19.6.05

A revolução de 1383-85 (texto de Vasco Gonçalves)


(Em memória de Vasco Gonçalves, elemento activo do Movimento das Forças Armadas que derrubou o Regime fascista em 25 de Abril de 1974, e que foi primeiro-ministro dos 2º, 3º,4º e 5º governos provisórios, que tomaram importantes medidas de carácter social e económico a favor das classes populares, decidimos reproduzir um texto da sua autoria, retirado de http://resistir.info/ , e cujo original tinha sido publicado no jornal O Diário de 11/dez/1983)


A revolução de 1383-85
( texto de Vasco Gonçalves)

A guerra entre Portugal e Castela nos fins do Séc. XIV não é apenas uma guerra entre dois Estados, ou mais uma guerra entre dois Estados.
Da parte dos portugueses é uma guerra nacional e popular, uma guerra que mergulha as suas raízes nas lutas sociais, nas lutas de classes que se vinham desenvolvendo e intensificando ao longo do Séc. XIV.
Estava-se processando o declínio do sistema feudal causado, fundamentalmente, pela liquidação da servidão da gleba nos Séculos XIII e XIV e pelo surgimento da pequena produção baseada no trabalho do proprietário dos meios de produção e da produção baseada no trabalho assalariado.
A expansão dos concelhos está ligada ao desenvolvimento desta produção: é sua consequência e é seu estímulo, na medida, por exemplo, em que favorecia a libertação dos servos da gleba.
Os servos da gleba dão lugar aos pequenos produtores formando-se, depois, por um lado, uma classe de camponeses ricos, a burguesia rural, e, por outro, uma classe de camponeses sem terra que fornecem trabalho assalariado.
Com a produção mercantil simples, com a pequena produção baseada no trabalho assalariado aumenta a produção em geral, desenvolvendo-se o comércio interior. Surge uma classe de comerciantes que cresce em número e em poder económico.
Por outro lado, o desenvolvimento do comércio externo (que já existia quando da formação de Portugal) conduz ao aparecimento de uma classe de ricos mercadores.
Sendo o comércio externo quase todo feito por mar desenvolve-se a Marinha Mercante e, a construção naval. Nos centros urbanos do litoral forma-se uma burguesia rica, que se organiza na defesa dos seus interesses, e que vão influenciando cada vez mais a política portuguesa. Os portos, em particular Lisboa e Porto, tornam-se centros de poder da burguesia comercial-marítima.
Paralelamente a este progresso, na produção e na troca de produtos, desenvolve-se a produção artesanal, cresce a classe dos mesteirais, cujo papel na Revolução de 1383-85 virá, em certos momentos, a ser decisivo. Com o desenvolvimento da produção mercantil e do comércio os burgueses concentram na sua mão grande riqueza. Com o seu crescente poder económico a burguesia ligada ao comércio marítimo torna-se o principal inimigo da classe senhorial e vem a estar em condições de, em unidade com as outras classes não senhoriais, disputar o poder político à nobreza latifundiária.
O surgimento das novas classes e camadas sociais, o crescente poder económico da burguesia, cujos interesses se opõem aos da classe senhorial, exercem pressão sobre o poder real e obrigam a que os privilégios da nobreza e do clero vão sendo reduzidos ao longo dos Séculos XIII e XIV.
Contudo, a natureza do Estado não muda com as conquistas que a burguesia vai alcançando. A nobreza latifundiária e militar, de que o rei é o primeiro senhor, continua a ser a classe dominante, continua a dispor da direcção política do Estado.
D. Fernando é obrigado a promulgar leis de protecção ao comércio e à navegação, é obrigado a promulgar, nomeadamente, a Lei das Sesmarias, o que tem o significado de grandes conquistas da burguesia urbana e rural.
Amadurecem as condições para a disputa do poder político à nobreza por parte da burguesia. Apercebendo-se do perigo que corria e sentindo que não possuía forcas para, por si só, dominar a contestação aos seus privilégios e ao seu poder, a nobreza portuguesa vinha procurando o apoio da nobreza castelhana à qual se unia (sem atender aos riscos que essa união implicaria para a independência nacional) com. o fim de salvaguardar e manter os seus privilégios, de reforçar o seu poder e de contrabater a burguesia ascendente. Foi com este objectivo que se celebrou em 1383 o casamento da infanta D. Beatriz, filha única de D. Fernando e de D. Leonor Teles, com o rei de Castela.
Antes, em 1376 e 1380, o casamento da infanta com príncipes castelhanos estivera para ser realizado, prevendo-se já então a sucessão de um rei castelhano no trono de Portugal.
O próprio casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles fora preparado pela nobreza portuguesa em aliança com a de Castela com vista a influenciar mais directamente as decisões do rei no sentido favorável aos interesses da nobreza portuguesa. E de tal modo assim foi que os burgueses e artesãos se revoltaram em vários pontos do País.
O alfaiate Fernão Vasques e os seus companheiros, à frente de três mil mesteirais, besteiros e homens de pé, em 1371, corajosamente, afirmaram o seu protesto ao rei pelo seu casamento com D. Leonor Teles; eles haviam compreendido o significado político desse matrimónio preparado pela nobreza portuguesa em conivência com a de Castela.
Essa revolta dos mesteirais, exprimindo a oposição de interesses entre as classes populares e a nobreza feudal representou uma tal ameaça ao poder feudal que o rei mandou degolar Fernão Vasques e muitos dos seus companheiros.
A propósito do casamento de D. Fernando, Fernão Lopes diz que os populares se juntavam criticando acerbamente os privados do rei e os grandes da terra que lho consentiam.
Nos últimos meses da vida de D. Fernando acentuou-se junto do rei a influência da nobreza mais reaccionária o que fez crescer a tensão social e contribuiu para criar as condições para a insurreição de Lisboa, poucos dias depois da morte do rei.
A morte do rei precipitou os acontecimentos ao colocar o problema da sucessão.
A causa imediata da revolução burguesa é a tentativa por parte da nobreza de entregar o Governo de Portugal à monarquia castelhana. A revolução toma desde logo um carácter nacional, social e popular. A insurreição de Lisboa é secundada por revoltas populares por todo o País (sobretudo a Sul do Tejo) da burguesia rural, dos camponeses, dos assalariados rurais, dos «ventres ao sol».
A luta pela independência nacional funde-se com a luta contra os privilégios da nobreza e pelo poder político, pois a classe dominante à qual era disputado este poder político era a mesma que, para conservar as suas posições, havia provocado a intervenção da nobreza de Castela contra os interesses populares e estava disposta a entregar o Governo de Portugal à monarquia castelhana.
A revolução burguesa identifica-se, assim, com a luta pela independência nacional.
A revolução tem um nítido carácter de classe. Dois campos se afrontam: o da nobreza territorial latifundiária e o das classes não senhoriais: a burguesia urbana e rural, os mesteirais, os pequenos proprietários camponeses, os camponeses sem terra, nesse momento unidos contra o mesmo inimigo, a nobreza portuguesa e castelhana, ultrapassando assim as próprias e naturais contradições de interesses que havia entre essas classes sociais não senhoriais. Foram estas forças que se defrontaram em Aljubarrota.
O facto de, do lado português, sempre ter havido nobres ao lado das classes populares não altera o carácter do afrontamento de classes.
Em todas as revoluções houve sempre elementos da classe dominante que tomaram o partido das classes em ascensão, progressistas, que se opõem ao poder dessas mesmas classes dominantes.
Era restrito o número de nobres que estava com Portugal. E pertenciam aos estratos inferiores da nobreza. Eram dos menos abastados.
Não podemos, pois, afirmar que do lado português, em Aljubarrota, se encontravam todas as classes sociais defendendo a independência nacional.
O facto de, depois da Revolução de 1383-85, a nova nobreza ter ficado na posse de vastos domínios, domínios cuja extensão total era tão grande como a que antes de 1383 possuía a antiga nobreza latifundiária, não invalida a afirmação de que em Aljubarrota a nobreza, como classe, não estava do lado de Portugal.
Estava, sim, um reduzido número de nobres que eram chefes militares das tropas populares. Os comandos militares, os quadros superiores eram, regra geral, nobres que, como se sabe, naquele tempo, eram militares profissionais.
O que aconteceu foi que esses poucos nobres, em consequência dos êxitos na guerra e em virtude da posição que ocupavam no exército, ascenderam à grande propriedade territorial, no lugar daqueles que se puseram ao lado de Castela.
Com efeito, foi com esses nobres leais a Portugal que, dadas as condições objectivas e subjectivas da época, foi reconstituída a grande parte dos domínios senhoriais. O caso mais típico é o de Nuno Alvares Pereira que ascendeu ao primeiro plano da classe senhorial e de tal modo que os seus domínios atingiram uma extensão igual à dos domínios que anteriormente possuíam muitos dos grandes nobres tomados em conjunto.
É Fernão Lopes que nos diz que em resultado da grande crise surgiu uma «sétima idade em que se levantou um mundo novo e nova geração de gentes, aparecendo fidalgos de origem plebeia e erguendo--se pequenos aristocratas à primeira linha da nobreza». Repare-se que, para Fernão Lopes, o aparecimento de um mundo novo não estava ligado, como para nós, hoje, a uma profunda transformação nas relações de produção e distribuição entre as diferentes classes sociais.
As condições objectivas da vida da sociedade portuguesa em fins do séc. XIV não eram de molde a poder colocar à consciência da burguesia e das classes populares a necessidade de uma modificação radical das estruturas socioeconómicas, que liquidasse o poder da classe senhorial. Só séculos mais tarde essa questão será posta pelas burguesias dos diferentes países e com grandes intervalos de tempo entre si.
Com efeito, podemos verificar que nos finais do séc. XIV a Revolução de 1383-85 respeita as estruturas da sociedade feudal. Em 1383-85, do ponto de vista socioeconómico, o objectivo fundamental comum à burguesia e às classes populares era o de limitar os privilégios senhoriais, devendo, contudo, ter-se presente que eram diferentes entre si os objectivos concretos da burguesia e das demais classes populares.
Em Aljubarrota, na realidade, encontravam-se muito poucos fidalgos do lado de Portugal. A principal nobreza portuguesa estava do fado castelhano, quer ali, em Aljubarrota, nas hostes de Castela, quer na chefia de povoações e castelos que se mantinham como ilhas ao serviço do inimigo, quer mesmo em Castela.
Aliás, quando da primeira invasão castelhana, em princípios de 1384, o rei de Castela entrou praticamente sozinho em Portugal, antes do seu exército. Tal era o apoio que o rei de Castela tinha entre a nobreza portuguesa que o rei chegou à Guarda com a esposa e um pequeno séquito de umas trinta pessoas, sendo recebido processionalmente pelo bispo e clero e acorrendo depois numerosos fidalgos ao paço episcopal onde se hospedou.
Em Aljubarrota, além de D. João I, Nuno Álvares e de mais uma dezena de grandes senhores haveria cerca de uma centena de nobres de modesta hierarquia.
Ora, o número de membros da nobreza portuguesa é estimado, nos fins do séc. XIV, em 4000 a 5000 pessoas, não incluindo os membros da família real que seriam algumas centenas (Armando Castro, «História Económica de Portugal», II vol.).
A nobreza que combatia contra os Portugueses em Aljubarrota tinha bem a noção do carácter de classe da guerra que fazia. Fernão Lopes dá-nos vários testemunhos:
— Por meados de 1384 quando o nobre Gonçalo Mendes de Vasconcelos, senhor do castelo de Coimbra, entreviu por uma seteira do seu castelo, o exército de Nuno Álvares, que partia para Tomar, comentou para os seus privados o género de combatentes que compunham essa hoste, espantado que tais homens pudessem defender o reino contra um grande senhor como o rei de Castela, «salvo se Deus fosse seu capitão».
— Quando o rei de Castela reuniu o conselho para decidir se devia dar batalha ou não, poucas horas antes do início desta, houve entre os seus conselheiros quem fosse de opinião que não se desse batalha pois se o rei de Castela fosse vencido teria sido derrotado «por um pouco número de pobre gente».
— A covilheira do rei de Castela defumava os fidalgos com algumas defumaduras «para perderdes os maus cheiros destes chamorros, das casas onde vivem e aldeias onde moram».
— Após a derrota de Aljubarrota, o rei de Castela, em fuga, ao chegar a Santarém lamenta-se de ter sido derrotado pelos «chamorros». «E se vós dizeis que outro tal e tanto aconteceu a meu pai verdade é que assim foi. Mas (...) de que gentes foi meu padre vencido? Foi-o de ingleses que são o frol da cavalaria do mundo, em tanto que, vencido por eles, não deixava de ficar honrado (...) E de que gentes fui eu vencido? Fui-o de chamorros que ainda que me Deus tanta mercê fizesse que a todos tivesse atados em cordas e os degolasse por minha mão, minha desonra não seria vingada».

