L'ATALANTE (1934), filme de Jean Vigo, e uma obra-prima da história do cinema
JEAN VIGO - Um Cinema Social
por Natasja Berzoini
Momento Histórico
O período é do pós-Guerra Mundial. Vislumbra-se aí a renovação do cinema francês. O cinema tem uma história recente e ainda está procurando legitimar a sua linguagem e explorar as suas possibilidades visuais. Esse momento coincide com as vanguardas na arte marcada pela multiplicidade de tendências e manifestos que propõem um novo rumo estético para a arte - desestetização e uma redefinição do conceito e do valor supremo da arte como naturalismo. Os movimentos vanguardistas - o surrealismo, o dadaísmo - apresentam os seus manifestos, novas formas de expressão artística, uma nova linguagem, novos meios de composição e de configuração e, assim, uma nova forma de lidar com a realidade. Esse momento de efervescência artística vai influenciar directamente os cineastas franceses preocupados com uma nova estética e linguagem cinematográfica, permitindo um diálogo constante entre a arte e o cinema. A experimentação foi fundamental no exercício de repensar o cinema enquanto arte e as suas potencialidades e recursos expressivos na criação de uma linguagem própria.
"Entende-se, com este termo - vanguarda -, um movimento que investe um interesse ideológico na arte, preparando e anunciando deliberadamente uma subversão radical da cultura e até dos costumes sociais, negando em bloco todo o passado e substituindo a pesquisa metódica por uma ousada experimentação na ordem estilística e técnica" (Giulio Carlo Argan)
Jean Vigo - Entre a Vanguarda Francesa e o Realismo Poético
A Vanguarda Francesa, na década de 20, propõe uma experimentação acerca das possibilidades estéticas e visuais do cinema. São, portanto, filmes experimentais inspirados nos movimentos vanguardistas como o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo. O escritor e o cineasta Louis Delluc lidera esse movimento numa crítica ao cinema industrial e no sentido de reservar para o cinema um discurso intelectual e de protesto configurado por uma linguagem artística. Os principais nomes da Vanguarda Francesa são: Luis Buñuel - L'Âge d'or e Un Chien Andalou -, René Clair - A Nous la Liberté -, Jean Cocteau - Sang d'un poète, entre outros.
A obra de Jean Vigo é compreendida numa transição entre a Vanguarda Francesa e o Realismo Poético, entre o cinema mudo e o cinema sonoro. Vigo vive em Paris nos anos 20, na época de ouro do surrealismo, mas não se vê directamente influenciado pelo manifesto de André Breton. Identifica-se com a proposta de Un Chien Andalou e de uma maneira indirecta e mais pessoal do que artística é inspirado pelos ideais, tomados pelos surrealistas, de liberdade, de anti-autoritarismo e de repúdio ao academicismo. O seu primeiro filme, um curta-metragem mudo de 27 minutos, A Propos de Nice, é considerado na esfera da experimentação vanguardista, assumindo a discussão estética do movimento. Vigo estrutura seu discurso sob o signo do grotesco, do carnal e da morte.
Zéro de Conduite, um média-metragem de 1933, também se dá no contexto da Vanguarda Francesa por ser uma evidente crítica à ordem social vigente e aos bons costumes no ideário do surrealismo. Zéro de Conduite é um grito contra o autoritarismo, envolto numa simbologia lírica e satírica. Grito esse que foi calado até 1945, quando finalmente foi permitida a sua exibição. No entanto, toda a rebeldia que Zéro de Conduite manifestava já estava descontextualizada historicamente e tinha o seu autor morto e sem memória, assim o filme foi perdendo o seu furor e o seu sentido primeiro, uma denúncia corajosa à época da diligência militar. A maior parte dos críticos da época se manifestou num tom de melancolia e decepção em relação à tardia exibição de Zéro de Conduite:
"Enfim autorizaram a exibição pública de Zéro de Conduite. Já não era sem tempo. Talvez até já seja tarde demais. Os anos passaram. O filme envelheceu e a dinamite que ele continha não explode mais. Não, a esperada revanche não acontecerá. Não sei mesmo se, para a memória do querido e saudoso Jean Vigo, morto antes de poder realizar uma obra que se prenunciava notável, não teria sido melhor guardar apenas na lembrança este filme que, na época, fez estremecer a boa educação da Senhora Censura (...)"
