22.8.07

Para que servem as ceifas dos OGMs? Para quê descontaminar os campos de milho transgénico?

Para que serviram e servem as ceifas das culturas de transgénicos por parte dos activistas anti-OGM?

Para alertar as pessoas

Para impedir que os OGMs sejam um facto consumado na nossa agricultura e alimentação e tenha
efeitos irreparáveis na saúde pública.


Para defender a soberania alimentar da cada país e de cada região agrícola face à ameaça das monoculturas que as transnacionais agroalimentares nos querem impor.

Para lutar contra a expropriação dos conhecimentos e saberes locais em favor de laboratórios especializados de biotech que produzem artificialmente sementes que, depois de serem patenteadas e monopolizadas, são muito rentáveis

Para romper o manto de silêncio e cumplicidade à volta dos danos, riscos e ameaças à saúde pública que representam os transgénicos.

Para modificar a injusta legislação pela qual quem destrói uma plantação de transgénicos é passível de processo judicial, ao passo que os autores de contaminações genéticas beneficiam de impunidade.

Para contestar, enfim, o crescente poder das tecnociências e o modelo de crescimento insustentável a que leva a industrialização da agricultura e a artificialização das sementes.


Para lutar contra a poluição genética




Mas o melhor é ler a resposta de Sébastien Denys, um activista belga que participou em várias ceifas na Bélgica, num artigo publicado na revista francesa L'écologiste


No dia 7 de Maio de 2000, perto de Namur na Bélgica, 200 pessoas participaram na primeira destruição de ensaios com OGMs na Bélgica dentro de um centro de experiência da Monsanto. A 26 de Janeiro de 2004, 13 pessoas foram condenadas – sem penas efectivas – pela destruição de dois hectares de cultivos. O texto que se segue foi lido na última audiência do processo judicial que me foi movido e mostra como pelas disseminação no meio ambiente, as OGMs estavam em vias de se imporem como um facto consumado.


No Verão de 2003 José Bové foi parar à prisão como um bandido pela contributo pessoal que deu ao combate contra os organismos geneticamente modificados (OGMs). René Riesel condenado pelos mesmos factos segui-lo-ia no dia 1º de Dezembro. Corremos riscos, sem dúvida, por participar na descontaminação de um campo de OGMs, Contudo as nossas acções inscrevem-se «num movimento social profundo (…) que deu consistência ao debate» nas palavras de Patrick Legrand ( director da Mission Environnement-Société do Institut National de la Recherche Agronomique). É meu propósito com este texto mostrar-vos como as práticas de «responsabilidade civil não-violenta» contribuíram para a definição do que é um OGM.


A história começa numa noite de 1987 quando dois mil morangueiros são arrancados nos terrenos da Universidade da Califórnia. Esse era o primeiro ensaio que se desenrolava publicamente e que estava a ser avaliado por um instância oficial de controle. Tinha sido apresentado como uma «descoberta» mundial. Mas na realidade outros ensaios tinham-se realizado às escondidas e sem avaliação prévia. A primeira disseminação no ar livre de OGMs ficará sobretudo na história por causa da primeira manifestação prática de oposição a esta tecnologia. Quando adoptam o mundo como laboratório os cientistas acabam por promover a irrupção do mundo dentro do seu meio.