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Como dissemos atrás, a Revolução de 1383-85 tomou, desde a sua eclosão, um carácter nacional, de luta peta independência, posta em perigo pela aliança da nobreza portuguesa com a de Castela. D. Leonor Teles manda alçar pendão por D. Beatriz, rainha de Portugal e de Castela. A rainha viúva pede a intervenção de Castela, a cujo rei entrega, em Santarém, a regência do reino, em Janeiro de 1384, com o apoio da alta nobreza portuguesa.
Tem havido quem procure justificar o comportamento antipatriótico da aristocracia portuguesa afirmando que nessa época o sentimento nacional e patriótico seria inexistente.
Mas a verdade é que esse sentimento já existia nessa época em Portugal e já existia de longa data. Não se terá esse sentimento de independência começado a definir partir da auto-proclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal?
O que se verificou é que não era essa nobreza feudal, como classe, a portador desse sentimento patriótico.
A história mostra que não pode formar-se uma nação como uma comunidade de indivíduos que vivem no mesmo território e que, para além de relações económicas estáveis, estão ligados por uma língua comum e pelas particularidades da mentalidade, da cultura, do modo de vida, fixadas nos seus usos, costumes e tradições, sem que, na sua raiz, estejam classes produtivas directas e as demais classes populares.
Os interesses destas classes, nos graves momentos de crise nacional, identificam-se com os interesses da Pátria.
O mesmo não acontece quanto as classes privilegiadas: em determinadas condições históricas, para defenderem os seus interesses e as suas posições frente à acção revolucionária das massas populares, elas sacrificam o sentimento patriótico, são capazes de comprometer a independência do seu país em troca do auxílio estrangeiro, para se manterem no poder.
Na tão grave situação de 1383-85, o sentimento
A própria solidariedade activa entre a grande maioria da população atesta que já havia nessa época um arreigado sentimento pátrio. São muitas as referências de Fernão Lopes a esse sentimento pátrio: «o povo meúdo» quando a aristocracia, após a morte de D. Fernando, erguia o pendão por D. Beatriz, mulher do rei de Castela, respondia com «Arraial, arraial, por Portugal». Alguns exemplos:
· Os representantes do concelho de Alenquer dirigem-se ao Mestre de Avis afirmando o seu patriotismo, «somos portugueses e todos naturais destes reinos».
· Quando o Mestre de Avis se despede, em Coina, de Nuno Álvares Pereira, que marcha para o Alentejo como fronteiro dá-lhe o apoio de algumas dezenas de escudeiros, dizendo-lhe serem «verdadeiros portugueses».
· Os homens bons de Cerveira, Caminha e Monção enviam mensagens a Nuno Alvares Pereira: declaram-se «verdadeiros portugueses» e entregam-lhe voluntariamente essas povoações.
· Os partidários do Mestre de Avis contra a candidatura ao trono de Portugal do infante D. João, filho de D. Pedro e D. Inês de Castro, argumentavam que o infante D. João fizera guerra contra Portugal ao lado de Castela.
· Domingues Peres das Eiras afirma a determinação dos moradores do Porto em defenderem a sua terra «para nunca sermos em poder dos castelhanos».
· A designação que o «povo meúdo» dava aos aristocratas portugueses que combatiam ao lado de Castela era a de «traidores».
· Na descrição da batalha de Aljubarrota, Fernão Lopes refere-se aos «maus portugueses que vinham na vanguarda dos castelhanos».
A acusação de traidores e maus portugueses não foi criada por Fernão Lopes: encontra-se em dezenas de documentos da época em que esses epítetos são dados sistematicamente aos aristocratas que se colocaram ao lado de Castela.
«Para o comprovar basta percorrer, por exemplo, o tomo 2º dos Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa». (A. Castro, EEP séc. XII a XV, vol. 11.-, pág. 300.)
A consciência, entre portugueses, de que pertenciam a uma nação autónoma é já assinalada nos dizeres inscritos na parede ao lado da epístola que pertencia à capela instituída na Sé de Lisboa por Bartolomeu Joanes que viveu nos tempos de D. Afonso III e D. Diniz. Instituiu cinquenta libras para cada capelão («que em esta capela sempre cantem dezasseis capelões por dia») e ainda dois soldos cada sábado por ofícios religiosos nesses dias acrescentando que «os capelões hão-de ser portugueses bons e legítimos se os acharem, senão tomem outros» (ver Júlio de Castilho, Lisboa Antiga, 1885, vol. III págs. 329-331, citado por A. Castro, em EEP séc. XII a XV, vol. 11º, pág. 425).

