1.3.06

O amor, segundo Herberto Helder

Nota Prévia:
Herberto Hélder tem estado ausente do Pimenta Negra, facto que nos penitenciamos ora publicamente, já que se trata de um poeta vivo, cuja qualidade de produção é reconhecida por todos, com provas dadas de uma postura anti-mediática e uma atitude existencial que dispensa adjectivos, de tal modo é marcada pela materialidade poética de um estar e de um ser que nos merece todo o respeito e empatia, e que nos tem, de resto, acompanhado e sido constante referência ao longo dos nossos anos de vida. A incondicional poesia da vida vivendo-se.
.
.
.

O Amor, segundo Herberto Helder

Havia uma cidade em espanto linear a cavalo noutra cidade em geometria ambígua, um jardim era metade do outro, em que as pétalas andavam para trás e para diante, com o perfume trocado e o silêncio das cores tremendo no seu erro cheio de alvoroço florido, os arquitectos disseram: é preciso um novo espaço para estas duas pessoas que estão a pensar tanto com o corpo – e numa casa abria-se a porta que vigiava os corredores onde o pólen se acendia e dançava, e de repente a porta descerrava o espectáculo antigo do nascimento da lua num quarto escuro, via-se o que a lua sempre fez para trepar do soalho para o tecto pelas paredes docemente retardadas, era o tempo da seda entre os nossos vinte dedos embrulhados, e alguém escrevia à máquina num dos planos de intersecção urbana, e a frase escrita aparecia com o seu rumor externo noutro sítio, mas agora via-se no meio de uma clareira de silêncio vivo, e ia-se apreendendo a nossa mútua nudez colocada no sentido da frase, nós éramos essa cidade tremendamente posta em uso, em toda a parte estavam mãos em vez de garfos e lâmpadas, e a frase era assim: o amor, as mãos ininterruptas.

Herberto Hélder

.
.
.
.
.
Sobre Herberto Helder
(extraído de:
Sendo Herberto Helder um dos maiores poetas europeus contemporâneos, a força motriz da sua obra reside na inquietude da vigilância, na vontade de revisitação e de questionamento incessante do seu acto poético. A sua poesia caracteriza-se por ser viva e irrequieta, transbordando os limites daquilo que enuncia, extravasando-se para além do seu contexto histórico-social e inaugurando novas zonas de exploração que lhe concedem a designação de «poética de vanguarda».

Na poesia de Herberto Helder podemos distinguir três fases: a primeira é a da «ironia mansa», onde se pode observar um desajuste entre expressão e problema, desajuste esse que ajuda a desaprender para posteriormente se aprender uma outra coisa. Esta é uma fase de confusão, onde o surrealismo e o anarquismo se entrelaçam; a segunda é a correspondente à sua obra Electronicolírica, sendo que nesta fase se observa a combinação de um número limitado de expressões e palavras mestras, criando uma linguagem encantatória, ou seja, uma espécie de fórmula virtual mágica. Na segunda fase podemos encontrar uma forte identificação com William Blake e Nietzsche; por fim, surge a terceira fase, a dos «projectos da sensível inteligência do que nos vai acontecer», onde o poeta descobre os vários graus de liberdade da sua poética, sendo esta uma fase ligada ao signo da crença.

Os temas principais da obra de Herberto Helder, - vida, morte, erotismo, poesia, conhecimento e visão mágica do mundo, determinam, muito fortemente, o encanto sentido pela imaginação e sensibilidade do leitor. A tendência fundamental do poeta é para a identificação sistemática de quaisquer objectos, sendo assim impossível desenvolver os assuntos em compartimentos distintos e rígidos o que torna obrigatória uma inter relação. Herberto Helder utiliza também palavras quotidianas, como sal, camisa, entre outras, que ocupam uma presença familiar nos seus textos, estabelecendo as áreas lexicais privilegiadas pelo autor, fazendo do espaço verbal revelador do poder mágico desencadeado pelos objectos e determinando a imagem que o poeta tem de si e do lugar onde se movimenta. Pode também afirmar-se que a obra deste poeta reata e estabelece laços com a secreta verdade dos seres, através de uma linguagem obscura, a fim de exprimir o que de mais simples existe na sua existência. Os seus textos apresentam uma inspiração tumultuosa, de ordem carnavalesca, que dá origem à multiplicação dos sinais que o poeta deixa de si no poema.

