A grande ruptura com a corrente geral da música americana dá-se depois da Segunda Guerra Mundial, com os músicos do «bebop» - Charlie PARKER, Thelonius Monk, Dizzy Gillespie e outros. A sua particular maneira de «africanizar» o jazz afro-americano - através da acentuação dos polirrítmos contrastados, a desvalorização da melodia e aumento da vocalização do saxofone – não representa apenas uma reacção ao «swing jazz»dominado pelos brancos e obcecado com a melodia; era também uma resposta musical criativa a uma mudança nas sensibilidades e humores da América Negra. Pela sua mestria e virtuosidade, os músicos do bebop exprimem o aumento das tensões e das frustrações, enfim, de todas as emoções de uma população que se torna reivindicativa ainda que continue temerosa.
Já não é hoje em dia, mas nessa época o bebop era uma música popular, cantarolada nas ruas pelos engraxadores e dançada nas comunidades negras urbanas. Tal como Thomas Pynchon, estes músicos evitavam a publicidade. E tal como os artistas do fim do século XIX tinam igualmente uma atitude radicalmente não conformista, não raras vezes mal compreendida, mas que se resumia numa famosa expressão: «Ouçam ou não a música, há sempre troça da grande». Ou seja, para eles, em virtude da origem negra da sua música, os negros nunca deixariam de os ouvir, ao passo que os outros só com um certo esforço conseguiam ouvi-la.
O bebop teve uma curta duração uma vez que se transformou progressivamente no estilo «cool» do início dos anos 50, mas deixou uma marca impagável na música popular afro-americana. Apesar do ascendente de artistas cool como Miles Davis ( o do início de carreira), John Lewis, nos negros, e de Chet Baker e David Brubeck nos brancos, a inspiração dos blues espirituais afro-americanos (sempre bem viva no eterno grupo de Count Basie) rapidamente se misturou com os sons de Charles Mingus, de Ray Charles e dos Jazz Messengers de Art Blakey, com o seu bebop hard que nos levaria à era do «soul» e do «funk»
Os anos 50 a maior parte dos Negros escutavam semanalmente música espiritual e «gospel» nas igrejas.Com o afluxo dos Negros aos centros urbanos o sentido profano e, com ele, a atracção pelo dinheiro impregnou um tipo de música ao mesmo tempo não-religiosa e não-jazz.Por uma parte, sob a influência de John Coltrane, Miles Davis, Ornette Coleman…, o jazz tornou-se numa espécie de música de «avant-garde» clássica snob – que era o que os seus fundadores detestavam. Por outro lado, as Igrejas negras denunciavam a «música do diabo» ( tradicionalmente, o blues) de forma que a música religiosa negra se marginalizava cada vez mais. Estavam reunidas as condições para uma música popular que não era nem jazz ne gospel: a soul music.
Esta era mais que um gospel secularizado ou um jazz funkizisado. Era sobretudo uma forma particular de africanização concebido para seduzir as massas negras que têm o hábito de se reunir para dançar e tocar música. A «soul music» era uma aplicação populista do bebop que visava despertar nos Negros uma consciência racial, graças à sua rica herança musical. Os dois principais artistas da soul – James Brown e Aretha Franklin – reuniam numa mesma partilha p povo da cidade e da província, o sub-proletariado e os tranbalhadores, os crentes e os não crentes. Só os Negros da classe média e a maior parte dos Brancos o rejeitou.
Permanência do Blues espiritual
Com o boom dos nascimento e o crescimento dos negócios entre os Negros, tornou-se evidente que havia um mercado para uma indústria do disco negro.Quando em 1958, Berry Gordy, operário de cor na Ford em Detroit, criou a marca Motown, a música popular negra pôde dar uma grande passo.
Motown, centro da música popular afro-americana nos anos 60 e inícios dos 70, teve um imenso sucesso. O génio musical de Stevie Wonder, Michael Jackson e Lionel Richie, os dons de escrita de autores como Smokey Robinson, Nicholas Ashford e tantos outros, colocaram-na muito à frente de todas as firmas que produziam música popular afro-americana.
Motown fez-se à imagem da classe de trabalhadores negros que, à época, era estável, perseverante e empenhada na ascensão social. No apogeu da sua glória, a marca produzia ritmos lentos e sincopados, e não poliritmos funky ( como James BROWN OU The Watts 103rd Street Rythm Band); formas retidas de apelo-e-resposta, e não estilos antifunários antinómicos ( como acontecia com Aretha Franklin ou Donny Hanthaway); líricas de inspiração romântica e não uma música de protesto social contra o racismo ( como a de Gil Scott Heron ou de Archie Shepp). Não obstante, Motown manteve com persistência e garra, dentro dos movimentos do blues e dos espirituais afro-americanos. Mas à medida que conhecia o sucesso comercial e alargava a sua audiência junto dos Brancos, Motown começa a perder terreno entre os Negros. Confrontava-se ainda com um sério desafio sobre duas frentes musicais – as do «funk rápido» e a do «soul mellow». Com o aparecimento nomercado de Kunkadelic e de Parliamente, de George Clinton, afirma-se uma uma nova vaga de «funk»: o «technofunk». Nunca os negros tinham escutado vozes tão voluntariamente deformadas, nem sequer conheciam efeitos rítmicos em contraponto, filtrados através de instrumentos electrónicos. As canções de Kunkadelic, I wanna Know if it’s Good to You, Loose Booty, Standing on the vergeof getting it on ressoavam como uma música revolucionária aos seus ouvidos.