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Pelo seu carácter nacional e social a guerra de Portugal contra Castela foi uma guerra justa. Ela foi uma guerra conduzida pelo povo em defesa da liberdade e do progresso social (a opressão e exploração senhoriais entravavam o desenvolvimento económico e social), em defesa da independência nacional contra o domínio estrangeiro. Este era o conteúdo político da guerra. Ele resultava do carácter de classe da guerra, das razões pelas quais eclodiu, das classes que a faziam e das condições históricas e histórico-económicas que a provocaram.
O conteúdo político da guerra determina o seu papel histórico na vida da sociedade. O papel histórico da guerra contra Castela e contra a nobreza feudal de Portugal foi progressista.
A vitória da burguesia permitiu:
— o fortalecimento do poder político do país;
— o fortalecimento do poder político e económico da burguesia que conduzirá ao desenvolvimento da navegação e do comércio marítimo e à gesta dos Descobrimentos.
A natureza de classe da guerra exprime-se também na sua característica moral.
São os fins almejados pêlos beligerantes, fins progressistas ou reaccionários, fins de libertação ou de conquista que distinguem as guerras justas das guerras injustas.
O poderoso conteúdo moral das guerras justas exerce uma influência decisiva na consciência, no ardor combativo, na coragem, na valentia, no espírito de sacrifício, na solidariedade e na unidade dos combatentes. E, deste modo, o carácter justo da guerra exerce uma influência determinante na correlação de forças entre os beligerantes.
Em Fernão Lopes podemos verificar como, para as classes não senhoriais (e para o reduzido número de nobres que junto com eles combatem e de que Nuno Alvares é o maior exemplo) a guerra era profundamente justa e, portanto, sentida como sua.
Veja-se, por exemplo, a narrativa dos assaltos populares aos castelos de Portalegre e de Estremoz ou dos levantamentos de Lisboa, de Beja, de Évora, do Porto: «Desta guisa que haveis ouvido, se levantaram os povos em outros lugares, sendo grande cisma e divisão entre os grandes e os pequenos». «O qual ajuntamento dos pequenos povos, que então assim se juntaram, chamavam naquele tempo, arraia miúda. Os grandes, à primeira, escarnecendo dos pequenos, chamavam-lhe povo do Messias e Lisboa, que cuidavam que os havia de remir da sujeição de el-rei de Castela.»
«Era maravilha de ver que tanto esforço dava neles (na arraia miúda) e tanta cobardice nos outros, que os castelos que os antigos reis por longos tempos jazendo sobre eles com força de armas não podiam tomar, os povos miúdos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, antes de meio-dia os filhavam por sua força.»
A população rural da região de Alcobaça matou mais castelhanos, em fuga após a batalha de Aljubarrota, do que aqueles que perderam a vida na batalha:
«um rústico aldeão prendia e matava sete castelhanos e oito e dez e não tinham poder de lhe contradizer, tanto homens de pequena condição como pessoas de boa conta» quer fossem castelhanos, quer fossem portugueses que com eles vinham na hoste de Castela.
Foram os camponeses, os mesteirais, os elementos das classes produtivas que sofreram o maior peso da guerra. Quer sozinhos, quer sob o comando dos poucos nobres que aderiram à causa nacional ou dos cavaleiros-burgueses, quer ainda com o auxílio de pequenas forças militares eles assaltaram castelos, levantaram povoações e sofreram a pilhagem e a violência do exército de Castela, por onde quer que este se deslocasse.
As vitórias dos portugueses em território nacional foram sempre alcançadas em grande inferioridade quanto a efectivos, armamento e equipamento. Nas vésperas da batalha de Aljubarrota, Nuno Álvares procura que as suas tropas não tenham conhecimento da enorme superioridade do inimigo.
A arrogante nobreza castelhana chama aos portugueses «desesperados que não receiam a morte», «um pouco número de pobre gente».

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As vitórias dos portugueses não podem ser explicadas, simplesmente, pela arte militar.
A própria táctica inovadora estava intimamente relacionada com a composição social e o número de efectivos de que dispunha Nuno Álvares. Só homens altamente moralizados, sentindo de todo o seu ser a justeza e a razão moral da guerra em que estavam empenhados poderiam obter tais vitórias, sendo tão poucos.
O carácter de luta popular e nacional é numerosas vezes assinalado em Fernão Lopes:
· A burguesia rural, os camponeses engrossam espontaneamente as hostes de Nuno Álvares Pereira e de D. João I durante os deslocamentos destas em território nacional.
· Quando em Fevereiro de 1385 o Mestre de Avis levanta o cerco de Torres Vedras para seguir para as Cortes de Coimbra acorre muito povo da região implorando que o deixasse partir juntamente a fim de não ficar à mercê dos malfeitores dos inimigos. O Mestre acede, saindo com os pobres moradores da região, suas mulheres e filhos.
· Em Outubro de 1384, Nuno Álvares Pereira com o apoio da população local toma o castelo de Portel.
· Em Coimbra, o Mestre é acolhido por grande recepção popular, muitos «cachopos» «sem que ninguém os mandasse» aclamaram o Mestre como rei.
· Os concelhos representados em Coimbra decidem fazer um pedido de 400 mil libras para pagamento dos soldos dos combatentes.
· Em Abril de 1385 Nuno Alvares Pereira antes de partir para o Porto dirige-se aos seus soldados recomendando-lhes que na sua marcha não deviam ferir, matar ou roubar os lavradores, pois eles não eram senhores das vilas e dos castelos ao serviço do inimigo e que se mais não faziam pela causa de Portugal era porque não podiam.
· A batalha de Trancoso, em Junho de 1385, é ganha por uma pequena hoste portuguesa, com poucos de «criação», ou seja, fidalgos, mas «com muitos dos concelhos da região e lavradores da comarca».
· Em Agosto de 1385 as hostes de Castela, tendo invadido Portugal pela Beira Alta, praticam ao longo do seu itinerário as maiores violências e pilhagens, mutilam, decepam, matam lavradores e camponeses, e incendeiam igrejas (o rei de Castela era pelo Papa de Avinhão enquanto o rei de Portugal era pelo de Roma).

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Mas há ainda um outro aspecto a salientar acerca do conteúdo político da guerra, do seu carácter justo e popular.
A guerra de Portugal contra Castela foi, até à vitória de Aljubarrota, uma guerra defensiva, para os portugueses, não obstante as operações ofensivas empreendidas pelas nossas tropas. Até esse momento a guerra foi travada no território português. Era uma guerra nacional e popular. Mas a partir do ano de 1385 a influência crescente dos dirigentes militares das forças portuguesas que eram aristocratas (havia também chefes militares burgueses), possuidores de uma consciência social moldada nos quadros da ideologia medieval, cavaleiresca, leva a que a continuação da guerra seja feita, em grande parte, nos antigos moldes, próprios dessa nobreza: incursões em terras de Castela, assédios a castelos inimigos, desafios entre cavaleiros, tomadas de despojos, aliança com o duque de Lencastre, de Inglaterra, para apoiar as pretensões deste ao trono de Castela, etc. A guerra perde o seu carácter social e de defesa da independência nacional. Deixa de ser uma guerra justa e popular. Os nossos combatentes, fora da sua Pátria, não sentiam a guerra como sua.
Por outro lado, agora para o povo de Castela, a guerra passava a ser justa. Foi o que se verificou, por exemplo, quando do cerco de Cória, em Castela, em 1386: ao fim de três semanas de inútil cerco, D. João I e Nuno Álvares Pereira retiram para Portugal à frente do maior exército de que até aí dispuseram, 22 mil homens entre cavaleiros, besteiros e peões, todos bem armados e equipados, graças aos despojos colhidos nas campanhas anteriores.

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Procurámos atrás apontar, embora de um modo sumário e simplificado, (o que não quer dizer falta de rigor histórico), as linhas de fundo, as principais condicionantes e determinantes políticas, socioeconómicas e morais, sem cujo conhecimento não é possível compreender o que se passou em Aljubarrota nem a vitória dos portugueses.
Vamos a seguir referir-nos, também de um modo sumário e simplificado, aos principais aspectos militares da batalha de Aljubarrota, sem perder de vista as suas relações com os elementos políticos, socioeconómicos e morais que condicionam e determinam a guerra.

