«Poucas têm sido, na verdade, as obras que sacodem as almas e alargam o horizonte dos espíritos lusitanos. O Guardador de Retretes está seguramente entre essas poucas. Porque vem apresentar-nos e falar-nos de textos tradicionais marginais, tradicionalmente marginalizados, ocultados, recalcados pela cultura dominante; porque vem propor uma visão do homem português (ou simplesmente: do homem) que de modo algum coincide com a de nobres livros escritos por nobres sujeitos»
Arnaldo Saraiva
Arnaldo Saraiva
capa da 1ª edição do livro em 1976
A propósito da recente reedição do livro «Guardador de retretes» de Pedro Barbosa, pelas edições Afrontamento, que já é um clássico da tão afamada quanto estranha sciência da Retretologia, transcrevemos com a devida vénia a crónica de Ramiro Teixeira, com o título «Da desconstrução», publicada a 21 de Janeiro de 2008 no suplemento «Das artes e das letras» do jornal «O Primeiro de Janeiro»
Vulgo As Elucubrações Filosóficas em redor de uma nova e risocrónica sciência: A Retretologia, ou, mais vulgo ainda, preciosa recolha de inscrições espalhadas pelas portas e paredes das retretes dos cafés e de outros lugares públicos do género.
Uma recolha e um espólio espantoso sob a forma de ensaio.
Mas que, infelizmente, só carreou para o autor chatices e graves consequências. E de tal monta elas foram que, quando o autor apresentou tese de dissertação à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com um ensaio sobre Pirandelo, teve em desfavor cobrar uma bola preta, para espanto e escândalo da Universidade e do seu apadrinhador, que se havia deslocado da Itália para o efeito.
Foi coisa que fez correr muita tinta, que envolveu o Ministério, mais, dizem, as maçonarias, branca e negra, enfim, um agregado de forças que se serviu do acto para hostilizar parceiros de confraria diferente e com as quais o subscritor da tese nada tinha a ver. Segundo outros, porém, o caso da bola preta esteve directamente relacionado com a temática de O Guardador de Retretes, escrito que um mui digno académico não perdoou ao autor. Não, não estou a cometer nenhuma inconfidência – é só consultar os jornais da época…
Dir-se-á que são coisas da vida! – entendendo-se esta expressão como amostra de pulhices humanas. Se calhar, são! Mas há coisas da vida que eu nunca entendi. Por exemplo, o facto de Pedro Barbosa ter abandonado o curso de Medicina, no antepenúltimo ano, creio, para ingressar no de Letras!
Amor louco pela literatura? Parece que sim. Em particular pelo teatro. E pela poesia. E ainda pelo vocabulário infantil, que estudou e comparou com aspectos de linguagem automática gerada por computador, melhor, da ciberliteratura.
De forma que Pedro Barbosa, hoje licenciado em Letras pela Universidade de Coimbra e doutorado em Ciências da Comunicação (Semiótica) pela Universidade Nova de Lisboa, professor no Instituto Politécnico do Porto e na Universidade Fernando Pessoa, é seguramente um pioneiro de investigação no âmbito da arte gerada por computador e com tais resultados que as suas conclusões são já objecto de estudo em universidades da Itália, Brasil e Estados Unidos!
Mais de trinta anos decorridos sobre a primeira edição, eis que o «Guardador de Retretes» regressa à tona do presente, como quem iça das águas um barco naufragado...
Trata-se de uma metáfora que convém descodificar. Em sua crónica secreta, esta obra teve dezenas ou centenas de exemplares lançados ao rio Douro, mas que o rio devolveu em grande parte, depositando-os nas margens, para desespero de quem às águas os lançou...
Da metáfora passo à parábola do autor, que no Prefácio a dá passada num casarão que um dia:
“...foi assaltado por um magote de ratos empreiteiros: queriam reconstruir o casarão velho e fazer dele um casarão novo. Os ratos velhos, que o habitavam desde tempos imemoriais, conservando-lhe o mofo, refugiaram-se todos no sótão, espavoridos à luz súbita das portadas escandalosamente abertas para o dia. Escondidos, silenciosos, camuflados com as sombras entre as teias de aranha dos velhos forros, quase ninguém dava por eles...
