18.7.05

O que é o poder popular?

(texto de Miguel Serras Pereira, publicado na revista Vida Mundial de 24 de Julho de 1975)


«…a tomada de poder aparece-nos como sendo a transformação das suas formas de exercício e distribuição de sentidos, muito mais do que a simples transferência de uns para outros detentores…»
( Miguel Serras Pereira, ver texto a seguir )



Na medida em que este poder se opõe a outras formas de organização política de uma formação política, ele não pode ser definido pelo conteúdo ( intenções, etc) ou ideologia dos órgãos de poder político. Já se vê que não há, de um modo geral, poder que se diga antipopular – poder que se não diga ao serviço do povo, e que pelo bem do povo, pela posse de uma interpretação privilegiada dos verdadeiros interesses populares, se não pretenda justificar. Não se podendo, pois, de uma decisiva, distinguir o poder popular, na sua diferença, pela orientação do poder – esse é o erro ou sofisma de uma crítica oportunista como a de Bettelheim ao capitalismo de Estado russo na sua feição pós-Estaline -, teremos de o definir pela forma de exercício, pelo seu funcionamento. Assim, para retomar a questão russa como exemplo, é absurdo ( absurdo de todos os reformismos que, como é norma, não dizem o seu nome, o que permite qualificá-los como oportunismo) dizer que o poder político, sob a direcção de Estaline, seguia uma linha proletária, sendo por isso socialista, ao passo que o mesmo poder foi preenchido com uma linha política – a do Partido Comunista da União Soviética – classista após a morte do velho ditador, mediante a transformação da composição da sua direcção. Correcto será dizer que, tanto antes como depois de Estaline, mau grado todas as importantes diferenças e alterações, o poder não era proletário nem popular, pois não era exercido nem pelo proletariado propriamente dito nem pelo conjunto das massas trabalhadoras, mas antes em seu nome por um bloco social, ele próprio diferenciado e co as suas contradições internas, sintetizado pelo Partido e pela cúpula do Estado, que entre si dividia as diversas funções sociais de direcção, monopolizando o poder de coacção e os meios de violência organizada e institucional.
Para o que aqui nos interessa, portanto, o poder popular definir-se-á pelo exercício e pelo funcionamento. Este tipo de definição é o único que não só permite conceber uma alternativa revolucionária para o Estado classista e para a superação da superação entre os produtores e os meios de produção como permite estabelecer a sua existência e julgar das suas condições materiais de possibilidade. O poder popular será assim o exercício directamente pelo povo trabalhador e pelos seus aliados, constituindo um bloco revolucionário: democracia directa, formas cooperativas e autogestionárias, visando a superação do político e do económico pela sua desparticularização radical.
Antes de retomarmos e concluirmos este breve artigo de definição do poder popular, tarefa que bom seria ver objecto de uma batalha de produção ideológica, temos, por força das circunstâncias que de certo modo o provocam, de deter-nos um instante ainda, como já na anterior semana fizemos (cf. Poder Popular: consagração e equívocos), sobre o documento-guia. Da sua rápida confrontação com o tecto de Vasco Gonçalves, da não menos rapidamente obtível constatação da ausência de referências ao exercício do poder popular sobre a direcção da economia e, indirectamente, da leitura das razões que João Martins Pereira apresentou para se demitir do seu cargo governamental, de outras coisas ainda, talvez as principais, que não se vão repetir aqui e que ainda não estão clarificadas no ambiente amalgamado das horas convulsas que vivemos a nível político, podemos concluir que, tomando à letra o documento, com ele o MFA ou se engana ou nos engana. Em qualquer caso, o que queremos dizer é que a adopção de resoluções sobre o poder popular, por razões de Estado e na subordinação à força pelo menos arracional dessas razões, priva de ser o poder de que se fala ao privá-lo da sua soberania. Um poder segundo é um poder subjugado (fisicamente apenas ou física e ideologicamente também) e/ou um poder na oposição, um contrapoder contra o poder primeiro.
Se o poder popular implica a transformação da forma estatal do poder político e a sua colectivização material (dos meios de violência, das instâncias executivas e deliberativas), então vemos que a permanência do velho aparelho de Estado e por maioria de razão o reforço que dele se pretende, a sua estabilização, como é a ideia-chave do texto de Vasco Gonçalves, não só significa e permite aferir o atraso do poder popular como contra o desenvolvimento das suas condições de conquista da soberania trabalha e age. Com efeito, para além de ser um poder constituído ou herdado (como é o caso) em virtude de uma expropriação generalizada ( é o poder que as massas não têm), o Estado é um poderoso agente de segregação de camadas privilegiadas que às antigas se substituem, um poderoso agente de cristalização de novos blocos dominantes, um poderoso agente da reconversão da crise agudizada da sociedade de classes. Deste poder de Estado tem o poder popular, enquanto não lograr a sua transformação total. que se ir emancipando desde o começo e radicalmente.
É certo que outras ideias-chave, que não a de Vasco Gonçalves, permitirão uma leitura (que é sempre de natureza produtiva) com consequências diversas do documento-guia. A discussão de que ele tem sido objecto demonstra bem até que ponto a sua interpretação é uma dimensão de afrontamento e luta política. Mas o texto, com a letra que é a casa do seu espírito, existe, e a menos que ela seja falsificada, levanta, para além de todas as interpretações, problemas que estas têm servido para silenciar e para obscurecer o apuramento do seu conteúdo político.

