A recente publicação das Obras Completas, com cerca de 2.000 páginas, de Guy Debord (1931-1994) fornece-nos uma excelente ocasião para uma viagem para além da sua legenda situacionista e que permita observar a prodigiosa coerência de um pensamento que, por nunca ter renegado a sua dimensão revolucionária, oferece-nos as melhores chaves para compreender o nosso tempo
Situação paradoxal é a de Guy Debord no panorama intelectual francês: por um lado, toda a gente o cita, lhe faz referência, inclusivé os próprios agentes do espectáculo, de que ele foi adversário durante toda a sua vida; por outro, fica-se chocado com a estranha discreção da imprensa face à edição do conjunto das suas obras. Um livro que reúne todas as suas obras publicadas, e que inclui ainda toda uma recolha de cartas, directivas, intervenções, artigos de revista, notas inéditas, é, sem dúvida, um acontecimento: permite simultaneamente esclarecer o trajecto deste pensamento, ano após ano, e observar a sua impressionante coerência. Mas na realidade tudo se passa como se o pensamento de Debord ficasse reduzido a clichés, a fórmulas estereotipadas, e mais que estafadas, sobre a «sociedade do espectáculo»; e isso em detrimento do posicionamento indefectivelmente revolucionário daquele que não teve outro objectivo, tanto nos seus textos como na sua vida, senão de perturbar a rdem estabelecida – ou, pelo menos, de não lhe fazer concessões.
No início dos anos 1950, Debord está no centro de um pequeno grupo de jovens que se empenham, na linha de certas vanguardas do início do século, a defender que a arte morreu enquanto entidade «separada», que a poesia deve Dora em diante passar a ser vida. Dada, pensam eles, quis suprimir a arte sem a realizar; o surrealismo quis realizar a arte sema suprimir; ora é este antagonismo que é preciso superar. Cada vida deve ser inventada e não sofrida; a cidade ( neste caso, Paris) é o território das «derivas», das aventuras ( daí o escândalo fomentado, por exemplo, contra Le Corbusier, responsável, segundo eles, de apoiar uma concepção de urbanismo visando a «destruir a rua»). O objectivoé criar situações – o que implica um desprezo para com a arte existente, e mais grealmente contra toda a cultura «alienada», separada da experiência directa. Quando muito pode-se agir na «decomposição» desta cultura, e imaginar ( com Lautréamont) nas técnicas que permitam subvertê-la….
Num segundo perído (correspondendo, de grosso modo, à passagem da Internacional letrista para a Internacional Situacionista), Debord vai muito claramente alargar o campo de acção – isto é, politizá-lo. A contestação à cultura desemboca logicamente na contestação à sociedade. O encontro com Marx era inevitável – ainda que se tratasse, no caso pendente, de um marxismo heterdoxo, nos antípodas do comunismo oficial ( para Debord e os seus amigos, foi a «contra-revolução» que triunfou no século XX, quando o Estado totalitário substituiu na Rússia o poder dos sovietes, ou quando os levantamento libertários da guerra civil espanhola foram esmagados pela burocracia estalinista).
No essencial, Debord apercebeu-se do segunte: a lógica da «mercadoria», que Marx tinha analisado, ligada ao sistema de produção, estendeu-se entretanto a todos os aspectos da vida quotidiana; o lado do «lazer», produzido pela evolução técnica, longe de suscitar liberdades acrescidas, redunda na expansão do espectáculo, propulsionando necessidades fictícias, renovadas sem cessar, e que submetem as nossas vidas a representações manipuladas e falsificadas, e que vão-se tornar na nossa relação com o mundo. É a época, para Debord, de novas cumplicidades internacionais, de alianças tácticas, traduzidas em «manifestos» ( o grupo não pára de se recompor) e também de uma intensa elaboração teórica – o levará tudo isto à edição em 1967 do livro decisivo que é A Sociedade do Espectáculo, implacável conjunto de textos impecavelmente escritos.
