13.10.05

O Ecologismo dos pobres


Por Joan Martínez Alier ( autor do livro «El ecologismo de los pobres. Conflictos ambientales y lenguajes de valoracion», professsor catedrático do Dpto de Economia e História Económica da Universitat Autónoma de Barcelona e presidente da International Society of Ecological Economics)

A brutal e crescente exploração dos recursos naturais provocado pelo nosso modelo económico não só dá origem a um longa lista de problemas ambientais, como gera cada vez mais numerosos e gravíssimos sociais.

O livro « El Ecologismo de los pobres» adopta o ponto de vista da economia ecológica, ou seja, a perspectiva do metabolismo social. Quer isto dizer que devemos ver a economia como um sistema aberto à entrada cada vez maior de energia e materiais, e à saída de resíduos como o dióxido de carbono e outras formas de contaminação.
Regista-se a um aumento da dimensão física da economia. Não nos estamos a desmaterializar. Pelo contrário, a economia humana vai aumentando relativamente quer a espaços quer a recursos físicos. Por isso aumentam também os conflitos ecológico-ambientais. Ou seja, não só estamos a prejudicar as gerações futuras e a eliminar outras espécies que, às vezes, nem as conhecíamos, como se registam crescentes conflitos ambientais aqui e agira.
Constatamos, desde logo, que tem havido um deslocamento dos custos ambientais do Norte para o Sul. Os Estados Unidos importam mais que a metade do petróleo que gastam. Europa e Japão dependem fisicamente cada vez mais das importações. Ao fazermos os cálculos dos fluxos dos materiais observamos que a América Latina está a exportar seis vezes mais toneladas do que importa ( minerais, petróleo, carvão, soja…), enquanto a União Europeia funciona ao contrário: importamos quatro vezes mais toneladas do que exportamos. Isto leva à conclusão de que existe um comércio ecológico desigual.
A mesma desigualdade se verifica nas emissões de dióxido de carbono, causa principal da mudança climática. Um cidadão dos Estados Unidos emite 15 vezes mais que a média de um cidadão da Índia. No livro atrás referido pergunta-se: quem é que tem títulos sobre os aterros de carbono que os oceanos passaram a ser, sobre a nova vegetação e os solos? Quem é que é dono da atmosfera para nela depositar o dióxido de carbono? Sabe-se que o protocolo de Kioto é melhor que a política de Bush mas que não resolve esse enorme conflito ecológico-distributivo. Daí a reivindicação da dívida ecológica que o Norte tem para com o Sul pelo comércio ecologicamente desigual, pela mudança climática, pela biopirataria e pela exportação de resíduos tóxicos. A Dívida Ecológica pode ser expressa em dinheiro mas há aspectos morais que não são abrangidos por uma avaliação monetária.

Ecologismo Popular

Ainda que o peso da economia cresça e apesar de haver crescentes conflitos não há que ser pessimista. Há muitas experiências de resistência popular e indígena contra o avanço das actividades extractivas das empresas multinacionais. Estas resistências parecem ir contra o curso da história contemporânea, que é o constante triunfo do capitalismo e a expulsão de gente pobre. No entanto, as comunidades defendem-se. Muitas vezes, as mulheres estão á frente das lutas. No livro referem-se muitos casos de defesa dos manglares, como na costa equatoriana, onde os manglares desapareceram para dar lugar a camaroneiras e as populações que ali viviam, na apanha de conchas, foram pouco a pouco deslocadas. Os consumidores de camarões não sabem nem querem saber de onde vêm aquilo que comem. Mas os protestos locais contra as indústrias camaroneiras têm provocado centenas de mortes nos últimos anos por todo o mundo.
O mesmo se passa na indústria mineira. As comunidades defendem-se apelando para os direitos territoriais indígenas ao abrigo do convénio 169 da OIT, como hoje é feito na Guatemala, ou através de referendos organizados com pleno êxito em Tambogrande (Peru), em Esquel ( Argentina) contra as minas de ouro. Em países como a Indonésia e a índia as comunidades indígenas recorrem a acções e processos legais. Assistimos em muitos lugares do mundo ao surgimento de reclamações contra empresas ao abrigo da ATCA dos estados Unidos ( Alien Tort Claims Act, uma lei de 1789 que permite reclamar pelos procedimentos fraudulentos a agravos contra estrangeiros por parte das empresas norte-americanas), em geral, sem sucesso. Na Amazónia há comunidades que resistem contra as empresas petrolíferas como Texaco, Repsol e tantas outras.
O norte consome tanto, os ricos do mundo consomem tanto que os limites para a extracção de mercadorias e matérias-primas estão a esgotar-se. Por exemplo, a fronteira do petróleo já chegou ao Alaska e à Amazónia. Mas há resistência em todos os lugares. São conhecidas por ser o ecologismo popular ou Movimento de Justiça Ambiental.
Conhecem-se ainda casos históricos de resistência ainda antes do aparecimento do ecologismo. Assim na mina de cobre em Ashio no Japão há cem anos, ou em Huelva contra a contaminação causada pela empresa Rio Tinto, que culminou com uma enorme carnificina pelo Regiment de Pavia no dia 4 de Fevereiro de 1888. Um dia que bem poderia ser declarado do Ecologismo Popular.

