19.1.05

As auto-estradas: linhas da palma da mão ou tatuagens da ditadura do homem sobre a terra?

(texto de Vandana Shiva, publicado em zmag.org)


As auto-estradas tornaram-se na identidade distorcida da Índia contemporânea ao criarem raízes no coração do imaginário da Índia radiante (Índia Shining).

O primeiro-ministro indiano foi citado ao ter declarado:
«As auto-estradas são como as linhas da palma da mão. Há uma linha do destino que ligará Srinagar a Kanyakumani. Não demorará muito a hora em que poderemos sair de Kanyakumani e chegar facilmente a Srinagar.»

A redefinição da actual Índia pressupõe o esquecimento da Bharat, a Índia autêntica ( o nome oficial da Índia é Bharat Garanajivá). Escrever o nosso destino no cimento é apagar o destino do nosso solo, da nossa terra e da nossa ecologia.

Na Índia consideramos as nossas montanhas e os nossos rios como as «linhas da palma da nossa mão». São uma parte intrínseca da ecologia e da geografia da nossa terra-mãe: são, no fundo, os nossos doadores e os nossos receptores.

As auto-estradas não são, pois, as linhas da palma da mão, são antes como que tatuagens, marcas negras impostas na paisagem por efeito de decisões externas, um desenho que centraliza e exclui, um projecto que já fora utilizado, em outras épocas, por Hitler, para controlar o destino dos alemães. O carácter violento de um tal desenho, imposto a partir do exterior, ficou simbolizado no assassinato de um engenheiro, Dubey, que tentou denunciar e tornar pública a corrupção nos contratos de construção das auto-estradas, promovidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional.

Nós estamos intimamente ligados à nossa terra, aos nossos rios e montanhas. Foi a terra que moldou o nosso destino. E é através dessa união que nós nos unimos, enquanto civilização, desde Cachemira até Kanyakumari.

As fontes dos afluentes do Ganges são os «Char Dhams» ( Char Dham é uma expressão que inclui os quatro templos mais venerados da Índia). A população cruza o país em peregrinação até aos Himalaias, onde se encontra Yamunotri, Gangotri, Kedarnath e Badrinath. Nunca ninguém precisou de auto-estradas para que as pessoas do sul pudessem fazer essa peregrinação; eram suficientes os laços sagrados com as nossas montanhas e os nossos rios. Aliás, a peregrinação ganhava valor justamente pelo facto das pessoas fazerem-na a pé. A Índia sempre valorizou a «Padyatra» ( a marcha a pé).

A marcha de Gandhi foi uma Padyatra. O movimento Chipko ( movimento de resistência contra a destruição das florestas da índia, como fonte de recursos vitais, nos anos 70 e 80) difundiu-se a partir das montanhas dos Himalais por meio de Padyatras. Ainda hoje em dia, milhares de pessoas caminham com o objectivo de levar para casa «Gangajal» ( a água sagrada do Ganges), nas festas de Shivrathri ( a grande noite de Shiva). A maioria das mulheres das zonas rurais da índia costumam ir a pé buscar folhagem, lenha e água. Tais caminhadas serão cada vez mais longas à medida em que cada vez mais árvores serão cortadas, e menos água será encontrada, por causa do cimento e do alcatrão que as auto-estradas irão trazer.

A substituição, no nosso imaginário, dos nossos grandes rios sagrados pelas auto-estradas, assim como a troca da nossa união com a terra sagrada, com as suas montanhas e florestas, pelas ligações rodoviárias de alcatrão e cimento, vai mudar a ecologia da Índia, a sua cultura e a sua singularidade, e tudo isto só para adoptar o modelo ocidental de desenvolvimento obsoleto, fora de moda e insustentável pelo seu altíssimo custo social e ambiental.

Tagore recorda-nos que a Índia é diferente porque é uma «Aranya Sanskriti», isto é, inspira-se nas suas florestas e nos seres vivos, enquanto as características do ocidente derivam de tijolos e argamassas mortos.