Um problema de soberania

Segundo Bruno Latour «o caso dos OGMs é (…) interessante porque não implica uma perspectiva de catástrofe, mas antes um problema maior que é o de soberania: dos consumidores sobre aquilo que comem, dos agricultores sobre aquilo semeiam, dos Estados sobre aquilo que controlam – e os cidadãos em relação à pesquisa científica».
No fim de 1996 quase uma década depois a Greenpeace inspecciona os primeiros carregamentos de sementes modificadas provenientes dos Estados Unidos e mostra aos olhos de todos a sua existência. Esse acto de «pirataria» tem como objectivo chamar a atenção dos consumidores a fim de que estes retomem o poder sobre aquilo que comem. O bem fundado da reivindicação da Greenpeace é pois o da inspecção sanitária sem o qual não haveria o principio da rotulagem, que por causa daquela acção foi adoptado a partir daí. ( consultar o Regulamento nº 258/97 publicado no J.O. nº L 43 de 14/02/97 relativo à utilização de OGMs na alimentação humana e a rotulagem dos dados nos bens alimentares produzidos a partir das OGMs).
Em 1998 militantes da Conféderation paysanne, entre oos quais José Bové e René Riesel destroem um stock de milho Novertis em Nérac. Impediram assim a comercialização dessas sementes. Estes actos de «vandalismo» têm como finalidade principal que os agricultores possam ter poder sobre aquilo que semeiam. Em Junho de 1999, quando os ministros do Ambiente da União Europeia adoptaram a moratória sobre a comercialização das OGMs eles estão a ratificar o bom fundado daquele acto.
Pela mesma altura a destruição do milho transgénico no Centre de coopération internationale en recherche agronomique pour le développement (CIRAD) de Montpellier provocou «um debate sobre os ensaios em campo, e o papel da investigação pública» e a pesquisa agronómica com destino aos países do Sul. Esta acção foi protagonizada por indianos da Caravana Intercontinental e nela participaram José Bové, René Riesel e muitos outros. Os indianos presentes reactualizaram o Quit Índia Mouvement da guerra de independência ao destruírem também a sede local da multinacional sementeira Cargill e os campos de OGM. São deles as declarações: «Depois de terem expulsado os ingleses, nós devemos expulsar as multinacionais». Alguns meses mais tarde, a 26 de Setembro de 2000, aquando do acto de encerramento do Tribunal Popular das sementes de Bangalore eles lançam um apelo «à destruição de todo o ensaio transgénico. Aqui e em qualquer lado do planeta».

A prática de destruição dos campos de ensaios dissemina-se rapidamente. Na Inglaterra, no decurso do ano de 1999, deram-se 70 destruições de campos num total de 150 locais de experimentação inventariados. Numa vez foram 600 pessoas que invadiram o campo. Dois anos mais tarde, em 2001, para além da trintena de locais ingleses que foram «danificados, destruídos ou inutilizados em razão da oposição pública», registaram-se umas vinte «descontaminações» em França, quatro na Itália, outras tantas na Bélgica. O legislador segue o movimento impondo regras cada vez mais restritivas para a avaliação dos riscos nas actividades de disseminação, «mostrando assim a inadequação das regras em vigor»: trata-se da directiva 2001/18/CE publicada no J.O. de 12/03/01 relativa à disseminação voluntária dos organismos geneticamente modificados no ambiente e revogando a directiva 90/220/CEE

Modificar os termos do debate


É por isso que Martin Hirsch (director geral da Agence Française de segurança sanitária dos alimentos, Affsa, e presidente da Emmaus France), participante eleito do Conselho de Estado diga a título pessoal que «os actos de destruição» são «motivados por interrogações e dúvidas que, apesar de inicialmente negadas, acabaram por ser posteriormente confirmadas pelo menos parcialmente». A formulação é prudente mas a sua mensagem é clara: sem aqueles que se arriscaram com essas acções, ninguém pensaria que valesse a pena encarar as «interrogações confirmadas posteriormente»: referimo-nos ao caso das alergias ou ao aparecimento de plantas e de insectos tolerantes às modificações provocadas obrigando ao aumento da quantidade de herbicida utilizado ou ainda a disseminação das OGMs.

Sobre este último ponto, acrescenta Hirsch, «detectou-se OGMs em locais que não se pensava existir». Encontramo-los na cadeia alimentar, nas forragens, em sacos de sementes, nas colmeias, nos campos. Até os próprios ensaios se «auto-contaminam». No dia 21 de Junho de 2002 na Inglaterra um controle feito pelo Scottish Agricultural College (SAC) revela a contaminação de local de ensaios de colza da Aventis. Uma análise complementar confirma a presença, para além dos elementos de transformação MS8 & RF3 que são objecto de ensaio, de três outros elementos de transformação designados por MS1, RF1 & RF2 não autorizados a serem comercializados e que contêm genes tolerantes aos antibióticos. 2,8% das sementes estavam contaminadas. Aventis demorou mais de um mês a informar oficialmente o Department for Environment, Food and Rural Affairs (DEFRA). Entre 1999 e 2002 na Inglaterra quatro lotes de sementes foram enviados para ensaiios (25 campos foram cultivados com sementes misturadas). No seu boletim interno a Aventis afirma não poder determinar se essa mistura se deu antes ou depois da sementeira. O mesmo boletim da Aventis não justifica o não-respeito pela autorização, nem a incapacidade de garantir um padrão de pureza das sementes num estudo científico. O paradoxo é consumado quando se sabe que estas sementes «mães» são especificamente seleccionadas pela sua pureza, condição sin qua non para o êxito da hibridação. ( para acompanhar a questão consultar o The Guardian de 16 de Agosto de 2002 e o The Independent de 16 de Agosto de 2002).