Os passivos ambientais

A economia ecológica é uma crítica da economia convencional porque esta crê que o crescimento económico se pode dar indefinidamente, esquecendo-se, nas contas das empresas e dos governos, da natureza. Na contabilidade de ambos não se incluem os passivos ambientais.
A economia ecológica critica a maneira como se constrói a ciência económica e a sua contabilidade. O que propõe é que se devem considerar os aspectos biológicos, físicos, da química, e sociais. Ou seja, se a economia cresceu 3%, tudo bem, desde que se explique o que foi contaminado, o que aconteceu aos rios, aos bosques, à saúde das crianças, e todos os aspectos sociais e ecológicos. Isto não é apenas uma ideia académica. Despoletam protestos sociais quando a economia massacra a natureza. Por vezes, os afectados são as futuras gerações que não podem protestar porque ainda não nasceram, ou então, uma baleia que muito menos pode protestar. Mas outras vezes os desastres ecológicos afectam as pessoas no presente, que não deixam de protestar. Essas são as lutas pela justiça ambiental.
Há sítios onde se plantaram milhares de hectares de pinheiros a fim de capturar o dióxido de carbono europeu, como no projecto FACE no Equador, onde algumas comunidades começam a protestar, pois não comem pinheiros, nem nesses terrenos podem semear ou criar gado. O pinheiro absorve a água e caso haja incêndios o contrato obriga à sua replantação. Há também conflitos pesqueiros porque a pesca industrial acaba com a pesca artesanal. E não faltam conflitos nos transportes como é caso, por exemplo, do gasoduto de Unocal da Birmânia à Tailândia, ou das hidrovias, com o caso conhecido do Prestige. Casos actuais são os protestos na Catalunha contra a quarta cintura urbana ou por causa do túnel de Bracons.
Há quem não perceba o carácter estrutural destes protestos, quando no Sul nascem as commodity frontiers, os novos locais de extracção e de contaminação. Alguns crêem que se trata de protesto tipo «não no meu pátio» quando, na realidade, são manifestações do movimento internacional pela justiça ambiental. Há mesmo quem pensa que o ecologismo é um luxo dos ricos, e que só nos preocupamos com a natureza quando temos tudo em casa. A ideia do ecologismo popular recorda-nos que há pessoas a protestar porque o que está em causa é a própria sobrevivência.
Surgem também redes deste tipo de protestos. Por exemplo, a rede Oilwatch, nascida em 1995, nas experiências na Nigéria e no Equador. Redes onde se pede ajuda aos países do Norte, uma vez que as empresas são do Norte. Outra rede similar é a Sul-Sul, chamada «Mines, Minerals & People». È nos protestos e nas resistências que nascem as resistências. Estas não advém da cabeça de qualquer intelectual, nem muito menos de qualquer partido política que diga qual é a linha correcta.

Valores incomensuráveis

Na ecologia há diversas correntes. Há quem se diga radical, por exemplo, nos Estados Unidos, mas que não o é no plano social. Trata-se de uma corrente que se preocupa só com a natureza e não tanto com as pessoas. Lutavam, por exemplo, contra barragens em paisagens naturais a preservar que iriam ser assim destruídas. Lutam pela natureza, não pelas pessoas.
Em contraste, no Brasil há um movimento popular que se chama «atingidos pelas barragens». Na índia há uma intensa luta contra uma famosa barragem no rio Narmada, onde as pessoas protestam em defesa do rio mas também em defesa das pessoas. Porque se se vier a ser construída cerca de 40 ou 50.000 pessoas terão que ser deslocadas. Figura destacada é Medha Patkar que não pensa só na natureza, mas nas pessoas pobres que serão atingidas. São grupos indígenas que carecem daquele território para viver, porque sem ele morrerão de fome. Há ecologistas que só pensam na natureza, mas também há ecologistas que entendem que não se pode separar a natureza da sociedade.
Em todos estes conflitos, seja por causa da extracção ou do transporte de matérias primas, seja por causa de contaminações locais e regionais, desenvolvem-se várias linguagens. Assim podem ser que os poderes públicos e as empresas queiram impor uma linguagem económica, dizendo que se fará uma análise ampliada dos custos-benefícios, com todas as externalidades expressas em dinheiro, sem deixar de se realizar uma avaliação do respectivo impacte ambiental a fim de ver se se vai construir ou não uma barragem ou uma mina. Mas pode acontecer que os afectados, ainda que entendam essa linguagem económica, e ainda que possam receber alguma compensação financeira, desenvolvam uma linguagem existente nas suas culturas. Podem declarar, como o fizeram os U’Wa na Colômbia perante a Occidental Petroleum e depois à Repsol, que a terra e o subsolo eram sagrados e que «a cultura própria não tem preço»
Num conflito ambiental estão envolvidos valores muito distintos, ecológicos, culturais, de subsistência das populações, e também valores económicos. São valores que se expressam em diferentes escalas e não são comensuráveis. Como disse Machado: «todo o néscio/ confunde valor e preço».
Quem tem o poder de impor o método de resolução dos conflitos ambientais? As consultas populares, que apelam à democracia local, serão um método válido? Quanto vale a linguagem do sagrado? Valem os valores ecológicos se forem traduzidos em dinheiros, ou valem por si mesmos, nas suas próprias unidades de biomassa e biodiversidade? São questões que resultam da participação reflexiva nos conflitos ambientais em diversos locais do mundo. Daí a pergunta final: quem tem poder de simplificar a complexidade impondo uma determinada linguagem de valor?
O livro « El Ecologismo de los pobres» é um livro de Economia Ecológica., a qual explica o conflito entre economia e meio ambiente e questiona a solução que normalmente é dada para esse conflito através da «modernização ecológica» ou do «desenvolvimento sustentável». Por sua vez, a Ecologia Política estuda os conflitos ambientais e mostra que nesses conflitos, diferentes actores usam ou podem usar diferentes linguagens de valoração. Vemos assim como existem valores incomensuráveis e como o reducionismo económico é um mero exercício de poder.


Texto de Joan Martínez Alier publicado no nº45 de Outono de 2005 da revista em castelhano «Ecologista», editada pelos Ecologistas en Acción