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A composição do exército português e a táctica adoptada estão directamente relacionados com o carácter social da luta que se travou em 1383-85.
O exército era formado, quase todo, por elementos das classes não privilegiadas. O grosso das lanças de Portugal era formado por cavaleiros-vilãos (proprietários rurais e urbanos de maior abastança). Alguns deles foram grandes chefes militares como Gil Fernandes de Elvas e Antão Vasques (herói de Aljubarrota).
Em pequeno número eram os nobres que estavam com Portugal. Além de D. João I, Nuno Álvares e uma dezena de grandes senhores, seriam uma centena em Aljubarrota. Eles eram os chefes militares do exército português, juntamente com cavaleiros burgueses.
A cavalaria era mal armada. O seu equipamento era ligeiro, o que se explica pelos extractos sociais de que era constituída.
Os besteiros (do conto) foram criados como milícia municipal no reinado de D. Diniz. Combatiam com a besta que disparava virotões a cerca de 70 m, que podiam trespassar as cotas de malha dos cavaleiros inimigos. Eram «do conto» por serem em número certo recenseado em cada concelho.
Do ponto de vista social os besteiros eram formados por pequenos lavradores e sobretudo por mesteirais, homens de ofício, cada vez mais numerosos pelo progresso que tinha a produção artesanal. Tinham de possuir alguns bens para a aquisição e a manutenção da besta. Alguns, poucos, possuíam até cavalo, no qual se deslocavam durante as marchas (os besteiros do rei, por exemplo). A criação dos besteiros no reinado de D. Diniz atesta a crescente importância dos artesãos.
Os mesteirais, na Revolução de 1383-85 tiveram papel decisivo, em momentos críticos, em que salvaram a Revolução. Foi, por exemplo, no dia 16 de Dezembro de 1383 na assembleia do Mosteiro de São Domingos em Lisboa, em que obrigaram o Mestre de Avis a tomar o cargo de Regedor e Defensor do Reino. É Afonso Eanes Penedo que, no dia seguinte, impõe decisões revolucionárias aos burgueses ricos, que estavam hesitantes, dizendo: «Quereis ou não outorgar o que vos dizem? Se dizeis que não, eu vos digo que em tudo isto não aventuro mais que esta garganta e quem não for conosco, pagá-lo-á com a sua antes que daqui parta». Este facto faz-nos compreender a importância que tinham os besteiros-mesteirais na hoste portuguesa.
Os peões eram pequenos camponeses, artífices de menores recursos económicos que os besteiros, pequenos comerciantes, trabalhadores assalariados. O seu armamento e equipamento variava consoante os bens que possuíam: lança, cutelo, adaga, machado curto, espaldeira, gorgeira, escudo. Mas, muitas vezes, era armamento de ocasião: chuços, machado, etc. Era raro possuírem armamento completo, dispunham apenas de peças isoladas. Em Aljubarrota, por exemplo, os peões estavam fracamente armados» muitos deles descalços:
«pobremente e mal armados, porque o que tinha cota não tinha coudel e o que tinha panceira não tinha bracelotes, e muitos deles bacinetes sem caras, assim que todas as suas armas, sendo repartidas como cumpria, não armariam o terço da gente, em tanto que dizem aqueles que os viram que não pareciam os nossos acerca deles senão um pouco de escáneo de ver».
O que caracteriza a composição do exército português não é o facto de os chefes militares serem nobres (cujo sentimento patriótico os levara a ficar do lado de Portugal). É a sua composição de classe não privilegiada, popular.
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A táctica que caracterizou a actuação do exército português na Revolução de 1383-85, foi a de «pé terra» ou «pé em terra».
Na táctica de «pé terra» empregada pela primeira vez na batalha dos Atoleiros, em 6 de Abril de 1384, os combatentes apeados ofereciam à cavalaria inimiga os ferros das lanças bem fincados na «terra». As lanças suportavam o embate da cavalaria inimiga. Os cavalos espetavam-se nelas e eram derrubados com os cavaleiros que, de pesadas armaduras, não têm mobilidade frente aos combatentes inimigos apeados e, em consequência, são por estes desbaratados, esmagados, aniquilados.
A disposição dos combatentes era em quadrado: o dispositivo táctico pretendia anular todo o ímpeto da cavalaria inimiga.
Os lados do quadrado eram guarnecidos à frente pela vanguarda, atrás pela retaguarda e carriagem ou curral, e aos lados pelas alas.
Nuno Alvares mandava apear a maior parte da sua cavalaria. Esta guarnecia a vanguarda, as alas e a retaguarda. A cavalaria portuguesa combatia como a peonagem. Pelas alas e pela retaguarda eram distribuídos os besteiros e os archeiros que, umas vezes à frente, outras vezes por detrás dos homens de armas, (cavaleiros apeados) lançavam os seus virotões e frechas.
Os peões eram distribuídos pelos quatro lados do quadrado.
A vanguarda, se a frente era rompida pela potência do choque da cavalaria pesada inimiga, procurava recompor-se, rapidamente, fechando-se sobre as tropas inimigas que tivessem penetrado no quadrado, a fim de separar estas do resto da vanguarda inimiga.
Então as alas e a retaguarda caíam sobre o inimigo que estava dentro do quadrado.
Para melhor utilização do tiro dos besteiros e archeiros sobre a vanguarda inimiga, as alas podiam estar salientes em relação às linhas da frente ocupada pela vanguarda do lado amigo. Assim, os besteiros e archeiros podiam cruzar o tiro, ou seja, as frechas e os virotões, sobre a vanguarda inimiga que avançava contra o quadrado.
O quadrado defendia-se também em todo o seu contorno contra ataques do inimigo, quer pelos flancos quer pela retaguarda (ataques da cavalaria ligeira).
Empregando esta táctica, a batalha que as forças portuguesas impunham ao inimigo era muito diferente das grandes batalhas da Idade Média, caracterizadas pelo formidável choque dos cavaleiros, logo divididos em duelos e recontros parciais de cujas vitórias individuais dependia a vitória comum. A nova táctica era profundamente revolucionária, era fruto da mobilização armada das classes populares, das classes sociais ascendentes contra o poder feudal.
A nova táctica exigia a subordinação a um comando único. (Não podemos, aqui, deixar de fazer o paralelo entre o fortalecimento do poder do rei, apoiado pela burguesia ascendente e o comando único em campanha, O poder feudal era um poder descentralizado, mais ou menos dividido entre os senhores. Os exércitos feudais eram hostes de diferentes senhores; as batalhas da cavalaria feudal rapidamente se transformavam num somatório de recontros.)
A nova táctica exigia a disciplina das marchas e dos acampamentos, a escolha cuidada do terreno e do dispositivo e o hábil emprego das tropas.
Era o progresso táctico da peonagem (infantaria) e das armas de arremesso e a decadência da cavalaria medieval.
Mas estas profundas mudanças da táctica militar não foram pura consequência de um progresso interno, autónomo, da arte militar, com base no aparecimento de novos materiais de guerra, por exemplo. Elas foram um produto do surgimento de novas classes sociais, desenvolvimento da burguesia, da produção artesanal, da luta de classe entre a nobreza territorial, latifundiária e as classes não privilegiadas, da luta armada que estas classes tiveram de travar contra as forças do Estado feudal.
Se a táctica de «pé terra» surge, antes, na Inglaterra não é por acaso. Ela corresponde ao ascenso das camadas burguesas da sua população.
O facto da própria cavalaria portuguesa combater apeada na batalha de «pé em terra» não nos deve induzir em erro sobre a permanência da cavalaria medieval. A nossa cavalaria era empregada como infantaria, não usava lanças de 4 metros nem pesadas armaduras. Era uma cavalaria de cavaleiros-vilões, cavaleiros-burgueses. A própria cavalaria inimiga, nas batalhas de Trancoso e Aljubarrota, por exemplo, viu-se obrigada a apear-se. Os cavaleiros entregavam os cavalos aos seus pajens e cortavam as lanças para combater as tropas portuguesas. Mostravam, assim, que receavam atacar a cavalo (o que caracterizava, precisamente, o poder da cavalaria feudal) e ser derrubado pelos peões, pela tropa apeada. Os cavaleiros feudais eram, deste modo, obrigados a aceitar as condições de combate impostas pelo exército burguês e popular, mas em condições desvantajosas, pois a cavalaria feudal combatia a pé, com lanças improvisadas, pesadas armaduras e reduzida mobilidade.
A cavalaria a pé significa o predomínio da infantaria, das armas e armaduras ligeiras, das armas de tiro, fruto dos progressos do trabalho artesanal, manobradas pelos homens das milícias municipais (antepassados das tropas do contingente dos exércitos de conscrição).
A cavalaria a pé era a cavalaria transformada em infantaria.
Nuno Alvares foi o primeiro chefe militar que entre nós fez batalha de «pé terra» e venceu (Fernão Lopes).
A táctica do «pé terra» surgiu do próprio carácter social, de classe, da Revolução de 1383-85: as classes não privilegiadas não dispunham de cavalaria para opor aos nobres.
Depois da insurreição de 1383 as classes populares, por todo o Portugal, combatiam os nobres, espontaneamente, de «pé terra»: Quando o conde de Viana saiu com quarenta de cavalo do castelo de Penela «para tomar mantimentos contra a vontade dos seus donos», «juntaram-se contra ele os das aldeias e comarcas de redor para lhes defender todos pé terra».
«Emborilando-se eles com eles remessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em terra; e foi um vilão rijamente que chamavam de alcunha Caspirre e cortou-lhe a cabeça e assim morreu. E os seus, como o viram morto, fugiram todos e os da vila tomaram logo voz por Portugal».
Esta descrição dá-nos uma imagem correcta do que era a táctica de «pé em terra» empregada pelos portugueses, em Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota. É de admitir que Nuno Alvares Pereira (e alguns dos seus companheiros) tenha tido conhecimento da táctica de «pé em terra», do emprego da infantaria, antes de 1383. Com efeito, já há dezenas de anos que os ingleses empregavam a infantaria e os archeiros contra a cavalaria feudal. A Guerra dos Cem Anos deu aos ingleses grande prestígio na arte militar. Tropas inglesas estiveram em Portugal no reinado de D. Fernando. Nuno Alvares Pereira disporia, assim, de uma base de conhecimentos teóricos que lhe teria permitido tirar o maior aproveitamento do modo espontâneo como os camponeses combatiam os cavaleiros feudais, os senhores dos castelos.
O modo de combater a cavalaria feudal de «pé em terra» surgiu espontaneamente entre os nossos camponeses como terá surgido em Inglaterra, em condições de luta social que teriam as suas semelhanças. Nuno Alvares Pereira não tinha outra alternativa eficaz para o emprego das tropas e dos poucos meios de que dispunha. (Quando falamos de Nuno Alvares Pereira, grande capitão, não devemos esquecer os chefes militares seus companheiros e entre estes, os chefes militares burgueses.)
Nuno Alvares Pereira soube ligar a táctica de «pé em terra», ao estudo cuidado do terreno e ao seu hábil aproveitamento, obrigando o inimigo a adoptar um dispositivo de ataque que não lhe permitisse aproveitar toda a sua superioridade, como por exemplo, estreitando a frente de combate, como o fez em Aljubarrota. Os combates que Nuno Álvares Pereira travou foram, em geral, contra um inimigo muito superior em número e armamento. Essas circunstâncias adversas exigiam a nova táctica, adequada aos meios de que as forças populares dispunham, e um elevado moral dos combatentes. Desse elevado moral deram os portugueses sobejas provas.
Ele alicerçava-se na justiça da sua causa.
Nuno Alvares empregou uma táctica revolucionária numa guerra que, para a burguesia e para as classes populares, era uma verdadeira guerra revolucionária.

