Há livros assim. A partir deles, da sua chegada, nada do que havia sido se mantém, nada do que acontece depois poderá permanecer indemne à angústia da influência.
Joyce é um ponto nodal da literatura de sempre. Com Shakespeare, o inventor do humano, e com Baudelaire, o mittelpunkt da literatura moderna, Joyce habita uma cidade inexpugnável à qual é necessário aceder.
Com o texto joyceano, de nome Ulisses, o escritor irlandês instaurou a guerra das palavras provando que, através da sua digladiação deifica e do seu carácter redentor, pôde escrever o mundo e ocupar um espaço antes sitiado. A edificação de um marco como este é a verificação de uma força hercúlea que a todos atinge e transforma, reganhando um locus que afecta em catadupa escritores de todas as épocas, repulsando uns para as margens e convocando outros para o centro.
Qualquer texto se transfigura na cidade que a leitura quer habitar. O leitor toca o criador e a criação. Todos se agitam. O leitor-intérprete, num frémito sem sono, derruba a muralha e funde-se no dentro-fora do texto do autor-intérprete. Assim se mostra o criador, sem se dar. Aí começa a empresa do leitor, insónia activa pela vida do texto dentro de si. Joyce afirmará algo de semelhante a propósito dos seus livros, escritos a pensar no «leitor ideal que deverá possuir a insónia ideal».
James Augustine Joyce nasceu a 2 de Fevereiro de 1882, em Rathgar, nos subúrbios de Dublin. Seis anos volvidos, ingressa no Colégio dos Jesuítas de Clongowes. Pouco tempo depois, na mesma altura em que, por razões económicas foi obrigado a mudar-se para uma escola mais barata e protestante, descobrem-se-lhe os primeiros tentames literários. Em 1893, inscreveu-se, gratuitamente, no Colégio Jesuíta de Belvedere sendo, em 1898, admitido na University College, instituição católica da universidade de Dublin. Fascinado por Ibsen, publicou aos 18 anos um artigo dedicado ao escritor norueguês com quem, aliás, entabulará correspondência. Em 1902 viaja até Londres e Paris, iniciando, no ano seguinte, o também cultuado Gente de Dublin. Em 1904, publica diversas composições poéticas em revistas e viaja com Nora Barnacle por Zurique e Pola. Em 1905 dá início à sua carreira docente na Berlitz School de Pola, de onde transitou para a homónima da Trieste, surgindo-lhe, enquanto trabalhava uns meses em Roma, as primeiras ideias para o Retrato de Artista quando Jovem e o Ulisses. No ano de 1907, publica Música de Câmara, saindo a lume, volvido quase lustro e meio, Gente de Dublin (1914). Em 1916 deu-se à estampa Retrato de Artista e, em 1918, Exílios. Instala-se em Paris em 1920. O espírito odisseico do escritor irlandês em breve chegaria ao fim dessa incomparável viagem iniciada, ainda seminalmente, no já longínquo ano de 1906 e com data de arrancada por 1914. Joyce conclui Ulisses em 1921, publicando-o na não despicienda data de 2 de Fevereiro de 1922. Afinal, nesse monumento perene estava a sua vida. O tempo vai poendo. Joyce regressa à poesia com Pomes Penyeach (1927) e com Collected Poems (1936). A par dessa incursão lírica, vai publicando fragmentos da sua «work in progress» Finnegans Wake que verá a luz do dia no dealbar da Segunda Grande Guerra . Dois anos depois, em 1941, com inconclusos 62 anos de idade, Joyce abandonou o corpo e subiu ao Olimpo.
Joyce era um obcecado por datas , comemorações e coincidências. Todos os anos, a cada 16 de Junho que passava, colocava a si próprio a mesma questão: «será que alguém se lembrará deste dia?». Ao que parece, a efeméride irá ser comemorada por mais 300 anos, pelo menos, os mesmos que Joyce gostaria que durassem todos os enigmas de Ulisses e Finnegans Wake.
