil.

Da sua imobilidade de estátua apeava-se somente para chachurrear na corrente e deglutir a pitança que o corvo lhe trazia na pontualidade de um criado de restaurante.

As transmutações da natureza, as nuvens das aves migratórias perpassavam sobre a sua cabeça como na indiferença de uma haste de quadrante. Ao longe ouvia-se a guizalhada das caravanas, a gritaria dos chacais lascivos, e o servo de Deus só com ouvidos de escutar as harmonias celestiais das alturas.

Enxames famintos de varejas lambiam-no, chupavam-no, faziam dele um esterqueira de assucar avariado e aquela paciência monomana nem mãos tinha para as enxotar.

Viveu assim até que o corpo se lhe dissecou de todo com a petrificação do espírito.

Exumando esta originalidade dos fósseis fradescos, pareceu-me ver nele um substrato do nosso povo.

A mesma apatia, a mesma paciência doentia.

De sobre o rochedo das suas gloriolas vê passar ao longe as tlintadas do progresso e miragens de vida intensa.

As revoluções passam de lado, redentoras, luminosas, e ele esmagado sob a camada paleolítica das suas leis afonsinas e das suas quatro dinastias.

Lá fora joga-se o pim-pam-pum com a cabeça dos reis, aqui ravacholiza-se entre a bisca de família.

E de cócoras, como o eremita, os Hintzes, Lucianos, os Francos, vão roendo este povo, com toda a pachorra, com todo o descaro de uma lepra indebelável.

A todos se resigna, como um velho burro filósofo.

O actual tiranete crava-se-lhe na cachaço como uma carraça sanguisedenta de récuas de almocreve: acordará?

Contra a obsessão de satrapizar do tiranete, está o prémio da sobrinha do milionário, assim lançado: «Dava duzentos contos de reis a quem mo tirasse da política»

Quem se habilita?

( crónica de Aquilino Ribeiro publicada no jornal de Viseu, As Beiras de 4/5/1907)


Léxico:

Camanudulas = rosário de coisas grossas
Chachurrear= chapinhar
Monomania = obsessão assente numa ideia
Pitança = comida
Satrapizar = tiranizar
Tebaida = ermo; lugar solitário