Mas ainda as obras iam no início e já os ratos novos começavam a desentender-se (...) E entretidos com lutas intestinais, puseram-se todos a chiar uns para os outros (...) Entretanto as obras pararam. E os ratos velhos, sorrindo de ronha sabida ante a distracção dos ratos novos, foram descendo do sótão sorrateiramente e, pé ante pé, começaram a fechar de novo cautelosamente as janelas e as portas dos andares de cima, reassenhoreando-se das suas trevas. Quando os ratos novos deram por isso, era já tarde demais: encurralados no rés-do-chão, suspenderam o alarido e puseram-se à escuta, os bigodes murchos e as patinhas ansiosas no ar. Ouviram-se então pela primeira vez, a arranhar o tecto, as garras carcomidas dos ratos velhos que se banqueteavam trancados todos nos andares de cima: as portadas fechadas como dantes, aos pinotes, festejavam de novo a sua secular Solenidade das Trevas...” – após o que o autor indaga: “Fazemo-nos entender?”
Claro que sim! O casarão é a universidade e os ratos velhos são os catedráticos instalados em cima, com o poder suficiente (bola preta) para fecharem o acesso aos ratos novos...
Este livro foi publicado no tempo dos ratos novos (1976), época em que o seu autor, para não destoar, usava não só barbas a preceito, como se subscrevia do seguinte modo:
“Eu, cão vadio, viralatas intelectual e guardador de retretes, tenho a honra de ser, para vos servir (com a gratidão de uma esmola), ASOBRAB ORDEP” – que é o anagrama de Pedro Barbosa.
Logo no primeiro tempo de leitura deste texto se vislumbra a atitude burlesca de parodiar a seriedade do saber ensaístico pela sua aplicação na análise da outra paródia das estrofes, ditirambos, elegias, epístolas, epitáfios e outras liberdades poéticas, a par de máximas e asserções de carácter licencioso, político e social, inscritas nas portas das retretes, quer em Portugal, quer no estrangeiro!
Neste jogo burlesco ao redor de textos marginais, apresentados sob a fórmula de “A Retretelogia e Seus Parâmetros
Oníricolíricológicoscientíficosóficos”, Pedro Barbosa fez obra inédita e singularmente divertida, mas também séria na desconstrução que realiza sobre o saber académico “que só arrisca conhecer aquilo que já é conhecido”.
Nesta perspectiva, Pedro Barbosa não só arriscou trazer a público matéria jamais referenciada, como a dotou de personalidade própria ao exercer sobre ela uma atenção ensaística segundo os cânones académicos... Com isto, digamos que duplicou o carácter burlesco dos textos que apresenta, misturando, porventura, a teoria do prazer do texto (Barthes) com o outro prazer da defecação (“Aqui se caga / O que se aprende”; “Cago, logo existo”), paredes meias com a liberdade em sua mais genuína expressão, só comparável aos primórdios do nosso cancioneiro medieval, à marginalidade das cantigas de escárnio ou maldizer, ricas em heróis truanescos, desaires eróticos, vícios sociais, etc., tudo através de uma linguagem realista hoje considerada obscena (“Quando aqui vieres cagar / Não te esqueças do papel / Não faças do cu tinteiro / Nem dos dedos um pincel”; “ Ou te cagas ou te fodes / Lá dizia o velho Herodes / Mas como Herodes morreu / Quem se fode sou eu”; “Com camisa ou sem camisa / Seja vestido ou nu / O que a gente quer é vir-se / Seja na cona ou no cu”; “A diferença entre Portugal e uma lata de merda é só na lata”; “Cuidado com o cu / caiu um caralho à retrete!”
E por exemplos me quedo nestes... Mas não sem antes reproduzir o texto que se apresenta sob a forma de convite para o lançamento do título, quanto mais não seja porque me evita o registo da Ficha do mesmo:
“As Edições Afrontamento têm o prazer de convidar V.Exa. para o não-lançamento da 4ª edição do livro “O Guardador de Retretes”, de Pedro Barbosa (com posfácio de Manuel Frias Martins).