Gerir as OGMs

Sobre isto dois relatórios modificam profundamente os termos do debate. A Agência francesa de segurança sanitária dos alimentos (Affsa) revela em pleno Verão de 2002 a contaminação de 41% das sementes de milho. «A partir daqui a questão não está em saber qual o perímetro em que as OGMs podem ficar circunscritas, mas antes qual o preço para a sua existência»
Um ano mais tarde a Greenpeace dá uma grande publicidade às conclusões de um estudo encomendado pela Comissão Europeia onde se mostra que as mudanças nas práticas culturais para a organização da «co-existência» das culturas terá um custo considerável. A «disseminação» passa do estatuto de hipótese a verificar ao de premissa adquirida, a partir da qual se colocam outras questões. Greenpeace revelava ainda num comunicado de imprensa datado de 16 de Maio de 2002 que numa carta à Comissão e que acompanhava o estudo, o director geral da EU Joint Research Centre, Barry McSweeney sugeria que «(…) dada a sensibilidade de uma tal questão o relatório fosse reservado para uso interno à Comissão».

Note-se que de um golpe passa-se da consideração de um risco possível à gestão de uma consequência, ou seja, da «precaução» à «prevenção». Na linguagem dos especialistas «só recentemente o carácter inevitável de uma taxa, mesmo muito fraca, de disseminação foi reconhecido»

Até os próprios cientistas de Montpellier interpelados numa intervenção dos agricultores indianos no CIRAD acabaram por concordar com os seus detractores de que «não é aceitável a disseminação dos OGMs nos meios que vão indiscutivelmente contaminar». Estes agrónomos e geneticistas reconhecem a «função de alerta» que estas acções têm e concluem «que a reflexão sobre a gravidade do problema do uso dos OGMs, assim como para a descoberta científica, beneficiaram largamente» com elas. Ou seja, foi uma «sabotagem» que permitiu aos especialistas de encontrar aquilo que sabem, e de tomar em devida conta aquilo que propõem.

Um laboratório cívico

Os cidadãos que invadem um laboratório estão ao mesmo tempo a envolverem-se num laboratório cívico, uma vez que «podem, pela globalidade da sua abordagem e pelos questionamentos por vezes ilegítimos, trazer elementos determinantes e inovadores» ( palavras de Patrick Legrand). E que laboratório é esse? Pensemos qual é agricultura que os geneticistas nos querem vender: uma terrível e perigosa monotonia agrícola, monoculturas intrinsecamente vulneráveis às epidemias, um projecto que expropria os saberes dos agricultores e os coloca na total dependência de algumas empresas transnacionais incapazes de compensar os danos que irão provocar. E, por outro lado, pensamos no florescimento de iniciativas que procuram colocar um ponto final nesse processo, e facilmente observamos o valor daquele laboratório cívico.

O número daqueles que estão convencidos da necessidade de destruir os campos com OGMs não pára de crescer. Os primeiros que tiveram de se submeter às suas obrigações judiciárias foram os participantes no GenetiXsnowball na Inglaterra. Seguiu-se-lhe pouco depois o processo de Agen em França. Houve depois o caso dos 18 da Greenpeace na Inglaterra. A lista continuou com o de Foix, o dos 10 de Valence, Montpellier, etc, etc. Na Primavera de 2002 haviam sido condenadas 19 pessoas na Inglaterra e haviam outras 39 com processos às costas. Lançadores de alertas foram condenados ou presos mas milhares de «ceifeiros voluntários» tomaram o seu lugar. «Hoje destruir uma plantação de transgénicos é passível de processo judicial, mas em contrapartida os autores de contaminações genéticas beneficiam de uma completa impunidade». Perante este hiato cabe ao legislador assumir as suas responsabilidades. Justiça será amnistiar aqueles que pela sua acção ajudaram ao reconhecimento dos riscos e perigos e sem os quais estaríamos num processo cujo futuro ficaria definido pelos interesses de algumas multinacionais.

Acerca da manifestação contra os OGMs e a Monsanto na Bélgica foi necessário agir primeiro para revelar a existência desses ensaios, segundo porque não eram tidos em conta elementos essenciais, terceiro para nos opormos aos «factos consumados» da difusão dos OGMs.


