23.6.05

O medo hierárquico de existir (José Gil) e a greve dos professores



Em tempo de balanço da greve dos professores podemos considerá-la não propriamente como um sucesso retumbante, mas mais como uma amostra desse tal medo de existir ( que o livro de José Gil, «Portugal, Hoje: o medo de existir») nos fala, e do efeito catártico e perturbador que as críticas produzidas às intimidações e operações ministeriais de chantagem sobre os profissionais de ensino, poderão ter a partir daqui.

Na verdade, nestes dias de «serviços máximos», nunca se discutiu tanto e se teceram críticas tão agudas ao Ministério da Educação, e em geral, ao actual governo . E só isso faz pender a balança para o lado positivo nesta greve.
Mais do que os 100% ou os 25% de adesões à greve, nesta ou noutra escola, apesar das intimidações e operações dilatórias, o que é, realmente, importante e valioso, é sublinhar o facto que a convocação de todos os professores para a mesma hora, durante 4 dias sucessivos – e, por isso, se fala não tanto de «serviços mínimos», mas de «serviços máximos», que foi o que, na verdade, se verificou - ter constituído uma ocasião única para encontros, conversas, trocas de palavras, enfim, uma partilha de opiniões e pareceres entre todos os profissionais do mesmo estabelecimento de ensino. E isso foi um fenómeno nunca visto, que não deixará de frutificar no futuro próximo.


Estes 4 dias de convocatórias de todo (!!!) o corpo docente de cada escola foram, sem dúvida, os 4 dias de debate e discussão sobre o estado da nação em geral.


Claro que mostram também até que ponto está anémica a classe docente. Mas isso já sabíamos.
Quer do saber de experiência feito, quer das análises sociais realizadas pelos técnicos. O que talvez seja interessante é relacionar esta greve dos professores, com todas as operações e movimentações governamentais à sua volta, com aquilo que o conhecido filósofo José Gil escreveu no seu recente livro «Portugal, Hoje: O Medo de Existir», sobretudo quando diz:

«Refiro-me ao medo, à passividade, à aceitação sem revolta do que o poder propõe ao Povo»

E, mais adiante:

«…na sociedade portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a passividade perante as instituições e os homens supostos deterem e dispensarem o poder-saber não foram ainda quebrados por novas forças de expressão da liberdade»



Como contributo para uma leitura mais reflexiva, aqui deixamos um excerto mais alargado desse livro. Pudesse ter a certeza que 50% dos professores portugueses lessem e compreendessem o que José Gil escreve, e estaríamos já noutro país.



«…depois do surto que se guiu ao 25 de Abril, os ânimos voltaram a uma espécie de apatia, tanto no campo político como, digamos, no da cidadania. As universidades, que vivem em círculo fechado, mas também o regime partidário, as suas práticas e os seus discursos, o «autismo» dos governos e a sua visão medíocre do futuro, a falta de imaginação e a falta de coragem políticas contribuíram largamente para que os reflexos herdados da ditadura demorassem ( e demorem) a dissolver-se. Refiro-me ao medo, à passividade, à aceitação sem revolta do que o poder propõe ao Povo. Como se, tal como antigamente, a força de indignação, a reacção ao que tantas vezes aparece como intolerável, escandaloso, infame na sociedade portuguesa ( tolerado, aceite, querido talvez pela maneira como as leis e regras democráticas se concretizam na sociedade, quer dizer no húmus das relações humanas), se voltasse para dentro num queixume infindável quanto à «república das bananas» ou «a trampa» que decididamente constituiria a essência eterna de Portugal, em vez de se exteriorizar em acção.
Gostaria de insistir num ponto: o legado do medo que nos deixou a ditadura não abrange apenas o plano político. Aliás, a diferença com o passado é que o medo continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente. Um aspecto desse legado deixou uma marca profunda num campo específico: no saber, na hierarquia do poder-saber que Salazar promoveu, cultivou e utilizou em proveito directo do poder autocrático, que instaurou. O efeito desse medo hierárquico faz-se ainda hoje sentir.
…Porque na sociedade portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a passividade perante as instituições e os homens supostos deterem e dispensarem o poder-saber não foram ainda quebrados por novas forças de expressão da liberdade.
Numa palavra, o Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica. Vivemos numa sociedade sem espírito crítico…»


In «Portugal, Hoje: o Medo de Existir», de José Gil, edição da Relógio d´água