E Gandhi escreveu:
« A civilização moderna procura aumentar os confortos do corpo, contudo, fracassa miseravelmente nisso… frente a uma civilização dessas, o que devemos é ser pacientes, porque ela inevitavelmente se autodestruirá… apesar de não haver limite para as vítimas que serão imoladas no seu altar. Os seus efeitos letais levarão as pessoas a lançarem-se nas suas chamas, acreditando que tudo isso é muito bom».
A Índia é acusada de que seu povo é incivilizado, ignorante e estúpido, o que significa uma acusação contra aquilo que constitui a nossa fortaleza. O que nós comprovamos e defendemos não nos deve fazer mudar. Há muita gente que dá conselhos à Índia, mas ela permanece inalterável. É nisso que consiste a sua beleza. Isso constitui a âncora de nossa esperança.
A nossa peculiaridade civilizadora de deixar uma pequena pegada ecológica no planeta está sendo apagada pelo afã de imitarmos o ocidente industrializado, usurpando o espaço ecológico dos outros seres, das comunidades rurais e tribais e dos pobres das cidades.
As auto-estradas e os automóveis são o símbolo cultural mais radical do desenvolvimento não sustentável e da exclusão ecológica.
As nossas estradas acolhiam as vacas, os cavalos, os camelos, os elefantes e os carros. A cidade de Dehli anunciou que, no fim de 2004, as suas vias de comunicação serão interditas para as vacas". Antes disso, foram proibidos os "rickshaw" ( os arrinhos tipicamente orientais puxados por uma pessoa, como meio de transporte tradicional para passageiros).
A cultura do automóvel e das auto-estradas são o símbolo das culturas totalitárias, as quais negam às pessoas alternativas mais sustentáveis e equitativas de mobilidade e transporte.
Para ir de Kanyakumari à Cachemira, a Índia dispõe da maior rede ferroviária mundial. Apesar disso, a propaganda dos projectos rodoviários faz crer que a ausência de rodovias implica que o povo da Índia não tem possibilidade de locomoção. O nossos dirigentes estão cegos frente à experiência do ocidente, onde foram abandonados modos de transporte mais sustentáveis e convenientes para as pessoas, optando-se pelo transporte rodoviário. Na Alemanha, o transporte rodoviário é responsável por 91% da poluição atmosférica, 64% da poluição acústica, 91% do desaparecimento de terras cultiváveis, 56% das despesas de construção e manutenção e 98% dos acidentes.