Democracia Directa e Autogestão

NO debate político entre partido, entre reformistas e revolucionários, gradualistas e golpistas, com ou sem princípios, tudo isto dependendo do ponto de onde são observados - nesse debate temos um recalcado comum, um impensado cuja existência se denega: o problema da autogestão ou da gestão colectiva e igualitária da actividade directamente produtiva ou geralmente laboral.
Deixando de parte os partidos que, de um ponto de vista direitista, como o PS, se opuseram ao documento-guia, temos que quase todos os outros se reclamam, por virtude de interpretações diversas do documento, considerado como um forte avanço para a democracia directa ,para o tal poder popular. E, todavia, não se compreende bem, não se compreende mesmo nem bem nem mal o que possa ser tal democracia directa, tal poder popular, sem a transformação das relações de poder nos locais de trabalho, trabalho forçado, locais que são núcleos hierarquizantes, dominantes e sistematizadores das relações sociais de produção. Com efeito, se o âmbito da produção, no sentido um pouco restrito de actividade económica em sentido amplo, for excluído, furtado pelo poder a esta democracia directa, a este poder conselhista de que fala e contra os discursos do parlamentarismo se justifica como eminentemente democrático – não teremos democracia directa nem democracia nenhuma. Se, porém, democracia directa tivermos, então não se vê que objectivos de contestação e governo autónomo mais prioritários aos trabalhadores se podem pôr do que aquelas condições de existência que como tais os definem, pela exploração do salariato, e que não podem deixar de ser transformados na primeira linha de uma batalha anticlassista da produção.
A luta contra a hierarquia salarial e disciplinar nas empresas, a rotatividade dos cargos directivos particulares que transitoriamente subsistirem, o ataque rápido contra a divisão do trabalho e a unicidade das funções individuais, pela redução dos técnicos enquanto tais a um papel consultivo, a extinção da diferenciação entre dirigentes, concebedores e executantes, tudo isto parece uma luta a travar, desde já, com palavras de ordem como:
Por um salário único nacional (ou regional); Pela igualdade absoluta das condições de assistência; Por uma produção de riqueza e não de lucro; pela dissolução do exército e pelas milícias populares; pela soberania dos conselhos populares locais e de trabalhadores de empresa, etc.

Contra Representação

Um propósito de democracia directa é o do fim da representação e do princípio da delegação permanente, fundamentos do poder político classista moderno, com alienação definitiva da autoridade das massas populares. Mas nem por um momento a representação parlamentar da democracia ou vanguardista do socialismo (desta os exemplos clássicos são as concepções dos PCs, da esquerda maoísta, e um exemplo recente, português, de via original, é o aludido texto de Vasco Gonçalves), se esses modos de significar a apreender a realidade social fossem exclusivos de uma classe dominante e dois ou três grupos minoritários obtidos por recrutamento policial ou clerical menor, mantendo-se a classe operária e o conjunto dos assalariados puros e alheios a tais representações. Daí o podermos falar, sacrificando ao sempre pouco ocultador jargão oficial, de revolução cultural.
Se a crise da «humanidade», como se dizia, não é, ao contrário do que pensava Trotsky e os estalinistas que o perseguiam, a crise da sua direcção revolucionária, mas se, pelo contrário, a questão da revolução reside na passagem de uma qualquer direcção particular à colectivização da direcção e à sua dessubjectivação, também, por conseguinte, então a tomada de poder aparece-nos como sendo a transformação das suas formas de exercício e distribuição de sentidos, muito mais do que a simples transferência de uns para outros detentores, ideologicamente representada esta transferência como alteração dos conteúdos ou do reino dos fins visado.

