3.5.05

Ameaças ao Habeas Corpus no Reino Unido!



O que George W. Bush não conseguiu impor nos Estados Unidos, isto é, a possibilidade para o governo de tomar, no quadro da luta antiterrorista, medidas que coloquem em causa o direito dos cidadãos a dispor de si mesmos, Tony Blair conseguiu-o no Reino Unido.
A nova lei, The Prevention of Terrrorism Bill, votada no passado 11 de Março, modifica o Terrorism Act 2001,o qual autorizava a detenção ilimitada de estrangeiros, sem provas e sem julgamento. Depois disto, o primeiro-ministro inglês resolveu estender aos indivíduos com nacionalidade britânica toda uma série de procedimentos de excepção que colocam em causa as liberdades individuais de todos os britânicos.
A nova lei permite ao ministro do Interior adoptar medidas de controle que podem ir até às prisões domiciliárias de alguém, quando «haja razões fundadas de suspeita que um indivíduo esteja ou tivesse estado implicado numa acção ligada ao terrorismo». Dá também poderes ao Ministro para interditar o uso de um telemóvel, limitar o acesso à Net, impedir os contactos com certas pessoas, obrigar a estar em casa a certas horas, autorizar a polícia e os serviços especiais a ter acesso a qualquer hora a um domicilio. Prevê ainda a possibilidade de limitar o acesso de alguém a um emprego ou uma actividade ocupacional.
Tais disposições poderão ser tomadas quando o ministro do Interior considerar que o indivíduo apresenta um perigo para a segurança nacional, ainda que os elementos recolhidos não permitam ainda levá-lo perante um tribunal. O próprio ministro do Interior declarou que tais medidas de controle poderão ser tomadas na «base de uma opinião fundada, fornecida pelos serviços de segurança, e que haja uma suspeição razoável que certo indivíduo esteja ou tenha estado ligado ao terrorismo».
Assim, o que justificará a decisão de colocar uma pessoa sob controle não serão elementos objectivos, mas a suspeita que recai sobre ela, ou a intenção que lhe é atribuída. A actividade terrorista é definida como «a preparação ou acções com vista à prática de actos terroristas», mas também pelo facto «de ajudar ou assistir indivíduos que se saiba ou que se pense estarem implicados em actividades relacionadas com o terrorismo» ou « encorajar a realização ou a preparação de tais actos» ou ainda favorecer aquele «que tenha a intenção de o fazer».
Como se vê a lei não se refere a actos definidos, mas pune a ajuda a pessoas que sejam simplesmente suspeitos de acções ou de intenções ligadas ao terrorismo. Esta noção é indeterminada e subjectiva. O seu âmbito de aplicação é muito largo, quase ilimitado e totalmente incontrolável. O que é uma actividade ligada ao terrorismo? Será, por exemplo, alojar pessoas que mais tarde sejam suspeitas de participar ou de ter a intenção de participar em acções terroristas e que são designadas como terroristas, ou de fazer parte de um comité de apoio a prisioneiros políticos?
A reacção da Câmara dos Lordes foi algo embaraçante para o governo inglês. Rejeitou, à partida, o projecto de lei considerando-o como um atentado às liberdades. Mas acabou por o aceitar após trinta horas de debates e após ter sido introduzida uma alteração mediante a qual as medidas de controle teriam de ser tomadas com o aval de um tribunal. A Câmara Alta conseguiu ainda que seja introduzida uma cláusula (sunset clause) de revisão ao fim de um ano, pelo que a lei será de novo sujeita à discussão daqui a um ano, em Julho de 2006. Os trabalhos de uma comissão independente, encarregada de acompanhar a aplicação da lei, deverão servir de base aos futuros trabalhos parlamentares.
Mesmo se a decisão de colocar alguém sob controle caiba ao ministro do Interior de acordo com um tribunal, garantia judiciária obtida por pressão da Câmara dos Lordes, um tal processualismo nada tem a ver o procedimento judicial clássico que garante os direitos da defesa. Ora, ali a defesa não tem acesso ao dossier que contém os dados recolhidos pelo que não nenhuma possibilidade de contestar aqueles elementos.
Os únicos a terem acesso a esses dados são o juiz e os «advogados especiais» designados pelo Ministro do Interior. Este últimos ficam encarregados de transmitir o pontode vista da defesa, sem fornecer a esta os elementos de «prova» recolhidos e sem lhe dar possibilidade de exercer o contraditório. A decisão é tomada sem que haja qualquer pessoa incriminada. As medidas poderão ser adoptadas com base em informações fornecidas por um serviço de informações, que pode ser exterior ao Reino Unido.
