12.5.07

Jardins do Mundo ( Congresso Internacional no Funchal)


Realizou-se na Madeira entre 9 e 12 de Maio um Congresso Internacional sobre os Jardins do Mundo com a presença e a participação de investigadores e estudiosos com trabalho realizado nesta área. Do site do Congresso retiramos o interessante texto de apresentação de autoria de José Augusto Mourão (UNL-DCC) que acompanhava o programa do Congresso, integrando diversas intervenções e painéis, e que pode ser consultado aqui



Os Jardins do Mundo - figuras, bifurcações, metamorfoses
(texto de José Augusto Mourão)


“Nel magma del continuo ci sono linee di resistenza e delle possibilità di flusso, comme delle nervature del legno o del marmo che rendono più agevole tagliare in una direzione piuttosto che nell’altra.” – U. Eco

“The future is not just what lies ahead. Nor is it what we create. Rather, the future is what nature and we form together. Visionary land mosaics, where nature and people both thrive long term, await our portrayal, and lie within grasp just over the horizon.” - Richard T. T. Forman


O jardim é um microcosmo na sua expressão ideal, abrigando, ao lado das plantas e dos animais, objectos de todas as artes. Objecto multimodal e multisensorial, o jardim, se num primeiro passo nos solicita a vista, logo nos envolve como um espaço que se percorre com todos os sentidos. Aí escutamos os sons mais diversos, aí respiramos o cheiro das flores (os jardins de Adónis) e os sabores dos frutos. O jardim “È il luogo dove triunfano i sensi: i morbidi petali di una rosa, l’odore dei fiori, il gusto di un frutto, la vista di siepi ed aiuole, il canto degli ucceli possono dare un piacere sottile o esercitare a condizionare il corpo e la mente” (Cardini: 2002).Tradicionalmente, o jardim era o lugar não apenas de meditação e de leitura - nihil praeter animum esse mirabile – mas também da música, das danças e dos jogos. Mas não há apenas jardins dos sentidos. O jardim medieval, renascentista e barroco tem uma intenção emblemática e alegórica muito marcada, como um grande texto orgânico, como uma grande enciclopédia do saber universal traduzida em imagens, ou como uma metáfora espiritual a decifrar. Jardins da mente, jardins ideais, iniciáticos e hipertextuais, os jardins são o lugar de encontro da natureza e do artifício, da inocência e da justiça, da vontade soberana. Texto e lugar duma experiência, objecto de contemplação e lugar de práticas, de percursos perceptivos, teatro de paixões, de representações e de experimentações (os jardins do futuro de Gy Cooper e Gordon Taylor), o jardim é sobretudo a figura da relação de poder entre o homem e a natureza. A literatura fala da relação ideal com a natureza (no Cântico dos Cânticos a mulher é o jardim fechado), mas também a pintura (El huerto y la eremita, de Joaquin Mir), o cinema e a música (“os jardins do mundo” de Manuel de Falla, ou o “Garden Rain” de Takemitsu).



A ciência moderna é essencialmente uma ciência diádica da naturaza, em ruptura com a tradição goetheana, que era morfológica. Qual o estatuto de uma entidade que contém ao mesmo tempo o natural e o cultural? O ser é a experiência da resistência morfológica da matéria por e através de uma força-corpo que se esforça para a partir daí extrair uma forma. O que se observa é a emergência do ser como emergência de um processo, um efeito da resistência da morfologia à acção que quer dar forma. Estamos habituados ao maniqueísmo das “duas culturas”. De um lado, a natureza, a objectividade, a técnica; do outro, a verdade do mito, a vida como genealogia da autenticidade, a escatologia. Na tipologia conhecida dos jardins, o jardim da inteligência (ego-lógico) opoe-se ao jardim da sensibilidade (ego-pático). Rousseau opõe o jardim da sensibilidade (Eliseu) ao jardim da inteligência (Versalhes). Ora, o jardim põe em questão esta dicotomia enquanto natureza cultivada, culturalizada (o melhor exemplo é o jardim chinês, que não é utópico mas ucrónico). O jardim aberto é uma das grandes invenções do Renascimento. A contemplação passa da taxonomia descritiva do imóvel hortus conclusus para a narração dinâmica de um itinerário que é ainda vaigem do conehcimento e da progressiva apropriação da realidade, peregrinação da alma, descida aos infernos e subida ao céu. O grande modelo dos jardins iniciáticos de Florença do Cinquecento reflecte o discurso iniciático em que a literatura hermética e o Hypnerotomachia Poliphili deixam marcas notórias. O humanismo partilhou o mundo em dois, deixando a metade não-humana feita de natureza e das coisas (Latour, 1991: 180). A “parte das coisas”, dos não-humanos, das bestas, das máquinas, da natureza deve ser igual à parte dos humanos. É o seu entrelaçamento que tem de ser pensado. É preciso agora inventar a simetria dos humanos e dos não-humanos.