A sessão terá lugar no dia 30 de Novembro, pelas 21,30 horas, em sítio nenhum. Ninguém fará a apresentação da obra: o livro apresentar-se-á a si mesmo nas livrarias.”
Vulgo As Elucubrações Filosóficas em redor de uma nova e risocrónica sciência: A Retretologia, ou, mais vulgo ainda, preciosa recolha de inscrições espalhadas pelas portas e paredes das retretes dos cafés e de outros lugares públicos do género.
Uma recolha e um espólio espantoso sob a forma de ensaio.
Mas que, infelizmente, só carreou para o autor chatices e graves consequências. E de tal monta elas foram que, quando o autor apresentou tese de dissertação à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com um ensaio sobre Pirandelo, teve em desfavor cobrar uma bola preta, para espanto e escândalo da Universidade e do seu apadrinhador, que se havia deslocado da Itália para o efeito.
Foi coisa que fez correr muita tinta, que envolveu o Ministério, mais, dizem, as maçonarias, branca e negra, enfim, um agregado de forças que se serviu do acto para hostilizar parceiros de confraria diferente e com as quais o subscritor da tese nada tinha a ver. Segundo outros, porém, o caso da bola preta esteve directamente relacionado com a temática de O Guardador de Retretes, escrito que um mui digno académico não perdoou ao autor. Não, não estou a cometer nenhuma inconfidência – é só consultar os jornais da época…
Dir-se-á que são coisas da vida! – entendendo-se esta expressão como amostra de pulhices humanas. Se calhar, são! Mas há coisas da vida que eu nunca entendi. Por exemplo, o facto de Pedro Barbosa ter abandonado o curso de Medicina, no antepenúltimo ano, creio, para ingressar no de Letras!
Amor louco pela literatura? Parece que sim. Em particular pelo teatro. E pela poesia. E ainda pelo vocabulário infantil, que estudou e comparou com aspectos de linguagem automática gerada por computador, melhor, da ciberliteratura.
De forma que Pedro Barbosa, hoje licenciado em Letras pela Universidade de Coimbra e doutorado em Ciências da Comunicação (Semiótica) pela Universidade Nova de Lisboa, professor no Instituto Politécnico do Porto e na Universidade Fernando Pessoa, é seguramente um pioneiro de investigação no âmbito da arte gerada por computador e com tais resultados que as suas conclusões são já objecto de estudo em universidades da Itália, Brasil e Estados Unidos!
Mais de trinta anos decorridos sobre a primeira edição, eis que o «Guardador de Retretes» regressa à tona do presente, como quem iça das águas um barco naufragado...
Trata-se de uma metáfora que convém descodificar. Em sua crónica secreta, esta obra teve dezenas ou centenas de exemplares lançados ao rio Douro, mas que o rio devolveu em grande parte, depositando-os nas margens, para desespero de quem às águas os lançou...
Da metáfora passo à parábola do autor, que no Prefácio a dá passada num casarão que um dia:
“...foi assaltado por um magote de ratos empreiteiros: queriam reconstruir o casarão velho e fazer dele um casarão novo. Os ratos velhos, que o habitavam desde tempos imemoriais, conservando-lhe o mofo, refugiaram-se todos no sótão, espavoridos à luz súbita das portadas escandalosamente abertas para o dia. Escondidos, silenciosos, camuflados com as sombras entre as teias de aranha dos velhos forros, quase ninguém dava por eles...
Mas ainda as obras iam no início e já os ratos novos começavam a desentender-se (...) E entretidos com lutas intestinais, puseram-se todos a chiar uns para os outros (...) Entretanto as obras pararam. E os ratos velhos, sorrindo de ronha sabida ante a distracção dos ratos novos, foram descendo do sótão sorrateiramente e, pé ante pé, começaram a fechar de novo cautelosamente as janelas e as portas dos andares de cima, reassenhoreando-se das suas trevas. Quando os ratos novos deram por isso, era já tarde demais: encurralados no rés-do-chão, suspenderam o alarido e puseram-se à escuta, os bigodes murchos e as patinhas ansiosas no ar. Ouviram-se então pela primeira vez, a arranhar o tecto, as garras carcomidas dos ratos velhos que se banqueteavam trancados todos nos andares de cima: as portadas fechadas como dantes, aos pinotes, festejavam de novo a sua secular Solenidade das Trevas...” – após o que o autor indaga: “Fazemo-nos entender?”