No começo dos anos 70, a música popular negra assume entoações um pouco mais políticas. Assim por mais espantoso que possa parecer, a febre política do fim dos anos 60 não tinham suscitado reacções marcantes da parte dos músicos populares afro-americanos, à excepção de Say it Loud, I’m Black and I’m Proud, de James Brown. Com a intensificação da Guerra do Vietname (mais de 28% das vítimas americanas eram Negros), a cultura da droga expande-se ao mesmo tempo que os eleitos negros aumentava. Registos como Ball of Confusion, dos Temptations, Give More Power to the People, dos Chi-Lites, Funky President (people it’s Bad), de James Brown, e Fight the Power, dos Irmão Isley, testemunham um interesse acrescido pela vida pública e um certo sucesso político dos Afro-americanos.
Este interesse teve a maior ilustração no maior álbum editado pela Motown: JWhat’s going on de Marvin Gaye. Fiéis à suas rizes religiosas, músicos e escritores negros populares traduziam as suas preocupações em termos moralistas, divorciados das realidades políticas concretas.
A grande mudança dá-se em 1975. Pela primeira vez, o «funk rápido» substitui o «soul mellow» à cabeça do cartaz. Com a voga da música de dança non-stop nas discotecas nos começos dos anos 70 e o declínio que se seguiu da «slow danse» a favor do «soul mellow», a música de dança negra conquista um lugar proeminente na música popular afro-americana. As músicas a um tempo fraco («upbeat») e sensuais de Barry White, as síncopes repetitivas de de Brass Construction, o funk de Jersey, característico de Kool and the Gang, e o «chic Chic» de Nile Rogers e Bernard Edwards foram as respostas exemplares à voga do disco. Entretanto, a grande novidade produzia-se em 1975 quando George Clinton e William «Bootsy» Collins lançaram os álbuns Chocolate City e Mothership Connection, de Parliament.
Apoiando-se directamente em Funkadelic de Clinton, por exemplo, e até com os mesmos músicos, Parliament inaugura a era do «technofunk» negro, encontro criativo entre o movimento de blues espirituais e os instrumentos mais sofisticados da tecnologia moderna.
Produto do génio de George Clinton, o «technofunk» marca a segunda grande ruptura dos músicos negros com a corrente geral da música americana. Tal como aconteceu com o bebop de Charlie Parker, ele dá um carácter especificamente africano e tecnológico à música popular afro-americana na base de polirrítmos sobre polirrítmos, ausência de melodia e partes cantadas deformadas, com efeitos electrónicos bizarros. Primo direito do bebop, o «technofunk» exacerba e acentua sem pudor o carácter negro da música negra, naquilo que ela tem de mais irredutível, de mais inimitável e único. Com Funkadelic e Parliament o «technofunk» afirma-se como expressão característica da música popular negra pós-moderna; com ele, o movimento dos blues espirituais pode prolongar-se no reino universal do ordenador e até ao estádio hedonista da sociedade capitalista americana. Mas a sua atracção não se limitou a este aspecto. Conseguiu ainda revigorar a classe média Negra politizada que atravessava uma profunda crise de identidade mas também a dos trabalhadores, recém chegados dos «ghettos» recheados de blues, os pobres desejosos de evasão transcendental e os que se encontravam na escala social mais baixa e que dependiam da droga.
Em 1978 a capa do álbum de Funkadelic, de George Clinton, representava os Negros de todas as origens sociais em vias de levantar a bandeira da libertação afro-americana (cores vermelhas, negras e verdes) com um R & B impresso em cima, R & B que não significava Rhythm and Blues mas antes Rhytm and Business. À maneira tradicional do nacionalismo negro patriarcal, o interior do álbum vinha com a imagem de uma bela mulher negra, nua, estendida sobre as costas, simbolizando a fonte biológica e a coluna vertebral social da nação negra. Aconteceu ao «technofunk» o mesmo que ao bebop: teve curta duração. A suas características africanas e tecnológicas diluíram-se rapidamente em contacto com outras correntes musicais não negras, como por exemplo, o «freakazoid funk» de Prince e dos Midnight Star de Minneapolis.