Aquando das discussões na Câmara dos Lordes, o governo inglês tinha aceite que a acusação não poderia usar de elementos obtidos com o recurso à tortura. Todavia, o governo parece não ter desistido de utilizar tais informações recolhidos por via daqueles métodos. O jornal The Independent do passado 11 de Março referia-se a declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros dizendo que, apesar da « tortura ser completamente inaceitável, o país não pode ignorar as informações obtidas por este método pelos americanos, sobretudo se a vida de 3.000 pessoas estiver em jogo».
The Prevention of Terrorism Bill 2005 surge após um acórdão emitid em 16 de Dezembro de 2004 pelo Tribunal de Apelação da Câmara dos Lordes. A mais alta instância judiciária britânica considerava ilegal e contrária à Convenção Europeia dos direitos do homem a detenção ilimitada, sem inculpação, de estrangeiros suspeitos de actividades terroristas. Considerava também como discriminatória a distinção entre estrangeiros e nacionais.
O acórdão não tinha poder vinculativo. O governo podia não segui-lo. Acontece que este acabou por considerar ser esta a melhor altura para legitimar a generalização de disposições de excepção ao conjunto da população. The Prevention of Terrorism ACt 2005 apresentava-se assim como um texto não-descriminatório pois se refere indistintamente aos estrangeiros como aos nacionais.
Esta lei acaba com um sistema duplo de organização jurídica: Estado de Direito para os cidadãos nacionais e pura violência sobre os estrangeiros. A supressão do Habeas Corpus generaliza-se pois para toda a população. Entramos num estado de excepção generalizado.
Graças ao acórdão do Tribunal de Apelação da Câmara dos Lordes emerge claramente a oposição entre uma definição clássica do estado de excepção, defendida por aquele Tribunal, uma decisão limitada no tempo e objectivamente definida, e aquela noção defendida pelo governo inglês que pretende instalar uma suspensão indefinida e incontrolável das garantias constitucionais. O acórdão afirma que a incarceração, ilimitada e sem julgamento, que é autorizada pelo Terrorism Act 2001, está em contradição com o Artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que garante a liberdades das pessoas.
O Tribunal de Apelação acrescenta ainda que as derrogações previstas ao Artigo 5º, que estão circunscritas às situações de guerra ou de urgência que coloquem em perigo a vida da nação, não são aplicáveis à presente situação. Para aquele Tribunal o Estado de Excepção está limitado no tempo. Visa enfrentar um perigo iminente ou a circunstâncias excepcionais que devem estar objectivamente determinadas.
O Tribunal de Apelação opões à argumentação aduzida pelo Ministro da Justiça para o qual uma situação de urgência não é necessariamente temporária e pode prolongar-se por muitos anos. Ao poder excetivo caberia proteger a população pelo que não lhe caberia respeitar a «imposição de limites temporais artificiais» aos procedimentos de excepção.
Exigindo e acabando por introduzir uma cláusula de revisão ao Prevention Security Act 2005, fazendo com que a lei tenha de ser avaliada daqui a um ano, a Câmara dos Lordes mantêm a lei dentro do quadro formal de um estado de excepção, uma vez que estas de medidas poderão ser derrogadas s naquela data. Por seu lado, o governo, que não queria fixar qualquer limite temporal já que a luta anti-terroirista é concebida como uma guerra de longo prazo contra um inimigo multiforme, não desiste da sua tese.
Dúvidas não restam que esta lei confere ao Ministro do Interior os poderes de um magistrado. Uma pessoa é designado como terrorista não por via de um julgamento, mas através de um certificado assinado por um representante do poder executivo, o qual não é obrigado a justificar em nenhum momento a sua decisão que recai sobre simples suspeitos. Nem sequer serão necessários dados objectivos para servir de base à decisão, uma vez que tais dados se manterão em segredo. Bastará que a autoridade administrativa diga que os possui e que tal declaração seja corroborada por um tribunal. Ora que garantia de controle judicial poderá haver quando não há possibilidades para a defesa fazer valer os seus direitos, incluindo o de saber por quem é acusado? Que independência do poder judicial poderá haver quando num processo de decisão não existam meios para verificar as informações que lhe são fornecidas nem os meios de prova?
Esta lei representa, sem dúvida, mais um passo no desmantelamento de um regime que se baseou na separação dos poderes e na garantia das liberdades individuais.


Texto de Jean-Claude Paye, sociólogo francês, e publicado na edição de 14 de Abril do jornal Le Monde.