Claro que sim! O casarão é a universidade e os ratos velhos são os catedráticos instalados em cima, com o poder suficiente (bola preta) para fecharem o acesso aos ratos novos...
Este livro foi publicado no tempo dos ratos novos (1976), época em que o seu autor, para não destoar, usava não só barbas a preceito, como se subscrevia do seguinte modo:
“Eu, cão vadio, viralatas intelectual e guardador de retretes, tenho a honra de ser, para vos servir (com a gratidão de uma esmola), ASOBRAB ORDEP” – que é o anagrama de Pedro Barbosa.
Logo no primeiro tempo de leitura deste texto se vislumbra a atitude burlesca de parodiar a seriedade do saber ensaístico pela sua aplicação na análise da outra paródia das estrofes, ditirambos, elegias, epístolas, epitáfios e outras liberdades poéticas, a par de máximas e asserções de carácter licencioso, político e social, inscritas nas portas das retretes, quer em Portugal, quer no estrangeiro!
Neste jogo burlesco ao redor de textos marginais, apresentados sob a fórmula de “A Retretelogia e Seus Parâmetros
Oníricolíricológicoscientíficosóficos”, Pedro Barbosa fez obra inédita e singularmente divertida, mas também séria na desconstrução que realiza sobre o saber académico “que só arrisca conhecer aquilo que já é conhecido”.
Nesta perspectiva, Pedro Barbosa não só arriscou trazer a público matéria jamais referenciada, como a dotou de personalidade própria ao exercer sobre ela uma atenção ensaística segundo os cânones académicos... Com isto, digamos que duplicou o carácter burlesco dos textos que apresenta, misturando, porventura, a teoria do prazer do texto (Barthes) com o outro prazer da defecação (“Aqui se caga / O que se aprende”; “Cago, logo existo”), paredes meias com a liberdade em sua mais genuína expressão, só comparável aos primórdios do nosso cancioneiro medieval, à marginalidade das cantigas de escárnio ou maldizer, ricas em heróis truanescos, desaires eróticos, vícios sociais, etc., tudo através de uma linguagem realista hoje considerada obscena (“Quando aqui vieres cagar / Não te esqueças do papel / Não faças do cu tinteiro / Nem dos dedos um pincel”; “ Ou te cagas ou te fodes / Lá dizia o velho Herodes / Mas como Herodes morreu / Quem se fode sou eu”; “Com camisa ou sem camisa / Seja vestido ou nu / O que a gente quer é vir-se / Seja na cona ou no cu”; “A diferença entre Portugal e uma lata de merda é só na lata”; “Cuidado com o cu / caiu um caralho à retrete!”
E por exemplos me quedo nestes... Mas não sem antes reproduzir o texto que se apresenta sob a forma de convite para o lançamento do título, quanto mais não seja porque me evita o registo da Ficha do mesmo:
“As Edições Afrontamento têm o prazer de convidar V.Exa. para o não-lançamento da 4ª edição do livro “O Guardador de Retretes”, de Pedro Barbosa (com posfácio de Manuel Frias Martins).
A sessão terá lugar no dia 30 de Novembro, pelas 21,30 horas, em sítio nenhum. Ninguém fará a apresentação da obra: o livro apresentar-se-á a si mesmo nas livrarias.”
Excerto do posfácio de Arnaldo Saraiva à 2º edição do livro O Guardador de Retretes, de Pedro Barbosa, lançada pela editora & etc, 1978 que fomos retirar aqui
ESCREVER / DEFECAR
A “diarreia da verborreia” que atacou tantos intelectuais ou nem isso depois do 25 de Abril não os levou apenas às retretes públicas ou privadas de comícios e de gabinetes: levou-os também às tipografias. Daí uma produção (evacuação) livresca e jornalística incríveis num pequeno país com cerca de 30 % de analfabetos, fora os outros.