Mas o que acontece a 16 de Junho para que James Joyce seja recordado para sempre? Destacamos o "Bloomsday", o dia em que se desenrola a história de Leopold Bloom, de Stephen Dedalus e de Molly Bloom, os personagens principais do livro que foi criado para destruir todos os livros, o livro que todos querem ler mas não conseguem, o livro impossível de ser compreendido - Ulisses. Claro que também havia um motivo pessoal para Joyce escolher essa data. Por baixo da arquitectura detalhista, do rigor quase maníaco, do virtuosismo estilístico, da ambição do projecto, Ulisses é, na verdade, uma carta de amor a Nora Barnacle. E como bom irlandês, temperou o seu amor com um pouco de traição, muita cerveja espumosa e, principalmente, muita audácia pela única coisa que dava sentido à sua própria trajectória pessoal tumultuada: a literatura. Data indefectível na mitologia joyceana, o dia 16 de Junho de 1904 é, na vida real-real, o dia em que Nora Barnacle, a mulher que viria a acompanhar Joyce para todo o sempre, fez do jovem Augustine, de 22 anos, «um homem de verdade», segundo o testemunho das suas cartas intensamente melodramáticas, algo estranho para alguém que possuía uma visão do mundo bem grotesca e bem ao gosto dos irlandeses, carregada de humor esdrúxulo e de um profundo carinho pelo ser humano. Mas, ser melodramático também fazia parte da personalidade complicada de Joyce, quase no limite da esquizofrenia, e que conseguiu ficar una graças à palavra que o guiava nos subterrâneos da psique universal. Assim, ao escrever o grande romance sobre a totalidade da vida nada mais natural que situar os seus três personagens - Ulisses, Telémaco e Penélope da era moderna - em busca de uma razão para viver, senão no dia em que o seu criador encontrou a sua própria razão para viver. O antigo herói grego é agora transformado num homem comum e as lutas épicas passam a pequenos desafios diários. Joyce acreditava que era dever do artista representar todos as situações da vida o mais honestamente possível, em especial, aquelas que não eram discutidas em público, tais como o comportamento sexual, funções do corpo e controvérsias religiosas. Em Ulisses, 24 horas são comprimidas em 1000 páginas de monólogos interiores, blasfémias, momentos sublimes ("epifanias"), reflexões sobre a morte, bêbados, poetas, jornalistas, prostitutas diabólicas, ateus santos, passado, presente e futuro tornando-se uma grande síntese na mente de um escritor que conseguiu retratar a sua cidade natal com tamanha exactidão, que ela poderia ser novamente reconstruída através dos seus livros, caso fosse consumida num incêndio.
Ulisses, 1906 - 1914 - 1922. A ideia, a palavra de Trieste e o seu corpo. No real-ficcional o dia 16 de Junho ficaria gravado no Ulisses, associando-se-lhe, para todo o sempre, o "Bloomsday" e o "doomsday", libação celebrativa do valor da refundação linguística operada pelo escritor irlandês.
Joyce escrevia devagar e meticulosamente. Modificava passos e adicionava novo material aos rascunhos à medida que os ia revendo. Onde quer que fosse, levava consigo pequenos livros de apontamentos para anotar, de imediato, uma palavra ou uma frase que tivesse chamado a sua atenção ou de que gostasse. A enorme quantidade de detalhes que adicionou às suas histórias é uma das razões pelas quais elas são tão desafiantes e satisfatórias de ler.
Acusado por muitos de ser um herege por causa da sua recusa em viver de acordo com os preceitos da Igreja Católica, na qual foi educado, a sua aparente heresia constituía, na verdade, um murro na fachada obsoleta das instituições, a única forma de rebelião possível numa Irlanda aprisionada culturalmente e politicamente pela bota inglesa, um país traumatizado pela traição de Charles Parnell, pelas guerrilhas de Michael Collins e por um tal de Renascimento Cultural Irlandês que nunca interessou às ambições do jovem Joyce. Orgulhoso da sua nacionalidade e desejando ver o país independente, era céptico, contudo, em relação ao modo como os movimentos políticos normalmente acabam por limitar as liberdades individuais. Vestindo as "asas" de Dédalo, o grande artífice-arquitecto grego, Joyce voará alto por sobre todas as restrições castradoras que impõem um enclausuramento no pesadelo que é a história da Irlanda. Defendendo a paixão individual como o poder motivador para tudo, arte e filosofia incluídas, e adoptando o credo «non servian» por forma a alcançar uma liberdade incondicional, transformar-se-á num potencial autor de uma epopeia nacional irlandesa. Na doutrina cristã, o único ser "não-criado" é Deus. Na perspectiva teológica de Joyce, é a consciência rácica que ainda urge criar e será ele o seu profeta, ou talvez o seu redentor. Assim como Cristo na cruz simboliza a humanidade, Joyce surgirá, à sua imagem e semelhança, como baluarte de uma identidade nacional una. Será, no fundo, através da sua escrita e da literatura enquanto missão, que irá oferecer a sua própria alma, em sacrifício, à Irlanda e «forjar a consciência incriada da minha raça» (Retrato de Artista).
É justo que Ulisses, a história de um dia na vida de Dublin de há cem anos atrás, seja celebrado em todo o mundo, no dia 16 de Junho, o Bloomsday - talvez a única festividade internacional dedicada a uma obra de arte. Através das personagens e lugares que descreveu, Joyce mostrou a Dublin de 1904 ao mundo; e pelas suas inovações literárias mostrou que a Irlanda, apesar da sua imagem tradicional, é um caso exemplar do mundo moderno.