O jardim é um teatro móvel, uma transição contínua da arte à natureza e da natureza à arte (W. H. Adams). Enquanto espaço híbrido, implica uma convivência implícita entre elementos da natureza e da cultura, permitindo a intervenção poética do humano. Se temos de guardar a separaçao entre a natureza objectiva e a sociedade livre, temos também de rejeitar a separaçao entre a natureza e a sociedade. Jardinar a natureza é um desígnio que atravessa os tempos, de Leon Battista Alberti a Robert Smithson. O jardineiro trabalha com as mãos, mas também com os seres vivos e com elementos materiais muito simples. Se a paisagem corresponde a um certo tipo de sonho imaterial, à idealização de uma civilização, o jardim é um recinto dentro do qual o jardineiro se encarrega de proteger a vida, sendo ao mesmo o reflexo dos mais díspares processos de socialização.



O jardim é um vivo. O jardim é a memória do mundo e a memória do homem. Ora, o vivo é uma máquina semiótica natural. O diadismo é um determinismo causal em sentido mecânico, do tipo estímulo - resposta. Há causas eficientes que produzem efeitos de forma mecânica. É a triadicidade que implica o semiótico. Num nível triádico há sempre um interpretante que selecciona estímulos, funcionalmente pertinentes para o sistema em relação com o seu meio ambiente. É nesta semiótica da natureza que Peirce pensou a evolução biológica. A natureza é auto interpretante. Não há função se o sistema não é complexo: é preciso que o sistema seja capaz de interpretar o meio ambiente. A tecnologia tende a desnaturalizar a natureza. Por isso o culto da tecnologia aparece à vanguarda russa, entre 1914 e 1930, como algo que se estava a distanciar da natureza. Os artistas do modelo orgânico, que incluem Mativshin e os seus discípulos Boris, Maria e Ksenia Ender, voltam a sua energia artística para o orgânico e o inorgânico conscientes de que é aí que encontram a natureza.



O Jardim Botânico representa um universo ordenado, catalogado. Os jardins de papel, os herbários (Macer Floridus, Hortus sanitatis)os horti picti da pintura parietal romana, o design do jardim moderno, colocam-nos diante de uma arte que tem como lei primeira a metamorfose. O jardim, o horto, o labirinto, se indicam a nostalgia do paraíso e o desejo de repouso, apontam também para o risco e a aventura que nos constitui como humanos. Costuma-se distinguir paisagem como algo que pertence à ordem político-administrativa, de paisagem como landscape painting. Paisagem, neste sentido é mais romântico e infinito que paisagem no primeiro sentido. A “Paisagem” é um projecto que implica os indivíduos e a sociedade: há uma construção do território por parte do homem; o homem é o arquitecto e o paisagista. A paisagem contém sempre dimensões poéticas e estéticas que variam constantemente dentro da nossa própria história. De resto, qualquer cidadão é criador de paisagens. A paisagem nao é a natureza porque é sempre o resultado de uma transformação. É um projecto que se refere sempre ao habitat humano. É o consumo turístico das paisagens que facilita o admirável desenvolvimento das redes de transporte e que opoe a cidade à natureza. A paisagem tende a transformar-se em ordenamento paisagístico e a cultura do território, cedendo ao produtivismo, deixa de ser um projecto de sociedade. Dantes, a natureza cultivava-se em contraste com a tecnologia. A tecnologia tende a substituir o humano. Naquilo a que Sloterdijk chama homeotécnica o sujeito e o objecto coincidem. O que hoje se defende é um mundo ecológico sustentável, e neste mundo a natureza e a tecnologia apresentam-se como algo homogéneo. “Some people see nature in the square in front of the cathedral, but the images of nature, of paisaje and of landscape in landscape architecture exist in our minds, not in reality” (Peter Latz). Já não estamos num universo regido por leis naturais mas num pluriuniverso que deve alcançar pleno estatuto jurírido (Isabel Stengers).