E daí também o fedor de boa parte dessa “literatura” em que o arrivismo, o narcisismo, o saudosismo, o abranhismo, o obscurantismo, em vão se escondeu atrás da entoação heróica, da veemência ideológica, da linguagem didáctica, testemunhal ou coloquial. Alguns dos best-sellers de hoje entrarão pelo cano daqui a 3, 4, 5, 6, 7 semanas.
Poucas têm sido, na verdade, as obras que sacodem as almas e alargam o horizonte dos espíritos lusitanos. O Guardador de Retretes está seguramente entre essas poucas. Porque vem apresentar-nos e falar-nos de textos tradicionais marginais, tradicionalmente marginalizados, ocultados, recalcados pela cultura dominante; porque vem propor uma visão do homem português (ou simplesmente: do homem) que de modo algum coincide com a de nobres livros escritos por nobres sujeitos. De repente, a gente pergunta-se como é que tais textos puderam ser ignorados pelos etnógrafos, antropólogos, folcloristas, filósofos, linguistas e críticos portugueses. De repente, a gente vê como e onde se fomentam e se fundamentam belas teorias. Será a Igreja, mesmo a latina, mais frequentada do que a latrina? Será o escritório mais útil do que o cagatório? Será o palacete concebível sem a retrete?
Os textos recolhidos (alguns forjados, decerto) e “comentados” (ironicamente) em O Guardador de Retretes são exactamente textos de retretes, geralmente portuguesas, e até Portoguesas, mas também espanholas, francesas, inglesas e italianas.
O que os caracteriza é antes de mais isso mesmo: o serem textos necessariamente produzidos mas destinados a serem consumidos num lugar próprio (que alguns dirão impróprio – impropriamente). Isso os aproximará de outros textos existentes em espaços fechados (tabernas, corredores, túneis, salas), que, manuscritos ou não, levam o “autor” a evitar toda a (auto)censura, e exigem maior intimidade e proximidade do leitor do que os textos existentes em lugares abertos (graffiti, reclames, anúncios).
Em segundo lugar, trata-se de textos breves, redutíveis a formas ou fórmulas usadas na comunicação rápida, didáctica, simples e surpreendente: provérbios, aforismos, máximas, quadras, anedotas, piadas, adivinhas.
Em terceiro lugar, trata-se de textos sobre suportes especiais, que por isso mesmo exigem uma escrita e uma leitura invulgares: paredes, portas, cimento, madeira, azulejos, etc.; o modo de escrita aproxima-se por vezes da inscrição ou da incisão, o suporte está disposto verticalmente, os olhos estão como regra ao nível do texto ou são obrigados a “levantar-se”.
Em quarto lugar, trata-se de textos que tendem para o funcionamento bidimensional: como linguagem e como imagem. Textos-graffiti, mas não só: o desenho, sobretudo o icónico ou o indicial, complementa a mensagem verbal, por vezes reduzida ao mínimo.
Em quinto lugar, trata-se de textos anónimos ou colectivos; o que interessa não é o anonimato real (ou a assinatura heteronímica, por prudência ou por paródia), mas o anonimato conferido pelo leitor, que recebe o texto como subcorrente da doxa ou como anti-doxa, texto de um que é muitos, talvez até ele próprio, ou de muitos que são representados por um. O mesmo fenómeno se passa com os slogans e com os provérbios, que até podem ter autores individualizáveis.
Em sexto lugar, trata-se de textos abertos, in progress, que se sabe(m) provisórios incessantemente criticados, rasurados, refeitos, actualizados, acrescentados, amputados, apagados: as portas ou as paredes são verdadeiros palimpsestos. Ou são verdadeiros átomos de um Iivro-mosaico, infinito.