Depois de Zéro de Conduite (1933), Jean Vigo dedica-se ao que viria a ser o seu último filme L'Atalante. O roteiro, escrito por Jean Guinée, conta uma história de amor de forma muito banal e com elementos muito clichês, inclusive para a época e principalmente para o génio singular e inquieto de Vigo. Mas o cineasta francês consegue transformar uma história tradicional de amor, misturando sonho e realidade, crítica social e lirismo evitando instintivamente todo e qualquer sentimentalismo. L'Atalante aproxima Vigo do Realismo Poético de René Clair por quem tinha uma grande admiração.
O Realismo Poético inicia-se justamente na transição do cinema mudo para o cinema sonoro, o que levou os vanguardistas a se libertarem do experimentalismo e criar uma estética naturalista de crítica à realidade social. A melancolia, a poesia, o lirismo são instrumentos para tratar a imagem naturalista. Jean Renoir, um dos grandes nomes do Realismo Poético, utiliza simultaneamente a ironia e a compaixão ao versar imageticamente sobre a condição humana, ressaltando a fraqueza dos homens. Les Bas-fonds, La Grande Illusion (A Grande Ilusão) e La Règle du Jeu (A Regra do Jogo) são alguns dos filmes que revelam a sensibilidade e o humanismo propositado na mensagem que Renoir quer transmitir a seu público através de seu cinema engajado. Ele discursa na denúncia do fracasso, da decepção, da tristeza, da fúria que pertencem indistintamente aos homens bons ou maus, todos moralmente instáveis.
O Realismo Poético reaviva o naturalismo apresentando personagens comuns, inspirados nos tipos humanos das classes populares, os ambientando em seus lugares de proveniência - feios e sujos. A temática realista exige um tratamento poético, um certo lirismo para chamar à simplicidade da vida os espectadores que esperam algum tipo de entretenimento ou espectáculo. Mas não o têm.
Jean Vigo entende o sentido verdadeiro do Realismo Poético e o exerce em L'Atalante como ninguém. Ele leva à tela uma crítica social sob a visão mais pura da poesia e revela sua qualidade estética na consciência translúcida de sua exposição.
O movimento francês ainda revela ao cinema nomes e obras como Marcel Carné com Le Quai des Brumes (Cais das Sombras) entre outros, Julien Duvivier com Um Carnet de Bal (Um Carnet de Baile).
Jean Vigo - Um Cinema Social
"Desejaria conversar convosco sobre um cinema social mais definido, e do qual estou mais próximo: o documentário social ou, mais exactamente, o ponto de vista documentado. Neste domínio a explorar, afirmo que a câmara de filmar é o rei, ou pelo menos o presidente da república. Não sei se o resultado será uma obra de arte, mas do que tenho a certeza, é que será cinema. Cinema, no sentido em que nenhuma arte ou ciência pode substituir a sua função. (...) Este documentário social distingue-se do documentário tout court e das atualidade da semana, pelo ponto de vista que nele, o autor claramente defende. Este documentário exige que se tome posição, porque põe os pontos nos is. Se este cinema não compromete um artista, pelo menos compromete um homem. Isto vale bem aquilo. "
Jean Vigo nasceu em 26 de Abril de 1905. Filho dos activistas anarquistas Emily Cléro e Miguel Almareyda (pseudónimo de Eugène Vigo). Passou a infância em comícios e assembleias, entre as frequentes prisões do pai, que escrevia em jornais revolucionários constantes ataques à política de guerra, ao militarismo e ao autoritarismo. Vigo cresceu vendo seu pai lutar pela liberdade e pela justiça social e esse princípio virou sentimento de revolta quando o pai morreu em circunstâncias misteriosas, enforcado com os fios das suas botas na prisão de Fresnes em 1917, quando Jean tinha apenas 12 anos. O efeito da morte seu pai em Vigo é imediato e ele ainda iria carregar esse peso até o fim de seus dias. No ano seguinte Vigo é levado para o sul. Volta à Paris em 1924 para estudar na Sorbonne. Logo, Jean Vigo começa a apresentar os primeiros sinais da doença contra a qual lutaria pelo resto de sua vida, a tuberculose. Em 1929, o seu padrasto lhe dá uma câmara com a qual faz seu primeiro filme, A Propôs de Nice. Restariam a Vigo apenas quatro anos de vida, nos quais realizaria seus dois mais brilhantes filmes: Zéro de Conduite e L'Atalante.