O transporte rodoviário é 8 vezes mais poluente, 10 vezes mais destruidor de terras e tem uma propensão para causar acidentes 20 vezes maior que o ferroviário. O transporte rodoviário causa 17% da contaminação por CO2, responsável pela instabilidade climática. Não obstante estarem cientes desses inconvenientes, os governantes da Índia vão escolher a mais obsoleta e custosa forma de transporte como símbolo da "Índia Radiante".
A auto-estrada ("sadak") fez parte da propaganda eleitoral do BJP ( Bharatiya Janata Party, partido do Primeiro Ministro) para as eleições legislativas. Levando-se em conta o número de anúncios publicitários na campanha para as eleições gerais, o povo da Índia pode ter certeza de que as rodovias e os automóveis serão apresentados como os símbolos de uma nova e feliz Índia. A auto-estrada tornou-se o Bharat Jodo Pariyojna (projecto de rodovias do Primeiro Ministro (PMBJP). As agências de publicidade conseguiram que a palavra auto-estrada seja equivalente a BJP, na cabeça das pessoas.
Porém, é preciso aceitarmos as lições que nos dá a história e que as outras sociedades nos oferecem. Temos um século de experiências sobre a violência social e ecológica provocadas pelo automóvel, o que nos permitiria escapar à sua escravidão. E dispomos das lições da Alemanha nazista, onde as auto-estradas foram desenhadas como forma de controle centralizado, de fascismo e de autoritarismo, e nunca como exemplo de liberdade humana e democracia.
Como Wolfgang Sachs mostra em sua agora clássica obra "For the Love of the Automobile" (Pelo Amor do Automóvel):
"As ditaduras não se mantêm somente pela força, como também pelo apelo emocional. As ilusões do homem médio constituem não só uma parte da mentalidade da época quanto de explicação para a Gestapo. A história desse entusiasmo durante o fascismo alemão, contudo, está ainda por ser escrito. Mesmo assim, quem quiser escutar escondido a conversa do bar da esquina e descobrir o consentimento dos de baixo com relação à opressão daqueles que mandam, terá que criar todo um capítulo sobre a política de motorização dos nacional-socialistas."
O populismo do Primeiro Ministro Vajpayees com o projeto de suas "adoradas" auto-estradas apresenta um claro paralelismo com as imagens do populismo de Adolf Hitler e a auto-estrada hanseática Frankfurt-Basel. A lei automobilística do Reich, que tornou possível o desenvolvimento das rodovias, retirou a competência dos estados federados e a concentrou-a no poder central.
As auto-estradas exclusivas para carros acabaram com o pluralismo e a democracia do transporte. Um documento daquela época indica o campo como o principal obstáculo para o automóvel, porque:
"espera-se compartilhar as ruas com carroças puxadas a cavalo, ciclistas e pedestres… o conceito moderno de tráfico está concentrado na introdução de uma rede de auto-estradas especiais ao serviço dos viajantes de longas distâncias e para uso pelos automóveis mais rápidos (para as quais são construídas)…" (Wolfang Sachs, p.49).
O monocultivo da mente, que destruiu a biodiversidade das granjas e florestas, e que alimentou os ódios entre as comunidades, está-se estendendo agora para a paisagem e os caminhos da Índia. O proprietário de automóvel e o viajante de longas distâncias é um cidadão privilegiado. O carro de bois, a bicicleta e o caminhante serão postos de lado pelo automóvel, que até agora era somente uma entre as várias formas de transporte. A composição diversa e pluralista da Índia está sendo remodelada de uma forma muito simples, através do projecto rodoviário do primeiro ministro. Hitler também deu impulso às "auto-estradas nacionais", com o objectivo de criar uma Volksgemeinschaft (uma sociedade nacional) unida como "um só povo, um só Reich, um só Führer", porém isso implicava erradicar a diversidade, a autonomia e a descentralização. Os nazis alemães serviram-se das auto-estradas para "moldar o povo alemão de forma unitária". Os actuais governantes da Índia também estão utilizando as auto-estradas como meio e metáfora para converter a Índia num monólito.
Segundo dados oficiais de 2004, da Índia:
"Entre 1947 e 1997 (em 50 anos): foram construídos somente 556 km de auto-estradas nacionais para 4/6 pistas de carros, ou seja, 11,12 km por ano.
A partir de 1997: com o PMBJP, estão a ser construídas 24.000 km de auto-estradas nacionais para pistas de 4/6 carros, o que significa 11 km diários, empregando 5.000 pessoas diariamente."
A propaganda dos nazis serviu-se das mesmas medidas para atingir os seus objectivos. A construção das auto-estradas foi o maior projecto de obras públicas, com 6.000 km previstos, e cerca de um milhão de empregos criados em consequência das políticas de motorização. A propaganda da "Índia Radiante de Alcatrão" só encontra paralelo com a euforia do Reich alemão. Os nacional-socialistas apresentaram a construção das auto-estradas na sua dupla condição de êxito técnico e de feito cultural. Como declarou Fritz Todt, inspector geral das auto-estradas alemãs, depois da construção das primeiras mil milhas:
"Uma vez mais resulta motivo de orgulho ser um construtor de auto-estradas. O Reich alemão está levando às auto-estradas um nível de beleza e extensão como nunca tinha sido alcançado na história da civilização humana…"
Pois bem, o Governo da Índia está tentando superar o Reich alemão.
A Índia do século XXI tem que ser construída sobre o legado de Gandhi, não sobre o de Hitler. Ela precisa evitar a repetição dos erros ecológicos e sociais dos países industrializados do ocidente. A Índia ofereceu alternativas civilizadoras que se baseiam na sustentabilidade e no pluralismo. Gandhi escreveu:
"Deus queira que a Índia não adopte nunca o modelo de industrialização ocidental. O imperialismo económico de um único ínfimo reino insular (Inglaterra) mantém hoje o mundo aprisionado. Se uma nação de 300 milhões de habitantes adoptasse o mesmo tipo de exploração económica, deixaria o mundo como se tivesse sido arrasado por uma praga de gafanhotos."
Hoje somos milhões e milhões de pessoas e pedem-nos para adoptar a forma de vida e o sistema económico de 20% da humanidade, a qual dispõe de 80% dos recursos do mundo. Se 200 milhões de cidadãos ricos da Índia quiserem viver segundo o estilo dos seus homólogos ocidentais, 800 milhões de seus irmãos e irmãs estarão privados de seus recursos hídricos, de suas terras, de suas casas e de seu sustento.

O projecto das auto-estradas não vai unir a Índia, mas dividi-la. Vai criar um apartheid automobilístico, no qual os ricos vão guiar em alta velocidade por auto-estradas que atravessam povoações e florestas, que obrigam a demolir casas, destruir plantações e arrancar árvores, que despojam do seu sustento e forma de vida os seus irmãos e irmãs. As auto-estradas são cemitérios de cimento e alcatrão que estão a enterrar os nossos solos, as nossas aldeias e as nossas liberdades.