Em sétimo lugar, trata-se de textos nitidamente integráveis no “sermo humilis”, tão bem definido num estudo de Auerbach, que mostrou como ele se pôs na Idade Média ao serviço da luta antifeudal: temas “baixos”, personagens “pobres”, estruturas frouxas, grafias inseguras, “plebeísmos”, coloquialismos, aproximam tais textos de uma velha literatura culta e carnavalesca hoje mais divulgada, mas durante séculos e séculos clandestina: a de cómicos romanos, trovadores satíricos (de escárnio e maldizer), Rabelais, Bocage, etc.
Em oitavo lugar, trata-se de textos que privilegiam certos temas ou certos campos semânticos: o fescenino e o libertino, o político-social, o escatológico e, curiosamente, o literário ou metaliterário. Qualquer deles deu já origem a pequenas obras-primas, que passam ou deviam passar pelos textos clássicos no género.
Vejamos alguns exemplos, numa estrutura típica, a da quadra:
a)
Com camisa ou sem camisa
Seja vestido ou nu
O que a gente quer é vir-se
Seja na cona ou no cu
b)
Entre um pato e Salazar
Há uma diferença bruta
O pato é filho da pata
Salazar é filho da puta
c)
A cagar fiz um cigarro
A cagar o acendi
A cagar fumei-o todo
A fumar caguei pra ti
d)
És o poeta da merda
E de merda foste feito
Escolhe outra profissão
Que pra rimas não tens jeito
Por estes exemplos, que até nem são dos mais violentos ao nível da poética ou da psicossociologia, se vê que uma outra característica deve ser apontada a esses textos: a de provocarem o cómico, ou de se valerem dos ingredientes estilístico-semânticos que o produzem, e que não devem ser dissociados da situação em que se dão a ler (que, como já foi sugerido, pode não ser aquela em que eles foram criados, ou a única em que existem).
Estabeleceu-se assim uma relação entre defecar / rir, que apela necessariamente para outra: corpo / espírito. Mas essa relação, simultaneamente grotesca e trágica, não é a única que a literatura das retretes estabelece de uma forma tensa. Haverá que falar sobretudo, já que de literatura tratamos, da relação entre escrever / defecar. Em tão poucos textos nos aparece o cagatório como escritório, e o acto de expulsar as fezes identificado com o da expulsão das palavras. Actos de libertação, de catarse, de esvaziamento, eles implicam no entanto uma operação suja e fedorenta. A retrete (a escrita) transforma-se assim no lugar do convívio entre duas oposições que reciprocamente se suportam, se ironizam e se anulam. A escrita da merda confunde-se com a merda da escrita. O que disso resulta é a consciência maior do humano sem privilégios, logo a vitória sobre o tabu sócio-económico disfarçado em tabu estético ou em tabu moral.
Mas, abolindo o tabu, esta literatura representa uma verdadeira luta não só contra a censura, as censuras políticas, mas contra todas as censuras e contra todos os infantilismos político-sociais, e não só sexuais, sejam aqueles que não vêem o corpo, sejam aqueles que só vêem o corpo.
O Guardador de Retretes tem o mérito de não só coligir textos marginalizados mas também de ironicamente os justificar e os contrapor a toda uma literatura “nobre” que não ironiza menos – a começar logo pelo título parodiado do mestre Alberto Caeiro. Pedro Barbosa, ao contrário do vulgar turista, substituiu o museu pela retrete. Criou assim a desordem de que há abundantes imagens figuradas no seu livro, que é pena não se valha da fotografia e não tenha recolhido textos retretológicos em versões femininas.
Pedro Barbosa vem, assim, inesperadamente, alargar o honzonte do sentido português, e repetir de uma forma tão clara e portuguesa o que já Adorno deixou dito na sua Estética: que até hoje nada na humanidade foi verdadeiramente nobre.
… Ou que tudo é nobre: inclusive defecar. Inclusive escrever, e ler, na retrete.»