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Mas para Nuno Alvares, membro destacado da classe nobre, a guerra pela independência nacional não era simultaneamente uma guerra revolucionária. Nuno Alvares Pereira foi o maior chefe militar da Revolução de 1383-85. De uma coragem indómita ele arriscou constantemente a vida nas batalhas da Revolução. Mas os objectivos da sua luta, para além da defesa da independência nacional, não eram muitas vezes os mesmos, que os da burguesia.
Em 1395 Nuno Alvares pretende constituir seus vassalos alguns seus companheiros de armas e amigos, ao que se opõem D. João I e os grandes burgueses, cujos representantes faziam parte do governo do rei. Trata-se de um verdadeiro afrontamento de classe entre o condestável, de um lado, e o rei e a burguesia, do outro. Para Nuno Alvares a guerra não podia, pois, ter um carácter social revolucionário.

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Em estreita ligação com a táctica de pé em terra e com o emprego de armas de arremesso o exército português organizava defensivamente o terreno, criando obstáculos (fossos, trincheiras, abate de árvores, paliçadas) à penetração do inimigo com o fim de lhe retardar os movimentos, quer da cavalaria, quer das tropas apeadas, e ainda para o fixar debaixo do tiro dos besteiros e archeiros.
A organização do terreno, ou seja, escavar trincheiras e fossos, abater árvores, construir paliçadas, é um trabalho humilde que só poderia ser feito por homens pertencentes às classes populares. De novo se evidencia o carácter popular do exército português.
A BATALHA
Após a invasão de Portugal pela Beira Alta, a 8 de Julho, e conhecida a 13 em Abrantes, os movimentos estratégicos das forcas portuguesas (as hostes de D. João I e de Nuno Álvares Pereira) são feitos com o objectivo de, conhecida com segurança a linha de penetração do inimigo, a interceptarem, obrigando-o ao combate. A batalha foi imposta pelos portugueses.
O combate foi travado duas léguas a norte da aldeia de Aljubarrota.
No dia 12 de Agosto os castelhanos estavam provavelmente em Leiria e os portugueses em Porto de Mós. Nestes pontos estacionaram os exércitos.
Nuno Álvares, a 13 de Agosto saiu em reconhecimento do inimigo e deve ter escolhido nesse reconhecimento a posição que no dia 14 viria a ocupar para cortar a marcha dos castelhanos. A posição era situada num pequeno planalto a sul da ribeira de Calvaria, que podia ser atravessada a vau sem grande dificuldade. Ladeavam a posição os ribeiros do vale de Madeiros e do vale da Mata, respectivamente à esquerda e à direita de quem está voltado para norte.
O exército português ocupou o lado norte do pequeno planalto o qual apresenta muitos esporões praticamente inacessíveis. Entre dois deles passava a estrada por onde os castelhanos haviam de vir. De forma geral, só se pode subir da várzea pantanosa da ribeira da Calvaria para esse pequeno planalto pelos vales que o ladeiam.
Estas condições do terreno limitavam muito a frente em que o inimigo podia lançar o ataque e ainda permitiam que ele fosse batido de flanco, por tiros cruzados de atiradores (besteiros e archeiros) postados nos esporões e colocados nas alas esquerda e direita.
As encostas dos flancos eram impróprias para o emprego da cavalaria pesada de Castela.
Às dez horas (solares) da manhã do dia 14, os portugueses estavam instalados na posição sobre a ribeira de Calvaria. Ao meio-dia, a testa da coluna castelhana «chega acerca dos portugueses» a 1250 metros na crista da encosta fronteira.
Reconhecendo a força da posição portuguesa, o exército castelhano decide ladeá-la pelo oeste e às 13 horas estaciona onde hoje existe a povoação de Calvaria, que era visível da posição portuguesa.
Em face do movimento do inimigo, o exército português começa a abandonar a primeira posição. Inverte a frente e desloca-se para o sul o suficiente para assegurar o espaço de manobra à retaguarda e à carriagem, indo ocupar uma nova posição mais a sul.
«Passou a vanguarda pela retaguarda» relata Fernão Lopes. Quer dizer, a retaguarda abriu para dar passagem à vanguarda, mas as alas não cruzaram, ficaram dos lados em que estavam na 1ª posição.
Andados 2100 metros foi encontrada uma boa posição: o flanco esquerdo coberto por bons obstáculos; o flanco direito apoiado num áspero declive.
Às 12 e 45 começa a instalação da frente. Duas horas depois a nova posição estava ocupada.
Às 15, o trem estava em posição, 1500 metros a sul da primeira posição que ocupara. A frente do exército português estava, agora, virada ao sul.
Alcide de Oliveira, no seu livro «Aljubarrota Dissecada», 1979, propõe a seguinte fita de tempo para os movimentos dos dois exércitos, no dia 14 de Agosto, até ao início da batalha:
EXÉRCITO DE PORTUGAL
Partida de Porto Mós
05:15
Chegada à 1ª posição
06:45
Fim da instalação, começo de armar cavaleiros, alocuções às tropas
10:00
Aparecimento dos castelhanos no horizonte
11:45
Paragem da testa da coluna castelhana em Jardoeira (a norte da rib. de Calvaria)
12:00
Recomeço da marcha da col. castelhana, inflectindo para oeste
12:15
Começo do abandono da 1ª posição pela tropa portuguesa
12:30
Começo da ocupação da 2ª posição
12:45
Fim da instalação na 2ª posição
14:45
Chegada do reforço dos cavaleiros da Beira
15:00
Diálogo com os parlamentares do rei de Castela
16:30
Recepção da espada mandada pelo conde D. João Afonso Teles, que vinha na hoste de Castela, a Nuno Alvares
17:00
Deserção de um grupo da segurança do trem
18:15

EXÉRCITO DE CASTELA
Chegada da testa à Jardoeira
12:00
Chegada da testa à Calvaria e paragem
13:00
Prosseguimento da marcha após reconhecimento da base de ataque
14:00
Começo da ocupação da base de ataque
14:30
O rei chega a Chão de Feira (a sul de Calvaria)
15:45
Saída dos parlamentares
16:00
Regresso e início do Conselho
17:00
Chegada da testa do trem (trons)
17:15
Apear e recolher das montadas
17:30
Fim da reunião do Conselho
17:45
Fim da instalação a pé na zona de partida da 1ª batalha (1° escalão de ataque)
18:45
Recolha das montadas da 2ª batalha (2º escalão de ataque), chegada da testa da coluna de besteiros e lanceiros (tropa apeada do 1º escalão de marcha) ao escurecer depois das 19:15 (não chegam a tempo do combate)
após 19:15