Em relação ao tema do amor, podemos dizer que Herberto Helder não cai na tendência de narrar episódios sentimentais banais ou burgueses ou situações que acabem em desenlaces domésticos, o que faria do amor um simples estatuto. Na sua obra o amor é assumido enquanto acontecimento trágico, até mortal, associado muito frequentemente a tipos de violência. O amor, como relação sentimental entre pessoas só existe na obra de Herberto Helder enquanto metáfora, referindo-se a outra relação que, não sendo sentimental, é sempre erótica e vivida com paixão

A poesia herbertiana aproxima-se, assim, das primitivas literaturas cosmogónicas e das modernas teorias cosmológicas, captando o mundo onde ele se recolhe e se subtrai, trabalhando contra o significado numa escrita cujo dom é a transmutação e desempenhando a tarefa inquieta de «pôr a vida na sua oculta loucura». Herberto Helder é o decifrador irreverente da matéria enigmática, o corruptor do real e da linguagem codificada, portanto, a sua poética apresenta uma grande sede do encoberto, passando do ilegível para o equívoco, para o erro, para o misticismo, no momento em que se alia ao esquecimento e faz a purificação alquímica da palavra, obtendo o vazio e o silêncio. Podemos concluir constatando que o trajecto da poética de Herberto Helder vai do mítico ao utópico, ao poema como partitura pura, desentranhando o «conhecimento informulado» que faz emergir a sua cosmogonia poética.

É bastante frequente afirmar-se que a obra de Herberto Helder é constituída por textos herméticos, uma vez que não se entende instantaneamente onde ele quer chegar, porém, facilmente se compreende esta poesia desde que o leitor consiga entrar no restrito circuito do pensamento do poeta. Basta, portanto, descobrir a visão do universo reflectida pelo plano da expressão poética para se entender imagem por imagem o que o poema representa. Pode considerar-se que os textos de Herberto Helder não se destinam a iniciados na poesia, uma vez que revelam uma densa complexificação poética, tornando-a obscura e enigmática, mas não hermética, pois o próprio poeta nos fornece as chaves dos seus enigmas, sendo só preciso procurá-las com bastante atenção

Transcrição de:
www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/helder/uni_hel.html


Visionarismo e Orfismo

Herberto Helder é o mais autêntico poeta órfico português, é o poeta do puro sentimento e da ligação com o mundo. Na sua poesia sentem-se, no espaço inferior, seres e elementos puros, tais como «o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe». A sua poesia representa uma doação às coisas mínimas, humildade e plenitude, excesso e inocência, alegria e terror, desejo e angústia, esplendor e obscuridade e, paralelamente, a celebração e glorificação do «mundo aberto», do «fogo essencial». Herberto Helder representa uma poesia que contém uma vasta intersecção de relações infinitas. A sua poesia atinge igualmente momentos exemplares de purificação formal e interior que são demonstrados numa maravilhosa imaginação poética. O valor excepcional da sua poesia não se revela apenas a nível formal, não querendo com esta afirmação menosprezar o facto de Herberto Helder revelar uma profunda ciência poética nos seus poemas.

O que principalmente distingue este poeta é o seu poder visionário, o sentimento transfigurador, a autenticidade dos seus temas cósmicos, o sentido do originário ou do poema como realidade originária, estando bem patente na sua obra uma intimidade profunda consigo mesma. A sua poesia tem o carácter dos grandes visionários como Rilke e Wiliam Blake, sendo que os seus temas se transcendem num só tempo para o ponto extremo de violência onde os contrários se anulam. A experiência particular do poeta transcende-se num acto absoluto, em que o poema é o lugar onde a existência e o espírito, a matéria e a alma se encontram e se fundem. Segundo António Ramos Rosa, o barroquismo e o preciosismo, ainda que não sendo excessivos, são defeitos a assinalar na poesia da Herberto Helder.