Alguns dias antes da nossa acção as autoridades tinham autorizado a disseminação voluntária no ambiente de 72 parcelas de ensaios. Ninguém mediu a amplitude da invasão transgénica. A primeira lista dos campos foi publicada por causa da nossa acção. Tomo pois a responsabilidade, juntamente com outros, de ter ajudado a tornar tangível a realidade e a invasão dos OGMs no nosso país.
Foi necessário um ano mais para dispor de dados que permitissem estabelecer uma carta onde fosse possível anotar com um círculo a zona de influência de cada parcela de ensaio com OGMs.. Neste momento os ecologistas calculam a distância de disseminação em cerca de 2,5 km, enquanto a distância fixada oficialmente é de 400 metros. Aquela zona de disseminação baseia-se nos dados fornecidos por um estudo inglês do Department for Environment Food and Rural Affairs (DEFRA) e segundo o qual fluxos de genes foram observados numa distância de 26 km. A primeira carta representava uma estimativa estabelecida em 2001 pelos ecologistas que calcularam uma taxa de 0,1% de contaminação ( limiar de detecção). A segunda carta baseia-se num estudo de maior amplitude conduzido por um organismo oficial com o objectivo de manter a taxa de contaminação abaixo de 0,9% aceites pelas instâncias europeias. A segunda carta é pois muito mais fiável. Sublinhemos porém que adoptar como base de trabalho uma contaminação de 0,9% significa encarar essa taxa como taxa média e não como taxa máxima de contaminação
Só o sul da província do Luxemburgo e o norte do Limbourg foram poupados. Aquelas cartas ilustram a amplitude das consequências do cultivo num só ano, quando já estamos no 14º ano de disseminação e 522 campos já foram cultivados com OGMs no território belga. Esta documentação permitirá medir o caminho que foi preciso percorrer entre, por uma lado, as provas tornadas incontornáveis graças às nossas acções de inutilização dos OGMs – o pólen é especificamente concebido para se disseminar, os herbicidas são nocivos para o ambiente…- e por outro lado, as confirmações científicas resultantes de estudos depositários dessas evidências. A nossa acção, entre outras, assim como este processo, contribuíram já para a «manifestação da verdade».

Uma existência contestável

Quando se deu a manifestação na Monsanto as biotecnologias perderam a sua glória. A nossa manifestação não fez mais que dar uma existência a esses terrenos de ensaio, revelando ainda que a sua existência é objecto de viva contestação. Entre Maio de 2001 e Agosto de 2002, 13 terrenos foram destruídos anonimamente. Em Janeiro de 2002, a associação Nature et Progrès iniciou uma campanha «concelho livre de OGM», à qual se associaram 81 concelhos, o que representa um terço do território da Walónia belga. Simultaneamente outras iniciativas de sensibilização se realizaram ( manifestações, conferências, debates, etc) enquanto não parou de aumentar a pressão sobre os processos biosecuritários de peritagem.
Cada implantação será objecto de uma atenção pública redobrada. Foi o que quis mostrar o jornalista que anunciou em 2001 a queda vertiginosa da superfície cultivada após a manifestação contra a Monsanto. A nossa acção contribuiu concreta e simbolicamente para travar a multiplicação das biotecnologias agrícolas. No ano seguinte, a campanha estival dos ensaios de OGM aqueceram, pois sobre 31 campos previstos, treze fracassaram ( 5 foram rejeitados pelas autoridades, 4 foram abandonados dois destruídos e um interrompido por ordem governamental). Alguns meses mais tarde a Bélgica deixa oficialmente de ser um laboratório. Em Dezembro de 2002 BelgoBiotech, o lobby das indústrias do sector decide uma moratória sobre o programa dos testes. Em 2003 foi entregue um pedido de autorização pelo Katolieke Univeriteit Lewen para um projecto de macieiras transgénicas. Graças a alguns protestos dirigidos ao Comité de especialistas ad hoc e ao local previsto de implantação ajudaram a mostrar a falta de coerência e o amadorismo do projecto. As macieiras foram recusadas e não mais houve disseminação na Bélgica.

O mais importante que resulta de toda esta história é que de ora avante não se pode fazer como se a população e os cidadãos não tivessem outra atitude possível que não seja a passividade e a inactividade. A melhor descoberta é, sem dúvida, que «nenhum gene predispõe ao fatalismo e à passividade»


(tradução do texto publicado na edição francesa do nº 14 de Oct/Nov/Dec. da revista L'Ecologiste sob o titulo «OGM: a quoi servent les fauchages?» da autoria de Sébastien Denyz )