Zéro de Conduite
Zéro de Conduite conta a história de quatro meninos que estudam num internato e se revoltam contra os professores. Vigo faz um retrato real e uma crítica impiedosa à repressão, entremeada de sátiras e deboches. Vigo revela um genuíno espírito de rebeldia e inconformismo. Foi exactamente por seu conteúdo revolucionário que Zéro de Conduite foi censurado até 1946. É, na verdade, um filme com um teor muito pessoal, pois retrata a vida num internato, sendo que seu pai que morreu de forma misteriosa anos antes tinha passado, na adolescência, por um reformatório, marcando profundamente a posição política que viria a adoptar - anarquista e antimilitarista, temas frequentes na obra de Vigo. O próprio Vigo passara a adolescência nesses colégios. Os nomes dos personagens principais de Zéro de Conduite são baseados em seus amigos que o protegeram no liceu Millau, Bruel e Caussat. O filme é autobiográfico, um relato de sua experiência durante quatro longos anos que passou no internato fazendo molecagens, recebendo zeros de comportamento, mas também é uma homenagem ao pai, Almereyda e uma manifestação crítica e simbólica da sociedade francesa.
Zéro de Conduite é um manifesto com a repressão e a autoridade. Vigo faz uma sátira da escola como responsabilidade moral na educação e formação das crianças. Os professores são caricaturas: um jovem professor imita o Carlitos sem muito sucesso entre os alunos, o director é um anão perverso e os alunos revelam uma brutalidade e uma violência surpreendentes, que é para Vigo uma legitimação imaterial do passado, numa espécie de experiência que poderia vir a ser catártica para o próprio Vigo numa purgação de desordens emocionais e traumas a partir da estetização de sua história num suporte fílmico.
Zéro de Conduite é uma efervescente crítica aos padrões e normas estabelecidos rigidamente pela sociedade francesa que se legitima numa espécie de poesia visual anarquista. A cena mais marcante e poética é a do dormitório em que os meninos guerreiam com travesseiros que se rompem transformando-se numa chuva de plumas. Toda a cena é registrada em câmera lenta numa elevação do ato de bravura dos meninos. A música de Maurice Jaubert foi registrada ao inverso numa tendência autenticamente surrealista.
L'Atalante
Uma história de amor repleta de lugares-comuns. Este foi o roteiro escrito por Jean Guinée entregue a Jean Vigo. O resultado é a mais autêntica expressão do lirismo no cinema francês. Vigo repudia ao máximo qualquer tipo de sentimentalismo que uma história como essa poderia despertar. Ao invés disso, cria um ambiente de mistério, de intriga e de ingenuidade por parte de seus personagens mergulhados num conflito amoroso. A música como elemento dramático narra a vertiginosa queda dos espíritos puros de Juliette e Jean num desencontro doloroso.
L'Atalante narra a história de Jean e Juliette, recém-casados que vivem numa barcaça. Juliette logo se desilude com a vida matrimonial e vai para Paris. Jean ao descobrir a fuga da mulher veleja, sem esperar o seu retorno numa frieza e indiferença dissimulada que num instante transforma-se no mais profundo desespero e solidão. Vendo a tristeza do patrão, le père Jules sai à procura de Juliette. Encontra a moça num estado mais deprimente que o do patrão e a carrega a força para a barcaça, onde Juliette cai nos barcos de Jean. Final feliz. Imageticamente, Vigo utiliza com primor e dignidade uma simbologia lírica e sensual que desvincula a história da banalidade, numa revisão criativa e original do roteiro de Guinée. O cineasta cria em L'Atalante uma ligação íntima e peculiar entre fantasia e naturalismo numa tendência inconsciente ao surrealismo.