[in Arnaldo Saraiva (Porto, 1976), posfácio a Pedro Barbosa, O Guardador de Retretes: Lisboa, 2.ª ed., & etc, 1978]
ESCREVER / DEFECAR
A “diarreia da verborreia” que atacou tantos intelectuais ou nem isso depois do 25 de Abril não os levou apenas às retretes públicas ou privadas de comícios e de gabinetes: levou-os também às tipografias. Daí uma produção (evacuação) livresca e jornalística incríveis num pequeno país com cerca de 30 % de analfabetos, fora os outros.
E daí também o fedor de boa parte dessa “literatura” em que o arrivismo, o narcisismo, o saudosismo, o abranhismo, o obscurantismo, em vão se escondeu atrás da entoação heróica, da veemência ideológica, da linguagem didáctica, testemunhal ou coloquial. Alguns dos best-sellers de hoje entrarão pelo cano daqui a 3, 4, 5, 6, 7 semanas.
Poucas têm sido, na verdade, as obras que sacodem as almas e alargam o horizonte dos espíritos lusitanos. O Guardador de Retretes está seguramente entre essas poucas. Porque vem apresentar-nos e falar-nos de textos tradicionais marginais, tradicionalmente marginalizados, ocultados, recalcados pela cultura dominante; porque vem propor uma visão do homem português (ou simplesmente: do homem) que de modo algum coincide com a de nobres livros escritos por nobres sujeitos. De repente, a gente pergunta-se como é que tais textos puderam ser ignorados pelos etnógrafos, antropólogos, folcloristas, filósofos, linguistas e críticos portugueses. De repente, a gente vê como e onde se fomentam e se fundamentam belas teorias. Será a Igreja, mesmo a latina, mais frequentada do que a latrina? Será o escritório mais útil do que o cagatório? Será o palacete concebível sem a retrete?
Os textos recolhidos (alguns forjados, decerto) e “comentados” (ironicamente) em O Guardador de Retretes são exactamente textos de retretes, geralmente portuguesas, e até Portoguesas, mas também espanholas, francesas, inglesas e italianas.
O que os caracteriza é antes de mais isso mesmo: o serem textos necessariamente produzidos mas destinados a serem consumidos num lugar próprio (que alguns dirão impróprio – impropriamente). Isso os aproximará de outros textos existentes em espaços fechados (tabernas, corredores, túneis, salas), que, manuscritos ou não, levam o “autor” a evitar toda a (auto)censura, e exigem maior intimidade e proximidade do leitor do que os textos existentes em lugares abertos (graffiti, reclames, anúncios).
Em segundo lugar, trata-se de textos breves, redutíveis a formas ou fórmulas usadas na comunicação rápida, didáctica, simples e surpreendente: provérbios, aforismos, máximas, quadras, anedotas, piadas, adivinhas.
Em terceiro lugar, trata-se de textos sobre suportes especiais, que por isso mesmo exigem uma escrita e uma leitura invulgares: paredes, portas, cimento, madeira, azulejos, etc.; o modo de escrita aproxima-se por vezes da inscrição ou da incisão, o suporte está disposto verticalmente, os olhos estão como regra ao nível do texto ou são obrigados a “levantar-se”.
Em quarto lugar, trata-se de textos que tendem para o funcionamento bidimensional: como linguagem e como imagem. Textos-graffiti, mas não só: o desenho, sobretudo o icónico ou o indicial, complementa a mensagem verbal, por vezes reduzida ao mínimo.
Em quinto lugar, trata-se de textos anónimos ou colectivos; o que interessa não é o anonimato real (ou a assinatura heteronímica, por prudência ou por paródia), mas o anonimato conferido pelo leitor, que recebe o texto como subcorrente da doxa ou como anti-doxa, texto de um que é muitos, talvez até ele próprio, ou de muitos que são representados por um. O mesmo fenómeno se passa com os slogans e com os provérbios, que até podem ter autores individualizáveis.
Em sexto lugar, trata-se de textos abertos, in progress, que se sabe(m) provisórios incessantemente criticados, rasurados, refeitos, actualizados, acrescentados, amputados, apagados: as portas ou as paredes são verdadeiros palimpsestos. Ou são verdadeiros átomos de um Iivro-mosaico, infinito.