Assinalam-se depois de 1975 outras tendências: a invasão dos músicos de jazz de vanguarda, a ascensão fulgurante de Michael Jackson ( ajudado por Rod Temperton e Quincy Jones) como artista solo, o regresso vivificante dos «gospels» e a exuberância do rap.
O álbum de Miles Davis Bitches Brew de 1970 tinha mostrado já a influência do soul no jazz, mas por volta dos fins dos anos 70, a chegada de verdadeiros músicos de jazz – especialmente de George Benson, Quicy Jones; Herbie Hancok e Donald Byrd – foi um acontecimento espantoso que traduz a vitalidade e o vigor das origens no seio de uma sociedade e de uma cultura americana e capitalista: o seu sucesso legitimava a música das massas negras.
Reafirmavam, no fundo, a visão original dessa grande figura revolucionária do jazz que foi Louis Armstrong. O talento de Michael Jackson ( Off the wall,1979; Thriller, 1983) teve a particularidade de combinar o estilo vedeta de James Brown, a intensidade lírica e afectiva de smokey Robinson, a sedução transracial de Dionne Warwick e o «technofunk» agressivo, ainda que moderado, dos irmãos Isley. Sobre este aspecto, o artista ultrapassa de longe os seus contemporâneos. É o motor da sua geração.
Num outro plano, a explosão do «gospel» deve-se em parte à crescente força do movimento Pentecostista na comunidade religiosa negra. Mas também à saída em 1972 do duplo álbum Amazing Grace onde James Cleveland e Aretha Franklin cruzam os seus talentos.Os álbuns superbos Take me back de Andae Croch, LOve Alive de Wakter Hawkin ( o irmão de Edwin) e Love Alive II só lhes dão razão.
Mas o movimento mais importante aparecido depois de 1979 foi, sem dúvida, a música rap negra, que já era tocada há anos nas ruas dos «ghettos» ou nos intervalos dos concertos negros. Em 1979, Sylvia Robinson, auotra principal das canções do grupo de música «soul mellow», The Moments, decide registar e lançar Rapper’s Delight, de Sugarhill Gang de Harlem. Poucos meses depois as produções rap enchiam as lojas de discos em todos os Estados Unidos.
Com o aparecimento de artistas rap mais sofisticados, como Kurtis Blow, Grandmaster Flasch e Furious Five a música tornou-se mais original e as canções mais próximas da vida do «gehtto» negro. Ilustram este facto os discos The Breaks e 125th Street, de Kurtis Blow, e The Message e New York, New York, de Grandmaster Flash e Furious Five.
Por sua vez, e depois do «bebop» e do «technofunk», a música rap negra testemunha bem uma mudança de sensibilidade e de humor nos Negros norte-americanos. Com efeito, ela acaba por «africanizar» a música popular – acentuando os polirrítmos sincopados, a expressão vernácula da linguagem e a expressão sensual de uma forma refinada e directa – enquanto que a sua virtuosidade não está tanto na técnica quanto na rapidez e na riqueza da fala comum da rua.
Neste sentido, e tal como com o «bebop» e o «technofunk», o rap presta-se dificilmente à reprodução por músicos não-negros, mesmo se ele suscitou bastantes imitações. Porém, ao contrários dos outros dois, o rap é sobretudo a expressão musical de um grito de desespero levado ao paroxismo para invocar os mais deserdados, um grito que reconhece e afronta abertamente a onda de crueldade criminosa e de desespero existencial nos «guettos». Desta vez trata-se de um forma de expressão que toca classes específicas onde a dimensão utópica foi reduzida ao silêncio.
É necessário também referir que há no rap negro, sobretudo nos ritmos lentos ( «upbeat») africanos, aspirações utópicas sem as quais não há luta, sem esperança, nem sentido. Mas esta expressão coexiste ao mesmo tempo com a expressão lírica do desespero dos oprimidos. Sem dúvida que os ritmos funk têm principalmente uma função ritual: é uma música para a distensão nos «boums» e nas danças.
Em suma, até os ritmos trazem as marcas dos fenómenos que pontuam a vida dos negros norte-americanos: os efeitos lentos, mas destruidores, sobre as classes negras mais desfavorecidas, da recente evolução da sociedade capitalista americana, e a incapacidade dos negros pobres a unir os seus recursos para sobreviverem. Isto é sobretudo válido para os jovens: a taxa de suicídio nos Negros, nas camadas entre os 18-30 anos, quadruplicou em vinte anos; neles, o homicídio continua a ser a principal causa de morte; mais de 50% das suas casas são geridas por jovens mulheres abandonadas e vítimas de abusos e violências; nas prisões a população negra é esmagadora.
Cornel West
(reprodução e tradução de um texto publicado no Le Monde Diplomatique de Novembro de 1983)