Joyce é um ponto nodal da literatura de sempre. Com Shakespeare, o inventor do humano, e com Baudelaire, o mittelpunkt da literatura moderna, Joyce habita uma cidade inexpugnável à qual é necessário aceder.
Com o texto joyceano, de nome Ulisses, o escritor irlandês instaurou a guerra das palavras provando que, através da sua digladiação deifica e do seu carácter redentor, pôde escrever o mundo e ocupar um espaço antes sitiado. A edificação de um marco como este é a verificação de uma força hercúlea que a todos atinge e transforma, reganhando um locus que afecta em catadupa escritores de todas as épocas, repulsando uns para as margens e convocando outros para o centro.
Qualquer texto se transfigura na cidade que a leitura quer habitar. O leitor toca o criador e a criação. Todos se agitam. O leitor-intérprete, num frémito sem sono, derruba a muralha e funde-se no dentro-fora do texto do autor-intérprete. Assim se mostra o criador, sem se dar. Aí começa a empresa do leitor, insónia activa pela vida do texto dentro de si. Joyce afirmará algo de semelhante a propósito dos seus livros, escritos a pensar no «leitor ideal que deverá possuir a insónia ideal».
James Augustine Joyce nasceu a 2 de Fevereiro de 1882, em Rathgar, nos subúrbios de Dublin. Seis anos volvidos, ingressa no Colégio dos Jesuítas de Clongowes. Pouco tempo depois, na mesma altura em que, por razões económicas foi obrigado a mudar-se para uma escola mais barata e protestante, descobrem-se-lhe os primeiros tentames literários. Em 1893, inscreveu-se, gratuitamente, no Colégio Jesuíta de Belvedere sendo, em 1898, admitido na University College, instituição católica da universidade de Dublin. Fascinado por Ibsen, publicou aos 18 anos um artigo dedicado ao escritor norueguês com quem, aliás, entabulará correspondência. Em 1902 viaja até Londres e Paris, iniciando, no ano seguinte, o também cultuado Gente de Dublin. Em 1904, publica diversas composições poéticas em revistas e viaja com Nora Barnacle por Zurique e Pola. Em 1905 dá início à sua carreira docente na Berlitz School de Pola, de onde transitou para a homónima da Trieste, surgindo-lhe, enquanto trabalhava uns meses em Roma, as primeiras ideias para o Retrato de Artista quando Jovem e o Ulisses. No ano de 1907, publica Música de Câmara, saindo a lume, volvido quase lustro e meio, Gente de Dublin (1914). Em 1916 deu-se à estampa Retrato de Artista e, em 1918, Exílios. Instala-se em Paris em 1920. O espírito odisseico do escritor irlandês em breve chegaria ao fim dessa incomparável viagem iniciada, ainda seminalmente, no já longínquo ano de 1906 e com data de arrancada por 1914. Joyce conclui Ulisses em 1921, publicando-o na não despicienda data de 2 de Fevereiro de 1922. Afinal, nesse monumento perene estava a sua vida. O tempo vai poendo. Joyce regressa à poesia com Pomes Penyeach (1927) e com Collected Poems (1936). A par dessa incursão lírica, vai publicando fragmentos da sua «work in progress» Finnegans Wake que verá a luz do dia no dealbar da Segunda Grande Guerra . Dois anos depois, em 1941, com inconclusos 62 anos de idade, Joyce abandonou o corpo e subiu ao Olimpo.
Joyce era um obcecado por datas , comemorações e coincidências. Todos os anos, a cada 16 de Junho que passava, colocava a si próprio a mesma questão: «será que alguém se lembrará deste dia?». Ao que parece, a efeméride irá ser comemorada por mais 300 anos, pelo menos, os mesmos que Joyce gostaria que durassem todos os enigmas de Ulisses e Finnegans Wake.