A visão do paraíso varia consoante as épocas e as latitudes. Para o Árabe dos primeiros séculos do Islão, a referência é o oásis, para o Francês do século XVII, a clareira, para o Chinês da época clássica, um microcosmo confuciano, para o japonês, um refúgio metafísico. Os jardins são igualmente alegorias do poder, domínio da nostalgia ou da ambição social, lugar de distenção ou de poder urbano. Apesar da advertência de Lutero e Du Bartas de que “é vão perguntar hoje onde se encontrava e o que era o jardim (do Paraíso)”, para os contemporâneos de Dante, para o autor do Orto do esposo ou do Tratado da terra do Brasil, para Luzano Lima, Vargas Llosa, W. Blake, W. J. Mitchell, o paraíso não é uma ficção piedosa ou um capricho de embelezamento (os caprichos de Gaudi nos jardins de Comilhas). Mas os jardins têm igualmente uma componente prática (os jardins dos simples). A natureza é boa e está destinada a ser uma farmácia-jardim, cujos frutos servem de alimento e as folhas de remédio, segundo a “teoria delle segnature” em que a forma exterior dos vegetais e as suas qualidades ocultas se encontram (Hildegarda de Bingen, Phsysica). A farmácia greco-romana é uma botânica medicinal, uma matéria farmacêutica vegetal que tem como máximo representante Dioscóridas(1). A alquimia procurava uma terapêutica de purificação e de regeneração e para isso os vegetais eram inadequados. O mito de Panaceia não parece gozar hoje de muita devoção(2).



A ideia de que o jardim é o tempo se fecha e que aí é sempre primavera, de que o jardim é um paraíso na terra, é uma ideia platónica. O que é um jardim senão o sonho de um paraíso perdido e o ensaio – sempre imperfeito – de o reconstituir, uma memória em ruínas? Se nele se manifesta a vida e alma do seu criador, também nele se reflecte a nostalgia de um mundo perdido (o jardim inglês). O mundo é o resultado de uma arte em que a natura e o artifício se confrontam e se mimam. Viver é inventar uma forma. O jardim é frágil e efémero. Como inventariar essas formas frágeis, moventes, de que poucos sobreviveram à ruína e ao abandono (dos jardins da vila Adriano em Tivoli restam escombros)? Donde o trabalho de restauro (dos arborestos, dos jardins botânicos). A degradação da Terra anuncia uma crise que se avizinha. Não anuncia a destruição dos jardins (dos bairros antigos e da paisagem) o fim também da casa comum em que habitamos? A arte dos jardins não se confina ao passado nem aos jardins de papel. A natureza é uma entidade viva, por isso tem de ser escutada. Bruno Latour fala mesmo do “parlamento das coisas”. É preocupante imaginar um mosaico terrestre (R. T. T. Forman, C. Troll) em que tanto a natureza como as pessoas se possam desenvolver. Estamos a viver numa planeta muito parecido com um jardim porque a afinidade ecológica nos mostra que o novo recinto pode ser o limite biológico da terra (G. Clément).



Porque o jardim constitui um sistema aberto de ressonâncias e de interdendências, é propósito deste Congresso analisar as bifurcações que os jardins evocam, as mediações que propiciam, as formas de vida e suas representações (viveiros de formas arquitectónicas irénicas, utópicas, naturalistas, contra-cultura, tecnológicas, urbanísticas, turísticas, patrimoniais, heterotópicas). Se o jardim é um vivo, não o podemos tratar como um ser de papel. Há que contar com as resistências e as insurgências dos jardins, não agindo contra a natureza, mas com ela. Se vir ao mundo é vir à linguagem, habitar o mundo como uma casa comum obriga a uma comunidade de diálogo, livre do fantasma do domínio e da criação de um parque humano regido pelo determinismo da tecnociência. Se acreditamos que existe uma eloquência da natureza, então teremos de abrir o “parlamento das coisas” ao parlamento dos humanos para que se discutam representações, projectos, fantasmas; em que identifiquem as ameaças de destruição do planeta (no jardim de Luis Dorléans figura um mundo em que o Mal está sempre a irromper); em que, enfim se encenem as formas de vida que os humanos e os nao-humanos terão de encontrar para conviver, senão para sobreviver.

José Augusto Mourão (UNL-DCC)



(1) Tamargo, Menéndez, Juan Luis, 1999, “Tras las huellas de Dioscórides”, in Laguna, Andrès: Pedanio Dioscórides Anazarbeo, Acerca de la materia medicinal y de los venenos mortíferos, 1566, edición facsímil, Biblioteca de Clásicos de la Medicina y de la Farmacia Española, Madrid, pp. 121-155.




(2) Puerto Sarmiento, Francisco Javier; El mito de Panacea, compendio de historia de la terapéutica y de la farmacia.