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As tropas que se iriam defrontar eram muito diferentes em efectivos.
Os dados disponíveis correspondem a avaliações prováveis:
A hoste portuguesa terá a seguinte composição aproximada:

MONTADOS
Cavaleiros portugueses (lanças)
1 100
Cavaleiros ingleses e gascões
100
Besteiros (escolta do rei)
100
Archeiros ingleses
100

APEADOS
Homens de armas (lanças «não bem corrigidas»)
500
Besteiros
700
Peões
3 900

SOMA DOS COMBATENTES
6 500
Não combatentes (cerca de 1/3 dos combatentes)
2 500
TOTAL
9 000

O estandarte indicava a localização do chefe que devia ser visto pelos combatentes. Capturar ou matar o chefe era um objectivo de primeira prioridade do inimigo. Por isso o chefe devia ser bem protegido. Tinha a sua escolta (do rei, do condestável) que era uma pequena força militar montada. A escolta de D. João I era constituída por 100 besteiros a cavalo. Os não combatentes não estavam desarmados, e quando a situação o impunha combatiam.
Os efectivos nacionais seriam acompanhados de 200 carros, 1300 azêmolas de carga e tiro e cerca de 1500 solípedes de sela.
Os valores propostos para os efectivos de pessoal são aproximados, com um erro de 500 a 1000.
Do estudo do dispositivo provável e do terreno conclui-se que admitir efectivos superiores conduziria a uma aglomeração de pessoal incompatível com as dimensões da posição e a densidade de ocupação incoerente com as habituais na época.
Ao contrário do que diversos autores admitem, o número de estrangeiros não seria superior a 200 (de acordo com Fernão Lopes).
«Nos portugueses a protecção consistia apenas numa espécie de elmo que lhes cobria a cabeça e o pescoço — os bacinetes de camal, e uma indumentária de couro ou de pano acolchoado para defesa do tronco, chamado solha ou laudel.
«Os privilegiados possuíam cotas de malha de ferro — as panceiras, e fraldões para proteger, respectivamente, o ventre e o corpo da cintura para baixo.
«Armaduras de chapa de ferro não foram utilizadas pelos portugueses pelo que nada distinguia os cavaleiros dos outros combatentes.
«Por armamento fundamental tinham a lança, a facha de ferro e a espada. «A peonagem trazia chuços, machados, dardos, fundas, etc» (Alcide de Oliveira, ob. cit.)
Do lado de Castela seriam:

MONTADOS
Cavaleiros (lanças)
5 300
Cavaleiros franceses (lanças)
800
Besteiros (escolta do rei, do condestável, etc.)
500
Ginetes (cavalaria ligeira)
1 900

APEADOS
Besteiros
7 500
Peões
15 000

SOMA DOS COMBATENTES
31 000
Não combatentes (1/3 dos combatentes)
11 000
TOTAL
42 000

Das guarnições e praças portuguesas que estavam por Castela deveriam vir 500 lanças, 300 besteiros e 1000 peões.
O número de castelhanos era tal que não se deslocavam numa só coluna de marcha, mas em duas, uma coluna montada e outra apeada.
A coluna montada compreendia 17 400 combatentes e 6000 não combatentes. A coluna apeada 13 600 combatentes e 5000 não combatentes.
A coluna de marcha do exército português necessitava de 3 ½ a 4 horas para se desenvolver de modo a ocupar a posição.
Cada uma das colunas dos castelhanos de cinco horas e meia.
Quando a batalha teve início, ao cair da tarde, as tropas castelhanas ainda estavam a chegar à sua posição. A 2ª coluna de marcha, ainda na Azoia, a norte do local da batalha, quando soube da derrota, retomou o caminho de Castela.
DISPOSITIVOS
Do lado português a frente teria 350 a 400 metros, do lado castelhano 750 metros, porque o terreno, o pequeno planalto se espraiava para sul da actual capela de S. Jorge (mandada construir por Nuno Álvares Pereira no local onde estivera a sua bandeira durante a batalha). O perfil longitudinal do terreno descia do sul para norte. À frente da posição portuguesa foram criados obstáculos: — uma linha de abatises diante das faces (alas) que flanqueavam a vanguarda para garantir uma boa actuação (e defesa) dos besteiros e archeiros e evitar que sobre a pressão do inimigo aqueles fossem atirados para as encostas dos vales que ladeavam a posição; — uma vala frontal ou fosso de uns 300 a 400 metros para contrariar a progressão inimiga e o obrigar a combater debaixo do tiro dos besteiros e archeiros das alas. Há ainda notícia de que a posição portuguesa seria protegida por uma paliçada de madeira, o arraial de tavoado da Cumieira de Aljubarrota doado em 15 de Agosto de 1385 por D. João I.
Quanto ao que se julgou ser «covas de lobo» encontradas em escavações feitas no fim da década de 50, as suas dimensões e disposição em relação à frente de combate, bem como o tempo e pessoal que havia disponível para as abrir, levaram Alcide de Oliveira a uma investigação no local, da qual concluiu: «Não se trata, repetimos, e obras de organização do terreno mas sim covas feitas pelos oleiros ou telheiros da época para colheita de barro, e que o Condestável aproveitou para apoiar a asa oriental da sua ala esquerda, condenada a instalar-se na aba do esporão de São Jorge cujo terreno possuía um valor militar manifestamente mais fraco.
«Era um obstáculo ocasional, inteligentemente aproveitado e que bastaria dissimular... As covas foram, pois, uma determinante da escolha da posição e não uma sua consequência.»
Os obstáculos criados ou aproveitados diminuíam a frente de ataque do exército castelhano.
O dispositivo português constituía (aproximadamente) um quadrado, tendo a frente e a retaguarda cerca de 350 metros de extensão e os lados cerca de 400 metros. À frente, a vanguarda, sob o comando de Nuno Álvares Pereira era formada por 600 lanças (cavalaria apeada) dispostas em três linhas, mais 50 peões da escolta do Condestável. De cada um dos extremos da vanguarda estava formada uma ala, imediatamente contígua à vanguarda, formando com ela um corpo único, a chamada 1ª batalha, porque era a que estava à frente.
As alas tinham a forma de um V com o vértice voltado para o inimigo e os lados do V guarnecidos por tropas. Eram como que dois «baluartes» (em linguagem da fortificação permanente), salientes em relação à linha da vanguarda. Os salientes teriam uma extensão de 100 a 130 metros. Estes salientes permitiam que, pelo lado de dentro, os besteiros e archeiros fizessem tiro cruzado sobre o inimigo à frente da vanguarda do exército português quando aquele assaltasse a posição portuguesa. Do lado de fora, o saliente permitia a defesa contra os ataques de flanco sobre a vanguarda do exército português.
A ala direita, do lado ocidental, era constituída por 200 lanças (das quais 100 estrangeiras) 100 archeiros ingleses, 100 besteiros e 750 peões.
A ala esquerda, a ala dos Namorados, do lado oriental, era formada por 200 lanças, 200 besteiros e 650 peões.
As alas eram formadas em quatro linhas: besteiros na 1ª, peões nas 2ª e 3ª e cavaleiros (apeados) na 4ª. Os besteiros atiram, quer colocando-se à frente (e recolhendo-se ao quadrado no momento porventura necessário), quer pelos intervalos entre as lanças.
Atrás da vanguarda e suas duas alas (a 1ª batalha), a cerca de 200 metros, no interior do quadrado, formava a retaguarda, cujo alinhamento era paralelo ao da vanguarda. Ocupando os lados do quadrado, duas guardas de flanco no lado oeste, duas guardas de flanco no lado este.
A retaguarda e as guardas de flanco, laterais, constituíam a 2ª batalha. Era comandada pelo rei D. João I.
A 2ª batalha era formada por 700 lanças (apeada), 300 besteiros (dos quais 100 da escolta do rei) e 1050 peões.
A retaguarda era formada por três linhas sendo a 1ª de peões, 250, e as 2ª e 3ª de lanças, 500. As guardas de flanco eram formadas pelos restantes combatentes da 2ª batalha, dispostos em três linhas, sendo a linha interior e a linha exterior (em relação ao quadrado) ocupadas pelos peões. Em cada flanco 100 lanças, 100 besteiros e 400 peões.
A missão das guardas de flanco era não só não permitir ao inimigo que entrasse no quadrado pelos lados perpendiculares à frente, isto é, pelos flancos do dispositivo defensivo, como também fechar o cerco ao inimigo e cair sobre ele, caso este tivesse penetrado no quadrado rompendo a frente, a vanguarda.
Atrás da retaguarda, a uns 150 metros, a carriagem ou o «curral» fecham o quadrado. Compreendia o trem de acompanhamento. Era guarnecida por 200 besteiros e 1400 peões. Os carros estacionados, uns junto dos outros, com os animais desatrelados, os próprios cavalos e muares de reserva constituíam um obstáculo à penetração do inimigo por detrás do dispositivo.
No total as nossas tropas combatentes estavam todas instaladas na posição.
A missão da vanguarda era a de suportar o choque principal do assalto inimigo. Nela formavam os melhores combatentes.
A missão principal das alas e das guardas de flanco foi referida atrás. A missão da retaguarda era a de reforçar a vanguarda, colmatar as brechas feitas pelo inimigo na frente e, se possível, o contra-ataque. Alguns cavaleiros inimigos, apresentando-se como parlamentários, tentaram reconhecer a posição portuguesa antes do combate. Nuno Alvares Pereira repeliu-os. Mas devem ter verificado que a posição portuguesa era muito forte. Quando o rei de Castela reuniu o conselho para decidir sobre dar ou não dar batalha, as opiniões dividem-se em três correntes:
· não dar batalha mas conservar-se no terreno aguardando a defecção dos portugueses, desmoralizados perante o grande número de inimigos e esgotados pela marcha de aproximação da posição e por nela aguardarem há tantas horas, debaixo de sol escaldante o ataque do inimigo;
· não dar batalha e prosseguir a marcha sobre Lisboa, objectivo que, conquistado, significaria a conquista do reino;
· dar batalha imediatamente.
Os cavaleiros mais experientes, que tinham estado noutras batalhas, eram de opinião que não se travasse combate, por várias razões:
· a posição portuguesa era muito forte;
· as alas tinham dificuldade em tomar parte no combate porque a frente da posição era estreita e eles eram obrigados a desdobrar-se sobre as encostas que ladeavam a posição;
· era o cair da tarde e eram necessárias ainda horas para que as tropas se pudessem ordenar sobre a posição e estavam cansadas da marcha de aproximação.
Mas os cavaleiros mais inexperientes e arrogantes, entre os quais se encontravam os nobres portugueses, menosprezando o valor e a posição defensiva do inimigo, bem como as condições do terreno, defenderam que se devia dar batalha, pois era manifesta a inferioridade portuguesa. Há um documento escrito pelo rei de Castela, poucos dias após a batalha, em que ele afirma ter dado ordens para que não se ferisse o combate. Mas os cavaleiros da vanguarda (entre os quais se destacava o conde João Afonso Telo, irmão de D. Leonor Teles) iniciaram o ataque pouco depois das seis horas da tarde. Há aqui que apontar a falta de unidade de comando do lado de Castela o que, para além das fracas qualidades pessoais do rei, não é de estranhar num exército de tipo senhorial, constituído por hostes do rei, dos grandes senhores e das ordens militares.
Que os castelhanos atacassem era o que pretendia o comando português. Os movimentos estratégicos e tácticos da tropa portuguesa haviam tido o objectivo de cortar o caminho ao inimigo, provocando a batalha. D. João I e Nuno Alvares apresentavam a sua hoste ao invasor, provocando-o.
A manobra de contorno, por oeste, da 1ª posição portuguesa ameaçou deitar por terra o ambicioso plano do comando português. Mas este insistiu, fez inverter a frente do seu exército e de novo se apresentou aos castelhanos com o objectivo de lhe cortar a penetração.
Nuno Alvares Pereira tinha consciência da desproporção dos efectivos e dos seus efeitos sobre a moral das tropas: nos dias que precederam a batalha procurou evitar que os seus homens conhecessem a enorme superioridade do inimigo, para que não desmoralizassem. No dia 14 de Agosto, D. João I e Nuno Alvares Pereira andavam constantemente entre os seus homens, moralizando-os. De facto, o moral dos portugueses, de tão grande importância no desfecho da batalha, era grande: quando as tropas viram o inimigo contornar a 1ª posição, furtando-se ao combate, os portugueses exclamaram: «o pesar do demo, já se vão e não querem pelejar».