Mas o que acontece a 16 de Junho para que James Joyce seja recordado para sempre? Destacamos o "Bloomsday", o dia em que se desenrola a história de Leopold Bloom, de Stephen Dedalus e de Molly Bloom, os personagens principais do livro que foi criado para destruir todos os livros, o livro que todos querem ler mas não conseguem, o livro impossível de ser compreendido - Ulisses. Claro que também havia um motivo pessoal para Joyce escolher essa data. Por baixo da arquitectura detalhista, do rigor quase maníaco, do virtuosismo estilístico, da ambição do projecto, Ulisses é, na verdade, uma carta de amor a Nora Barnacle. E como bom irlandês, temperou o seu amor com um pouco de traição, muita cerveja espumosa e, principalmente, muita audácia pela única coisa que dava sentido à sua própria trajectória pessoal tumultuada: a literatura. Data indefectível na mitologia joyceana, o dia 16 de Junho de 1904 é, na vida real-real, o dia em que Nora Barnacle, a mulher que viria a acompanhar Joyce para todo o sempre, fez do jovem Augustine, de 22 anos, «um homem de verdade», segundo o testemunho das suas cartas intensamente melodramáticas, algo estranho para alguém que possuía uma visão do mundo bem grotesca e bem ao gosto dos irlandeses, carregada de humor esdrúxulo e de um profundo carinho pelo ser humano. Mas, ser melodramático também fazia parte da personalidade complicada de Joyce, quase no limite da esquizofrenia, e que conseguiu ficar una graças à palavra que o guiava nos subterrâneos da psique universal. Assim, ao escrever o grande romance sobre a totalidade da vida nada mais natural que situar os seus três personagens - Ulisses, Telémaco e Penélope da era moderna - em busca de uma razão para viver, senão no dia em que o seu criador encontrou a sua própria razão para viver. O antigo herói grego é agora transformado num homem comum e as lutas épicas passam a pequenos desafios diários. Joyce acreditava que era dever do artista representar todos as situações da vida o mais honestamente possível, em especial, aquelas que não eram discutidas em público, tais como o comportamento sexual, funções do corpo e controvérsias religiosas. Em Ulisses, 24 horas são comprimidas em 1000 páginas de monólogos interiores, blasfémias, momentos sublimes ("epifanias"), reflexões sobre a morte, bêbados, poetas, jornalistas, prostitutas diabólicas, ateus santos, passado, presente e futuro tornando-se uma grande síntese na mente de um escritor que conseguiu retratar a sua cidade natal com tamanha exactidão, que ela poderia ser novamente reconstruída através dos seus livros, caso fosse consumida num incêndio.
Ulisses, 1906 - 1914 - 1922. A ideia, a palavra de Trieste e o seu corpo. No real-ficcional o dia 16 de Junho ficaria gravado no Ulisses, associando-se-lhe, para todo o sempre, o "Bloomsday" e o "doomsday", libação celebrativa do valor da refundação linguística operada pelo escritor irlandês.
Joyce escrevia devagar e meticulosamente. Modificava passos e adicionava novo material aos rascunhos à medida que os ia revendo. Onde quer que fosse, levava consigo pequenos livros de apontamentos para anotar, de imediato, uma palavra ou uma frase que tivesse chamado a sua atenção ou de que gostasse. A enorme quantidade de detalhes que adicionou às suas histórias é uma das razões pelas quais elas são tão desafiantes e satisfatórias de ler.
Acusado por muitos de ser um herege por causa da sua recusa em viver de acordo com os preceitos da Igreja Católica, na qual foi educado, a sua aparente heresia constituía, na verdade, um murro na fachada obsoleta das instituições, a única forma de rebelião possível numa Irlanda aprisionada culturalmente e politicamente pela bota inglesa, um país traumatizado pela traição de Charles Parnell, pelas guerrilhas de Michael Collins e por um tal de Renascimento Cultural Irlandês que nunca interessou às ambições do jovem Joyce. Orgulhoso da sua nacionalidade e desejando ver o país independente, era céptico, contudo, em relação ao modo como os movimentos políticos normalmente acabam por limitar as liberdades individuais. Vestindo as "asas" de Dédalo, o grande artífice-arquitecto grego, Joyce voará alto por sobre todas as restrições castradoras que impõem um enclausuramento no pesadelo que é a história da Irlanda. Defendendo a paixão individual como o poder motivador para tudo, arte e filosofia incluídas, e adoptando o credo «non servian» por forma a alcançar uma liberdade incondicional, transformar-se-á num potencial autor de uma epopeia nacional irlandesa. Na doutrina cristã, o único ser "não-criado" é Deus. Na perspectiva teológica de Joyce, é a consciência rácica que ainda urge criar e será ele o seu profeta, ou talvez o seu redentor. Assim como Cristo na cruz simboliza a humanidade, Joyce surgirá, à sua imagem e semelhança, como baluarte de uma identidade nacional una. Será, no fundo, através da sua escrita e da literatura enquanto missão, que irá oferecer a sua própria alma, em sacrifício, à Irlanda e «forjar a consciência incriada da minha raça» (Retrato de Artista).
É justo que Ulisses, a história de um dia na vida de Dublin de há cem anos atrás, seja celebrado em todo o mundo, no dia 16 de Junho, o Bloomsday - talvez a única festividade internacional dedicada a uma obra de arte. Através das personagens e lugares que descreveu, Joyce mostrou a Dublin de 1904 ao mundo; e pelas suas inovações literárias mostrou que a Irlanda, apesar da sua imagem tradicional, é um caso exemplar do mundo moderno.