O Bloco Histórico e o Poder Popular

Parece ser útil abordar aqui a questão, sempre magna, da aliança de classes para a constituição daquilo a que Gramsci chamava «bloco histórico» e que podemos chamar, por mor de clareza, bloco revolucionário. A necessidade de constituição deste bloco surge como justificação para todos os oportunismos, reformismos, tendo-se revelado escolho insuperável dos partidos ditos revolucionários de tipo vanguardista. Estes partidos pensam, com efeito, que este bloco se construirá, deve ser construído, em torno de um enunciação de objectivos políticos conciliados, capazes de mobilizar em torno dos assalariados da indústria as demais camadas exploradas e oprimidas de uma população nacional.
Na perspectiva do poder popular, pelo contrário, a tónica será posta de outra maneira. O bloco revolucionário constitui-se no próprio exercício das assembleias e outros órgãos locais em que a solidariedade de interesses, a comunidade de poder (deliberação e execução) é um facto e em que a concertação é directamente possível e não objecto de uma interpretação expropriadora do poder central. O modo, citado recentemente na TV, pelo qual as comissões de moradores do Porto resolveram o caso da expropriação dos terrenos e casas de habitação com perfeita salvaguarda dos rendimentos dos senhorios pobres é exemplar e dispensa grandes desenvolvimentos especulativos e conceptuais. A própria integração, desde a base, dos elementos não operários ou mesmo não assalariados nas comissões de moradores, nas cooperativas locais, nos órgãos, em suma, do poder popular, é a sua integração no bloco revolucionário, determinando, melhor do que o fará qualquer programa, a correcta dinâmica que u processo revolucionário deve seguir para encontrar a sua via e se desenvolver. A prevalência, directa e de facto, que não delegada ou presumida pela existência de um partido (único, já se sabe) da classe operária e por cima dela depositário da sua verdade, dos assalariados na direcção e dinamização do processo será garantida pela existência paralela das comissões de trabalhadores de empresa e pela gestão colectiva da economia.

Um Pluralismo radical

O radical pluralismo do poder popular ressalta com evidência necessária e cremos que suficiente das definições anteriores. Também aqui este pluralismo se distingue pelo seu carácter real e resultante das próprias formas do poder popular, que superam largamente aquele pluralismo representado elos partidos de ordem distante e que mais não fazem, do que impor ao conjunto dos cidadãos uma escolha que é sempre a da mesma relação relativamente a um poder que não detêm. Os órgãos de poder popular são, num sentido, apartidários. Noutro, serão mesmo antipartidários na medida em que são órgãos supremos do poder e na medida em que os partidos a que estamos habituados é como órgãos supremos de um poder diferente e antagónica natureza que se definem. Não quer, porém, isto dizer que, noutro sentido outros partidos, outra qualidade de partidos não possa ressurgir no interior do poder popular: correntes de opinião organizadas, grupos de animação e proposta, alternativas para as questões que se deparam para deliberação e resposta das comissões e conselhos. Alguns destes grupos serão mesmo mais avançados do que outros e poderão ser ditos de vanguarda. A diferença essencial está em que o poder lhes não pertence e em que eles não representam de modo privilegiado qualquer classe ou bloco revolucionário, menos ainda são o seu estado-maior ou órgãos de um poder exercido em seu nome mediante a liquidação do poder real daqueles cujo nome é evocado e representado. O poder colectivo e os colectivos são o poder. Outro não há que seja popular.

Miguel Serras Pereira, texto publicado na revista Vida Mundial nº 1871, de 24/7/1975