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Enquanto o dispositivo português era defensivo, o castelhano era atacante. A frente de ataque tinha cerca de 750 metros. À frente da vanguarda, 16 trons, com 50 bombardeiros (artilharia primitiva) e uma linha de 200 besteiros, para uma acção de fogo e tiro das bestas, precedendo o ataque da cavalaria.
A 1ª linha de batalha era formada por 1600 lanças na vanguarda e 700 em cada uma das alas. As. alas estavam alinhadas com a vanguarda. A 1ª linha estava dividida em 2 escalões. O escalão de reserva tinha uma profundidade de 120 metros e postava-se 150 metros atrás da vanguarda. 100 metros atrás da reserva a 2ª linha formava a massa de manobra. Era constituída por 3000 lanças (cavalaria pesada) e 2000 ginetes (cavalaria ligeira). O rei doente e a sua escolta de 150 homens a cavalo não se integraram no dispositivo. O total era de 8250 combatentes. O comando do exército castelhano, ao verificar que o inimigo combatia a pé e de que era pequena a frente de que dispunha, ordenou que a cavalaria pesada apeasse e combatesse a pé.
Os ginetes, massa de manobra, não apeavam, Avançavam a galope, lançavam dois, três dardos sobre o inimigo, espadeiravam e, se estes não cediam, retiravam.
Se compararmos o número de combatentes do dispositivo defensivo português e do dispositivo atacante castelhano, ou seja, 6500 contra 8250, verificamos que Nuno Álvares Pereira, pela escolha da posição e pelo tempo de manobra para ocupar o dispositivo conjugado com o adiantado do dia, reduziu muito a desproporção dos efectivos combatentes e a superioridade estratégica do exército castelhano.

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O ataque foi iniciado a pé, o que representava uma grande desvantagem para a cavalaria atacante cujas lanças (de 4 metros) haviam sido cortadas e cujas pesadas armaduras lhe reduziam a mobilidade. Os trons deram o sinal de partida (e fizeram apenas três mortos entre a hoste portuguesa), mas rapidamente ficaram inoperativos, rebentaram.
A 300 metros da linha portuguesa a cavalaria castelhana acelera o passo.
A vanguarda portuguesa, bem alinhada, inicia um movimento lento, de avanço, sobre uma dezena de metros. Por razões de ordem psicológica a vanguarda na defensiva e no combate apeado não aguardava o inimigo a pé firme. No último momento avançava «passo a passo». A cavalaria castelhana depara com o fosso à sua frente. Progride a custo sob o tiro dos besteiros e archeiros do exército português. Os homens das filas do interior da massa atacante progrediam sob a protecção física dos que junto com eles avançavam na periferia dessa massa. A massa atacante perde os seus alinhamentos e distâncias. Torna-se compacta, informe e afunila.
A vanguarda portuguesa avança. Choque. O combate é um corpo a corpo à lançada e espadeirada. Os dois blocos de combatentes sofrem pressões desiguais das suas respectivas retaguardas. A frente portuguesa cede entre o centro e a esquerda, no sector onde se encontra Nuno Alvares Pereira, provavelmente por ter sido em direcção ao estandarte do Condestável que maior esforço fizeram os castelhanos, pois capturar ou aniquilar o comandante inimigo era um objectivo prioritário.
Metade das forças atacantes entra de roldão no quadrado português, progride em direcção ao rei. Então as alas portuguesas dobram-se sobre o inimigo e ficam entre a vanguarda e a retaguarda portuguesas. O rei D. João I lança-se sobre o inimigo. As guardas de flanco da 2ª linha portuguesa completam o cerco. Besteiros, archeiros e peões das alas mantêm as suas posições.
A 2ª linha castelhana, em organização, ao longe, avança.
A vanguarda portuguesa consegue restabelecer a frente. O inimigo que penetrara no quadrado português é cercado, submerge ante a enorme superioridade do número de lanças, besteiros e peões que o envolvem e é esmagado.
Quinhentos castelhanos conseguem escapar ao envolvimento, vêm ao encontro da reserva do seu exército ainda não completamente organizada.
Contra-ataque de Nuno Alvares Pereira com o que resta da 1ª linha portuguesa, 2300 homens. Exploração do sucesso até ao trem do inimigo. A perseguição é feita a cavalo.
Os ginetes de Castela tentam um ataque sobre a retaguarda do quadrado português mas são repelidos.
O pânico gera-se entre os castelhanos: de um lado entre os cavaleiros apeados da 1ª linha, que recuam; do outro, no seio das unidades mais atrasadas na coluna de marcha e que só agora se aproximavam da frente. O dispositivo castelhano não foi restabelecido. Os castelhanos fogem desordenadamente em todas as direcções, a cavalo e a pé.
O rei de Castela foge a caminho de Santarém.
Os ginetes aguardam a noite para, a coberto dela, retirarem em segurança. Juntam-se-lhe mais de 1000 homens a cavalo.
A população rural da região cai sobre os fugitivos, como sucede sempre que uma guerra é nacional e popular. Mata grande número deles, sendo de admitir que foram mais os que morreram às mãos dos camponeses (5500) que durante o combate.
Terão sido mortos na batalha cerca de 2500 cavaleiros do exército do rei de Castela entre os quais dezenas de grandes fidalgos e, destes, alguns eram portugueses.
A fita do tempo (da batalha) desde a partida para o ataque terá sido aproximadamente a seguinte (A. Oliveira, Aljubarrota Dissecada ):

