Texto de reflexão para activistas pouco teóricos
Originalmente publicado no “Libera”, boletim do Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres
Libera, boletim informativo do Círculo de estudos libertários Ideal Peres – texto publicado no nº 112, Maio-Junho/2002
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As tradições revolucionárias sempre contaram ,para a sua fixação na memória social, com imagens de eventos, insurreições e levantamentos de rua. Dispomos desses fragmentos, devidamente acompanhados por propostas políticas, e que ajudam na formação de uma identidade ou “etnia ideológica” onde cabem não apenas os fenómenos com maior visibilidade mas também as propostas mais consequentes.
Após o Maio de 68 e, especialmente, com a ruína e queda do triste espectáculo circense-inquisitorial de má memória da antiga URSS, nos inícios dos anos 90, as esquerdas caíram numa aparente letargia. A tais factos se aplicou, para além de uma transitória farsa nipo-americana anunciando o fim da história, uma roupagem intelectual que se convencionou chamar pós-moderna.
O prefixo “pós” deste rótulo identitário sugeria a superação de uma realidade “moderna” e a sua substituição por uma nova fase de relativismo revestida de presságios de uma liberdade radical e de cidadania global. Esta evolução não tardou em revelar as duas faces bastante familiares ao mundo que acabava de ser exumado por força dos “novos tempos”.
Se, por uma lado, o pós-moderno, na sua acepção virulentamente liberal, lançava as necessidades das pessoas para o arbítrio do mercado e reforçava aquela particular relação global baseada na ética do lucro e das lógicas competitivas do mundo dos negócios; por outro, uma vertente de “esquerda”, ancorada em valores éticos diametralmente opostos aos liberais, buscava, também no relativismo, um modelo explicativo para a “nova” realidade.
Nesta última vertente de pensamento, influenciada também pelo espírito do tempo, podemos encontrar uma variada gama de teorias que, em maior ou menor intensidade, nutriram-se do património político forjado pelos anarquistas nas décadas anteriores ao fenómeno pós-moderno. Uma grande amálgama uniu, pelo menos tacticamente, situacionistas, pós-estruturalistas e libertários profundamente desconfiados das agremiações partidárias. A bandeira do anti-autoritarismo, tão coerentemente empunhada pelos bakuninistas, durante a Primeira Internacional, pareceu fornecer um ponto de consenso mínimo aos insubmissos “náufragos da modernidade”.
Partindo do pressuposto que a pós-modernidade, no seu sentido mais restrito, é má conselheira da revolução, torna-se necessário toda uma profunda discussão em torno dos problemas contemporâneos que afectam o anarquismo. Na verdade, os anarquistas carecem de fóruns onde se proceda a uma exaustiva discussão teórica em que possam amparar as suas atitudes públicas e as suas opções privadas.
As manifestações de rua, em que se destaca Seattle, deram ao anarquismo uma visibilidade incomum nos últimos anos. As vagas de jovens trajando de negro empunhando as emblemáticas bandeiras vermelhas e negras não deixam dúvidas acerca da participação significativa do pensamento libertário nas manifestações antiglobalização.
Acontece que, apesar de algumas tentativas em sentido contrário, os orgãos de comunicação social burgueses têm tido uma grande sucesso quando descrevem toda essa recente história do anarquismo, mais até do que os próprios protagonistas. Estimulados pelas imagens e pelos apelos sensacionalistas desses media, muitos jovens engrossam as passeatas antiglobalização motivados mais pela adrenalina, na busca inconsciente de um “ritual de passagem” (da adolescência - Nota do Tradutor), do que propriamente por uma atitude reflectida. Procedendo dessa forma, bem se pode dizer que, como num fenómeno de retroalimentação, uma boa parte desses activistas que engrossam as manifestações são, na verdade, recrutados pelos media burgueses e não pelo espírito libertário que deveria determinar o movimento.
Uma tal situação, caso não seja encarada com seriedade e muita reflexão, pode vir a transformar um movimento vigoroso em mais uma peça publicitária com fôlego e prazo de validade limitado. O abandono de uma atitude consequente e a sua substituição por um hedonismo pragmático servirá para a emergência de novos comportamentos e novas estéticas mas não para a construção de uma sociedade realmente diferente. O crescimento numérico das manifestações só será acompanhado do seu correspondente qualitativo se houver muito trabalho e organização. Caso contrário, estaremos a reforçar o estereótipo, disseminado principalmente pelo marxismo ( e pela ideologia dominante – Nota do tradutor), segundo o qual o anarquismo é coisa vaga e intuitiva.