Em sétimo lugar, trata-se de textos nitidamente integráveis no “sermo humilis”, tão bem definido num estudo de Auerbach, que mostrou como ele se pôs na Idade Média ao serviço da luta antifeudal: temas “baixos”, personagens “pobres”, estruturas frouxas, grafias inseguras, “plebeísmos”, coloquialismos, aproximam tais textos de uma velha literatura culta e carnavalesca hoje mais divulgada, mas durante séculos e séculos clandestina: a de cómicos romanos, trovadores satíricos (de escárnio e maldizer), Rabelais, Bocage, etc.
Em oitavo lugar, trata-se de textos que privilegiam certos temas ou certos campos semânticos: o fescenino e o libertino, o político-social, o escatológico e, curiosamente, o literário ou metaliterário. Qualquer deles deu já origem a pequenas obras-primas, que passam ou deviam passar pelos textos clássicos no género.
Vejamos alguns exemplos, numa estrutura típica, a da quadra:
a)
Com camisa ou sem camisa
Seja vestido ou nu
O que a gente quer é vir-se
Seja na cona ou no cu
b)
Entre um pato e Salazar
Há uma diferença bruta
O pato é filho da pata
Salazar é filho da puta
c)
A cagar fiz um cigarro
A cagar o acendi
A cagar fumei-o todo
A fumar caguei pra ti
d)
És o poeta da merda
E de merda foste feito
Escolhe outra profissão
Que pra rimas não tens jeito
Por estes exemplos, que até nem são dos mais violentos ao nível da poética ou da psicossociologia, se vê que uma outra característica deve ser apontada a esses textos: a de provocarem o cómico, ou de se valerem dos ingredientes estilístico-semânticos que o produzem, e que não devem ser dissociados da situação em que se dão a ler (que, como já foi sugerido, pode não ser aquela em que eles foram criados, ou a única em que existem).
Estabeleceu-se assim uma relação entre defecar / rir, que apela necessariamente para outra: corpo / espírito. Mas essa relação, simultaneamente grotesca e trágica, não é a única que a literatura das retretes estabelece de uma forma tensa. Haverá que falar sobretudo, já que de literatura tratamos, da relação entre escrever / defecar. Em tão poucos textos nos aparece o cagatório como escritório, e o acto de expulsar as fezes identificado com o da expulsão das palavras. Actos de libertação, de catarse, de esvaziamento, eles implicam no entanto uma operação suja e fedorenta. A retrete (a escrita) transforma-se assim no lugar do convívio entre duas oposições que reciprocamente se suportam, se ironizam e se anulam. A escrita da merda confunde-se com a merda da escrita. O que disso resulta é a consciência maior do humano sem privilégios, logo a vitória sobre o tabu sócio-económico disfarçado em tabu estético ou em tabu moral.
Mas, abolindo o tabu, esta literatura representa uma verdadeira luta não só contra a censura, as censuras políticas, mas contra todas as censuras e contra todos os infantilismos político-sociais, e não só sexuais, sejam aqueles que não vêem o corpo, sejam aqueles que só vêem o corpo.
O Guardador de Retretes tem o mérito de não só coligir textos marginalizados mas também de ironicamente os justificar e os contrapor a toda uma literatura “nobre” que não ironiza menos – a começar logo pelo título parodiado do mestre Alberto Caeiro. Pedro Barbosa, ao contrário do vulgar turista, substituiu o museu pela retrete. Criou assim a desordem de que há abundantes imagens figuradas no seu livro, que é pena não se valha da fotografia e não tenha recolhido textos retretológicos em versões femininas.
Pedro Barbosa vem, assim, inesperadamente, alargar o honzonte do sentido português, e repetir de uma forma tão clara e portuguesa o que já Adorno deixou dito na sua Estética: que até hoje nada na humanidade foi verdadeiramente nobre.
… Ou que tudo é nobre: inclusive defecar. Inclusive escrever, e ler, na retrete.»
[in Arnaldo Saraiva (Porto, 1976), posfácio a Pedro Barbosa, O Guardador de Retretes: Lisboa, 2.ª ed., & etc, 1978]