Salva de trons e partida do escalão de ataque
18:15
Abordagem da posição portuguesa
18:25
Rotura da frente e começo do envolvimento da bolsa
18:30
Reconstituição da vanguarda portuguesa e contra-ataque
18:40
Debandada da reserva castelhana e fuga do rei
18:45
Último ataque dos ginetes ao curral
18:50
Fim do aniquilamento na bolsa
18:55
Exploração do sucesso e saque do trem castelhano
18:55
Reagrupamento dos ginetes depois de repelidos (escurecer)
19:10
Identificação dos mortos pelo rei de Portugal até às
20:00
Partida dos ginetes (noite cerrada)
20:25
Chegada de D. João de Castela a Santarém
24:00
Chegada dos ginetes a Santarém (15 Agosto)
08:00
Partida de D. João I para Alcobaça
16/Agosto, manhã

Graças à hábil escolha e organização da posição portuguesa apenas a vanguarda castelhana pôde ser empenhada na acção principal do combate enquanto do lado português todos os efectivos foram empenhados. Assim a inferioridade estratégica do exército português foi transformada em superioridade táctica.
A cavalaria portuguesa não se distinguia, praticamente, da infantaria. Estava ligeiramente armada e equipada. A peonagem da retaguarda sob o comando de D. João I (que combateu a pé) teve papel decisivo no aniquilamento da vanguarda castelhana que havia penetrado no quadrado português.
Embora tenha sido possível que os oficiais ingleses presentes em Aljubarrota tenham aconselhado a execução da fortificação de campanha, o certo é que já em 1384 o Condestável, acampado junto a Estremoz, mandara «abrir trincheiras e construir defesas à volta do arraial». Deve, portanto, considerar-se que a conjugação do dispositivo das tropas com as obras de fortificação de campanha era já uma aquisição da arte militar portuguesa antes de Aljubarrota. Depois de Aljubarrota, as praças fortes e povoações ocupadas por partidários do rei de Castela entregaram-se quase todas.
A esquadra castelhana que pairava diante de Lisboa, aguardando a chegada do exército, parte, levando vários fidalgos portugueses, entre os quais alguns que desempenhavam os cargos de Alcaides de castelos ao serviço do inimigo.
A vitória de Aljubarrota representou uma viragem decisiva na guerra contra Castela, que se prolongou, entremeada de combates e de tréguas, até 1411.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A batalha de Aljubarrota foi uma expressão concentrada das características políticas, socioeconómicas, militares, morais, da Revolução de 1383-85. Em Aljubarrota esteve bem patente a luta pela independência nacional empreendida pela burguesia, pelas classes populares e por alguns nobres patriotas.
Esteve patente a traição a Portugal pela classe dominante de então, a nobreza territorial e latifundiária, que não hesita, para defender as suas posições privilegiadas, a sua riqueza, em pedir o auxílio da nobreza castelhana, do estrangeiro, comprometendo de modo decisivo a independência da sua Pátria.
No exército castelhano vinham, à frente, os maiores senhores da nobreza portuguesa. E foram precisamente estes que, com o maior desprezo pelo exército português, mais incitaram o rei de Castela a dar batalha.
Em Aljubarrota esteve, também, patente a luta contra a opressão feudal: os humildes componentes do exército português viam, diante de si, nos nobres traidores que estavam com o rei de Castela, os mesmos que os oprimiam, exploravam e violentavam, havia gerações e gerações.
A batalha de Aljubarrota é o momento mais alto da arte militar de Nuno Álvares Pereira e dos seus companheiros, dos chefes militares da Revolução de 1383-85, uns deles pequenos nobres, outros de origem plebeia (burgueses do campo e da cidade).
Uma arte militar que tinha uma grande inspiração das lutas populares, que por todo o Portugal eclodiram a partir de Dezembro de 1383, uma arte militar que, fundamentalmente, era a maneira de fazer a guerra das classes sociais ascendentes contra o poder feudal em decadência.
Aljubarrota é o confronto entre a infantaria portuguesa, de pobre gente, dos ventres ao sol e a aristocrática cavalaria feudal. Aljubarrota impôs definitivamente, entre nós, o triunfo da infantaria sobre a cavalaria medieval (por esta razão o dia 14 de Agosto foi consagrado como o dia da Infantaria Portuguesa).
A importância da consciência da justiça da guerra está bem patente no moral das tropas portuguesas, no seu espírito de sacrifício, na serenidade de que deram provas diante de tão grande número de inimigos, bem montados e armados.
A justiça da guerra que os portugueses faziam, alicerce da unidade entre o povo e o exército está patente ainda na determinação de que as populações rurais deram provas ao perseguirem e aniquilarem os fugitivos do exército castelhano, incluindo os traidores portugueses que com ele tinham vindo a Aljubarrota.
Deve também salientar-se a unidade e coesão entre os combatentes portugueses. Esta coesão e unidade tinham por base objectivos nacionais e sociais comuns; independência da Pátria, a defesa dos bens e haveres, a limitação dos privilégios dos nobres, a luta contra a opressão feudal. A justiça desses objectivos comuns era também a base da unidade entre o comando e as tropas. A batalha de Aljubarrota é por todas as razões apontadas atrás, um marco dos maiores da História de Portugal.
Ela contém, como expressão concentrada que é da Revolução de 1383-85, lições de grande actualidade acerca da luta pela independência nacional, acerca da luta de classes e da guerra.

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De todas estas lições uma das mais pertinentes, neste momento, é, sem dúvida, a da posição das classes dominantes face à defesa dos seus privilégios e à independência nacional.
Em 1383-85 a nobreza portuguesa procurou a intervenção da nobreza de Castela na política portuguesa, oferecendo ao rei castelhano o trono de Portugal e combatendo ao lado das forças invasoras.

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A classe dominante de hoje, a burguesia monopolista e latifundiária foi profundamente abalada, no seu poder económico e político, depois do 25 de Abril pelas conquistas democráticas alcançadas pelo Povo português. A política de restauração capitalista, de restauração dos privilégios da grande burguesia, conduzida pelos sucessivos governos constitucionais, tem sido uma política de subordinação, dia a dia mais grave, da política e da economia portuguesas ao grande capital internacional, à banca internacional privada, às empresas transnacionais, à CEE, à política diplomática e militar dos EUA e da NATO, etc.
Que significado tem esta política?
A grande burguesia procura no estrangeiro o apoio de que necessita para se manter no Poder, para restabelecer os seus antigos privilégios. Mas o apoio que procura e obtém junto dos meios imperialistas e da grande burguesia internacional faz correr graves riscos à capacidade de os portugueses decidirem da sua própria vida, do seu próprio presente e futuro.
Como a nobreza portuguesa em 1383-85, a grande burguesia monopolista dos nossos dias não hesita em comprometer a independência nacional à restauração, conservação e reforço dos seus interesses de classe, que são o seu enriquecimento e o seu domínio da sociedade portuguesa, tendo por base a opressão e a exploração das mais amplas camadas do nosso povo, ou seja, das camadas não monopolistas.
Hoje, são a classe operária, os trabalhadores, as camadas não monopolistas da nossa população os legítimos herdeiros da tradição patriótica dos burgueses, dos mesteirais, dos camponeses sem terra, dos assalariados que lutaram pela independência da nossa Pátria contra a classe dominante do seu tempo, a nobreza de Portugal e de Castela, e venceram.
Bibliografia
· Crónica de D. João I, Ferrão Lopes.
· História do Exército Português, Ferreira Martins.
· Portugal Militar, Carlos Selvagem.
· Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão.
· A Revolução de 1383, António Borges Coelho.
· As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, Álvaro Cunhal.
· De Estremoz a Aljubarrota, Augusto Botelho da Costa Veiga.
· Aljubarrota, A. B. Costa Veiga, G. Mello de Matos e Afonso do Paço.
· A Evolução Económica de Portugal, Séculos -XII a XV, vol. XI, Armando de Castro.
· História Económica de Portugal, II vol., Armando de Castro.
· Aljubarrota Dissecada, Frederico Alcide de Oliveira.
· Os esquemas dos dispositivos são os propostos por A. de Oliveira em «Aljubarrota
Dissecada».