"Ele [Vigo] narra-a num estilo que lhe é peculiar. É um estilo excitante. Na sua base há um senso de realismo documental que faz da barcaça uma barcaça verdadeira...Mas por cima desse realismo existe um mundo enlouquecido de símbolos e magia, característico de Vigo. O imediato, também, de um modo mais monstruoso, representa o romanesco. É uma nova e fascinante maneira de contar estória, e Vigo é claramente um dos jovens diretores mais imaginativos da Europa"
Jean Vigo narra uma história de amor recorrendo a uma sutil sensualidade despertada pelo amor ingênuo e difícil de Jean e Juliette. Desejo, paixão e amor sublime confundem-se corrompendo o dever matrimonial. Juliette quer o mundo além da barcaça, onde Jean a prende e a perde. Ele perde Juliette em sua rudeza e incompreensão. Juliette foge em busca de tentações e novidades, que não encontra em Paris. Segundo Marina Warner, romancista e historiadora, L'Atalante "acompanha ambos os protagonistas numa viagem do coração", que os expõe a um sofrimento erótico para uma descoberta maior e sincera do amor que sentem um pelo outro. O lirismo poético de Vigo chega ao clímax visual quando Jean mergulha no mar para procurar a imagem de Juliette, que surge à sua frente, mas ele permanece cego diante da câmera. A simbologia presente nessa imagem nos leva a entender o sofrimento de Jean. L'Atalante não é só um delírio poético surrealista. O filme não poderia ser limitado a isso.
L'Atalante é também uma crítica social que evidencia de maneira sutil a luta de classes na cidade Francesa e o trabalho nos canais.
"Na parte sobre Paris, em L'Atalante, Vigo mostra sua preocupação social com a pobreza e desemprego dos anos 30, ao passo que Boris Kauffman produz uma iluminação sombria e profundas sombras angulares para o cenário da acção quase inteiramente silenciosa"
L'Atalante é uma tensão entre um surrealismo delicado - representado, principalmente, na fotografia da cidade - e uma crítica da organização social francesa.
Considerações Finais
Jean Vigo é o primeiro mártir do cinema. E como mártir foi devidamente negligenciado pelos críticos e pelos cineastas de sua época. Vigo conduziu em seus filmes um estilo intensamente pessoal e original. O cinema breve de Vigo não nos satisfaz por completo, mas nos faz pensar toda a magnitude de um cineasta social, lírico e verdadeiro numa passagem tão efêmera pela vida e pelo cinema.
A sua actuação na produção cinematográfica francesa é curta e conturbada, mas deu um novo sentido à linguagem e a técnica do cinema. Vigo se lança num tipo de cinema muito autoral e utiliza a linguagem cinematográfica para produzir a sua crítica social.
Jean Vigo tratava a realidade directamente em seus meios, sem artifícios ou ornamentos. Ele propõe como manifesto um cinema social. E para isso é preciso ver com outros olhos, formar uma nova percepção da realidade concreta. A realidade crua, sem efeitos, sem artifícios oníricos. Talvez a sociedade francesa dos anos 30 não estivesse preparada para ganhar novos olhos. A cegueira parcial e o onírico parecem mais atraentes diante do concretismo inexorável do mundo.
Hoje, o espírito vivo, pessoal e rebelde de Vigo parece nos abalar de alguma forma. Vigo nos encanta com seu olhar subjetivo de uma incansável tradução de si mesmo para o cinema. A temática por ele valorizada ainda hoje nos atinge, assim como o sentimento poético com que ele trata os temas da realidade social ainda hoje nos seduz e estimula buscar algo tão verdadeiro para o cinema contemporâneo.
Bibliografia
GOMES, Paulo Emilio Salles. Jean Vigo (1905-1934). Trad. Elisabeth Almeida - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984
GOMES, Paulo Emilio Salles. Vigo, vulgo Almareyda. Org. Carlos Augusto Calil, trad. Lúcia Nagib - São Paulo: Companhia das Letras : Edusp : Cinemateca Brasileira, 1991.
WARNER, Marina. L'Atalante. Trad. Lucia Olinto - Rio de Janeiro: Rocco, 1996