A obra de Herberto Helder é mais poética do que literária, porque nele o dom supera o talento e a visão e a experiência fundem-se no poema. O seu carácter de poeta órfico e visionário tem ascendência em Friedrich Hölderlin e Rainer Maria Rilke, dois dos principais nomes do orfismo e também na gravidade do misticismo erótico de Pierre Jean Jouve, na sumptuosidade e fulgor de Vicente Aleixandre, na nobre violência do discurso poético de Pablo Neruda e por fim na ressonância cósmica de Dylan Thomas. No orfismo «a magnífica violência do amor» traduz-se num erotismo que se propaga a todo o universo e se insere no ser da poesia, em que esta é o símbolo que se aplica ao amor. A poesia atinge assim profundidade para revelar a unidade primordial do mundo, ou seja, a unidade deste com o espírito, já que o poeta órfico identifica esta unidade como a manifestação mais sublime do amor. O poeta pretende atingir o espaço uno, onde o interior e o exterior não estão divididos, onde o espírito, as coisas e os seres se comunicam através da poesia, ou seja, através da transcendência da realidade aparente e da falsa interioridade que nos separa do exterior, das coisas humildes e mínimas.

Ao enunciar o carácter do poeta órfico, Rilke afirma que «a nossa tarefa é impregnar esta terra provisória e perecível tão profundamente no nosso espírito e com tanta paixão e paciência que a sua essência ressuscite em nós invivel» (in Suplemento Vida Literária (nº 154), Diário de Lisboa, 6 de Julho de 1961), demonstrando assim que o poeta luta contra os limites para se expôr à força da indeterminação e da «pura violência do ser», porém, é dentro desses limites que o poeta experimenta o ilimitado. Rilke diz ainda que «todas as coisas ressoam a profundidade infinita, todos os elementos se reunem com o Mundo» ( Ibid. ), sendo que, desta forma, o espaço órfico é o resultado da união do terrestre revelado como espaço interior, espaço de unidade essencial do espírito que se encontra no e pelo mundo.

Podemos assim caracterizar a poesia de Herberto Helder como uma poesia transfigurada traduzida por uma linguagem visionária que nos apresenta a profundidade elementar e original própria da grande poesia. Herberto Helder traz à poesia contemporânea portuguesa a profundidade cósmica de que ela parece desprovida.

Transcrição de:
www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/helder/vis_orf.html



Herberto Hélder (de seu nome completo Herberto Hélder de Oliveira) nasceu no Funchal, ilha da Madeira, no dia 23 de Novembro de 1930. Frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, tendo trabalhado em Lisboa como jornalista, bibliotecário, tradutor e apresentador de programas de rádio. Começou desde cedo a escrever poesia, colaborando em várias publicações de que se destacam: Graal, Cadernos do Meio-Dia, Pirâmide, Poesia Experimental (1 e 2), Hidra e Nova. É um dos introdutores do movimento surrealista em Portugal nos anos cinquenta, de que mais tarde se viria a afastar.
É o poeta mítico da modernidade portuguesa contemporânea, não só pela intensidade particular da sua obra (quer considerada em conjunto, quer na simples leitura de um único dos seus versos) mas também pelo seu estilo de vida discreto e avesso a todas as manifestações da instituição literária.
Desde O Amor em Visita, 1958, até mais recentemente, em Do Mundo, 1994, passando por Electronicolírica, 1964, e por Última Ciência, 1988, a sua poesia atravessa várias correntes literárias, manifestando uma escrita muito singular e trabalhada, sendo exemplo de um conseguimento sem falhas, sem debilidades nem concessões.
Na ficção, Os Passos em Volta, 1963 (contos), revela o mesmo tipo de elaboração linguística cuidada e encara a problemática da deambulação humana, em demanda ou em dispersão do seu sentido e da sua inteireza.

Obras: Poesia – O Amor em Visita (1958), A Colher na Boca (1961), Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Vocação Animal (1971), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), Flash (1980), A Cabeça entre as Mãos (1982), As Magias (1987), Última Ciência (1988), Do Mundo, (1994), Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971) (1973), Poesia Toda (1ª ed. em 1981). Ficção – Os Passos em Volta (1963).

http://pt.wikipedia.org/wiki/Herberto_Helder