«O espectáculo – escreve Debord – não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada pelas imagens»; «a sociedade do espectáculo» não é somente a hegemonia do modelo mediático ou publicitário, mas, para além disso, o «reinado autocrático da autonomia mercantil que acedeu a um estatuto de soberania irresponsável, e o conjunto de novas técnicas de governo que acompanham esse reinado». A sequência é conhecida: propagação subterrânea destas teses, a sua ramificação no meio estudantil de Strasbourg a Nanterre, para acabar com a explosão de Maio de 68, cujo espírito situacionista surge como o segredo vivo, irradiante, talvez menos por influência directa ( nomeadamente, na Sorbonne, sobre o Comité para a manutenção e defesa das ocupações), do que por inspiração difusa. É ele que vibra e que se ouve nos slogans, nos cartazes, nas inscrições murais que invadem as ruas.
A continuação é mais sombria. Debord, depressa, dá-se conta de que aquilo que inspirou arrisca-se, por extensão, a converter-se em lugar comum, ou seja, a ficar diluído numa contestação banalizada, conformista. Donde a dissolução da sua «Internacional» ( que nunca teve mais do que quinze elementos), o seu auto-encolhimento, os exílios voluntários ( nomeadamente em Itália, ocasião que lhe serviu para demonstrar a verdadeira natureza do «compromisso histórico» proposto pelos comunistas, e apontar, com um enorme lucidez, a manipulação e a infiltração das Brigadas Vermelhas pelo poder do Estado).
Dá-se então o encontro com um mecenas, Gérard Lebovici, cuja editora publicará os autores predilectos de Debord ( de Gracián a Orwell), e que consagrará um sala à difusão exclusiva dos seus filmes ( pois que toda a sua aventura será pontuada por uma singular actividade cinematigráfica, visando a destruir o espectáculo desde o seu interior, com as suas próprias armas subvertidas). Lebovici aparecerá assassinada certo dia em circunstância mal elucidadas. Debord, que se torna cada vez mais irredutível, cada vez mais isolado na sua radicalidade, no momento em que a maior parte dos jovens dos anos 60 aderem à ordem liberal estabelecida, consagrará os seus últimos esforços a ripostar às imagens ( caluniosas, muitas vezes) que são postas a circular da sua pessoa e das suas obras.
Empenhado numa escrita, simultaneamente clássica e subversiva, soberana, condensada, depurada, não hesitando ( recorde-se o prodigioso Panegírico) a evocar a sua própria experiência na primeira pessoa – não por narcissismo ( até porque o narcissismo +e também um dos ingredientes do espectacular ), mas antes para sugerir que a resistência ao mundo completamente mercantilizado obriga a afirmar, apesar dele e contra tudo, que uma outra forma de vida é possível para além da que nos é imposta.
O livro maior deste último período é, sem dúvida,os Comentários sobre a sociedade do espectáculo, com data de 1988, em que Debord alarga e aprofunda as suas análises de 1967, fazendo-nos um agudo diagnóstico quer sobre o mundo contenporâneo quer sobre os meios que permitam compreênde-lo. Um ano antes da queda do muro de Berlim, ele pressente que a oposição entre a forma «concentrada» do espectáculo (os regimes comunistas) e a sua forma «difusa» ( o capitalismo ocidental) está prestes a ser ultrapassada na forma de uma « espectacularidade integrada» que reinará sem rival em todo o planeta. Quais são os seus traços carecterísticos? A «renovação tecnológica incencessante» ( por exemplo, a imposição da mercadoria informática, convertendo todo o utilizaodr em cliente submisso); a «fusão económico-estatal» ( a absorção do Estado no mercado); o «segredo generalizado» ) as verdadeiras decisões são inacessíveis, o modelo mafioso triunfa na instância política); o «falso sem réplica» ( pela primeira vez, os mestres do mundo são também os das suas representações); o «presente perpétuo» ( abolição de toda a consciência histórica).
Tudo isso cria um universo de servidão voluntária sem rpecedentes ( a verdadeira novidade do espectáculo, segundo Debord, é «de ter podido levar uma geração a vergar-se às suas leis»): «Quem olhar sempre, para saber a continuação, nunca agirá, e esse será o espectador». O momento, como é evidente, não é para grandes utopias colectivas, pois o espectáculo tudo invadiu, absorveu tudo, incluindo as crítcas parcelares, localizadas do sistema, e que não produzem senão efeitos periféricos –não é mais possível recusar radicalmente este sistema: O que em Debord não exclui uma certa tonalidade de nostalgia: a regressão é tal, de ora avante, que pode ser revolucionário retomar certos aspectos do passado – aqueles justamente que o espectáculo neutralizou…
Em suma, um livro apaixonante, no qual se pode seguir o percurso de debord ao longo de todas as suas etapas – em que nenhuma renega as precedentes. Saliente-se a fulgurância de certos textos publiados, até agora inéditos, ou desaparecidos. Por exemplo: «Adresse aux révolutionnaires d’Álgerie», de 1965, na época do golpe de Houari Boummedienne que derrubou Bem Bella; ou aquele espantoso artigo de 1967 sobre a revolução cultural chinesa, analisada em todas as suas contradições; ou ainda, mais perto de nós, as «Notas inéditas sobre a questão dos imigrados» ( Dezembro de 1985) – em que Debord coloca a questão desarmante que é a de saber qual a integração que esperam os imigrantes no momento em que o espectáculo está em vias de americanizar o que resta da França…
Tantas análises precisas, clarividentes, antecipadoras, que não cedem ao lugar comum, em especial, ao estereótipo e à cegueira da esquerda conformista. Não se trata aqui de salientar o facto de Debord nunca ter manifestado a mínima condescendência para com o «campo socialista» ou as ditaduras do terceiro mundo; ou de interrogramo-mos porque é que nele a procura do ponto de vista mais revolucinário gera, em todos os assuntos, o máximo de inteligência e de lucidez.
A notar também o extraordinário interesse dos seus textos cinematográficos. Pois que se tratava, para ele, de destruir esse código a partir do seu interior ( rompendo com toda a fascinação espectacular, e sistematicamente dissocia a imagem e o som, afirmando o primado do pensamento sobre o «visual», frequentemente graças a imagens documentários ou a planos subvertidos), paraalém de que não é menos certo que os filmes de Debord ( principalmente a sua obra-prima que é «In girum imus nocte et consumimur igni) representam uma tentativa inaudita de projectar do lado da consciência ( histórica e subjectiva) uma arte votada em princípio ao seu esvaziamento. Daí que os seus filmes sejam simultaneamente ensaio, confissão, mediação e compreensão do mundo através das suas imagens e que não se comparam a quaisquer outros– a não ser, talvez, às últimas realizações de Jean-Luc Godard ( e não deixa de ser lamentável que qualquer diálogo não tenha havido entre ambos, que se detestavam cordialmente entre si). (2)
Certamente que é legítimo não aderir cegamente a tudo o Debord escreveu. Considerar excessiva e injusta, por exemplo, o seu repúdio a toda a arte e literatura do seu tempo – quando é nítido que é justamente toda a efevercênscia criativa do século XX que o espectáculo tende destruir, ou a tornar «ilegível». Ou ainda que não deixa de ser algo suspeito a tendência de Debord a desecadear, nos grupos em que esteve, rupturas, exclusões, epurações, visando até os que lhe eram mais próximos, apoucando a dimensão colectiva ( logo, política) das suas posições. Mas talvez isso não seja mais do que a consequência forçada da sua intransigência, da sua exigência quase absoluta de radicalidade – ele que sabia que todo o grupo subversivo deve prever que seja sucessivamente «enganado, provocado, infiltrado, manipulado, usurpado, revolvido».
É esta radicalidade, em suma, que permite que o pensamento de Debord hoje em dia seja o único a dar conta de forma crítica de todos os aspectos da mercantilização do mundo, e da «falsa consciência» que daí se alastrou. Por isso mesmo é que Debord permanece, não obstante todos os efeitos efémeros das modas que convertem o seu pensamento inofensivo, profundamente irrecuperável. «É notório – escreve ele – que em nenhuma parte fiz concessões às ideias dominantes da minha época». Essa é, na verdade, a grande lição que ele nos legou – e que é preciso saber, como ele fez, passar para as nossas vidas.
Autor do texto: Guy Scarpetta
Texto publicado no Le Monde Diplomatique de Agosto de 2006
(1) Guy Debord, Oeuvres, Gallimard,Paris, 2006: edição estabelecida e anotada por Jean-louis Rançon, com a colaboração de Alice Debord.
(2) A proximidade contraditória entre Debord e godar foi muito bem apontada por Cécile Guilbert ( «Pour Débord», Gallimard, Paris, 1996) num dos melhores ensaios jamais escritos a seu respeito.