Excertos do Poema “O Charlatão” de Sérgio Godinho
Montagem de fotografia e palavras retiradas do excelente blogue:
Um blogue sobre os movimentos sociais, a ecologia, a contra-cultura, os livros, com uma perspectiva crítica sobre todas as formas de poder (económico, político, etc)
Um destaque especial vai para o filme-documentário «Lip, L'imagination au pouvoir»
Lip, l’imagination au pouvoir
Lisboa: 03/10 - 19h30 - Cinema São Jorge
Almada: 12/10 - 17h00 - Auditório Lopes Graça
Coimbra: 17/10 - 21h - Teatro Gil Vicente
Faro: 01/11- 19h00 - Cinema SBC
Realização: Christian Rouaud Argumento: Christian Rouaud
Estreia em França: 21/03/07
Resumo
A história começa a 17 de Abril de 1973, na fábrica de relógios LIP, em Palente, na periferia de Besançon. Outrora uma empresa próspera, a LIP encontrava-se então nas mãos de novos proprietários que planeavam um plano de despedimentos dramático para os operários. A resistência organizada pelos trabalhadores deu origem a um movimento de luta incrível, que durou vários anos, mobilizou multidões em França e na Europa, multiplicou as acções ilegais sem ceder à tentação da violência, apoiando-se na democracia directa e numa imaginação incandescente!
Excertos do livro retirados do blogue:
http://frenesi-livros.blogspot.com/
[...] reflectindo sobre as consequências da Revolução Russa e sobre a agitação social e política em Portugal, Fernando Pessoa escreveu umas linhas a respeito das capacidades subversivas da classe proletária: “Entre o trabalhador do cérebro, como lhe chamam, e o trabalhador do braço não há identidade nem semelhança: há uma profunda, uma radical oposição. O que é certo é que entre um operário e um macaco há menos diferença que entre um operário e um homem realmente culto. O povo não é educável, porque é povo. Se fosse possível convertê-lo em indivíduos, seria educável, seria educado, porém já não seria povo. O ódio à ciência, às leis naturais, é o que caracteriza a mentalidade popular. O milagre é o que o povo quer, é o que o povo compreende. Que o faça Nossa Senhora de Lourdes ou de Fátima, ou que o faça Lenine, nisso só está a diferença. O povo é fundamentalmente, radicalmente, irremediavelmente reaccionário.” [Páginas de Pensamento Político, I, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1986] [...]
Há pois algo de doentio na ideia de se classificar como meras perversões o queixume, o ódio, o rancor, a amargura ou o ressentimento, sobretudo entre as classes populares. A mensagem assim transmitida consiste em considerar a contestação, a revolta ou a recusa das situações ditas “normais” como actos puramente negativos, quase como patologias, sem nisso se detectar a manifestação (sem dúvida por vezes deformada) duma atitude crítica, duma irreverência contra o sistema.
Na verdade, trata-se de uma abordagem muito espalhada entre as elites lusitanas desiludidas pelo povo. João Medina – que tinha levantado a questão da ausência de utopia na cultura portuguesa [Revista de História das Ideias, vol. II, Lisboa, 1978-1979] – voltou posteriormente à caricatura do Zé Povinho para chegar à conclusão de que todos os momentos de revolta popular são redutíveis a irracionais impulsos de raiva. O historiador reconhece que há nesta figura “um autêntico cepticismo acrata, espontâneo e radical”, mas caracteriza-o como “não submetido ao crivo da reflexão filosófica” [Zé Povinho sem Utopia, Câmara de Cascais, 2004].
Na melhor das hipóteses, o anarquista não passa de um bombista. E sendo este estereótipo desprovido de utopia, é porque a utopia se revela de todo estranha à história do povo explorado. “As nossas revoluções históricas são carnavais disparatados, uma espécie de entrudos de aldeias dos macacos em que o delírio e a mais desbragada incapacidade de avaliar as dimensões do real verdadeiro são substituídos por um lirismo alucinante de crianças tontas.” Eis-nos assim perante o retorno pós-moderno à ideia do macaco-proletário de Pessoa – agora misturada com o realismo de Cunhal.
Quanto mais a vida se vai extinguindo na alienação, mais se vão apagando as referências ao passado, os marcos exteriores, o que provoca uma confusão e uma perturbação mental generalizadas. A vida actual carrega um passado em ruínas e o futuro anuncia-se como um presente sem porvir. O problema não está tanto no “medo de existir” [José Gil, Portugal Hoje: o Medo de Existir, Lisboa, Relógio d’Água, 2005], mas antes na imposta perspectiva duma existência sem sentido, consubstanciada no inultrapassável horizonte do capitalismo. Assim se concretiza a fatalidade de que falava Antero de Quental [Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, Porto, 1871]: a submissão às forças dominantes da história. Aqui como noutras paragens, aqui mais ainda do que noutros lados, a democracia mercantil instala os seus balcões no campo da derrota, sobre os dilacerados sonhos de um mundo novo.
[...] Mas o que caracteriza o actual sistema democrático português é a especificidade da sua gestação: com efeito, este sistema não se construiu contra o antigo regime fascista, construiu-se, pelo contrário, no processo de “restabelecimento da ordem, contra um movimento social nitidamente subversivo”. Com uma característica particular: “o regime democrático procurou legitimar-se, paradoxalmente, perante a revolução e não perante a ditadura” [Luís Trindade, História, n.º 65, Lisboa, Abril de 2004]. O autoritarismo arrogante hoje exprimido pelas forças políticas democráticas – em particular pelo Partido Socialista – está profundamente enraizado nesta gestação.
Para além destes traços específicos, o que inegavelmente ficou comprovado na história da sociedade portuguesa contemporânea é a capacidade da democracia representativa para esmagar qualquer outra ideia de autonomia e de emancipação social, para aniquilar o imaginário de um outro mundo possível.
Deste modo, o que havia de melhor e de universal na mentalidade portuguesa foi sendo reduzido para reavivar os atavismos de subserviência, o provincianismo tacanho, os traços egoístas do “cada um por si”, característicos das sociedades pobres. Apesar disso, porém, no “recinto acanhado e quase sepulcral” de que falava Antero, hoje equipado com Tvcabo e telemóvel, ainda é possível descobrirmos vestígios dos valores emancipadores do passado. Encontram-se na palavra e nos escritos de algumas pessoas, nos resíduos da mentalidade popular que resiste ao discurso alienado da mercadoria, na experiência dos movimentos de revolta contra o obscurantismo dos poderosos. Enfim, na vitalidade das raras lutas que afrontam a lógica neo-liberal do capitalismo contemporâneo. [...]
O resto não passa de folclore local, dum cenário kitsch da formação capitalista europeia em gestação – cenário onde se agitam marionetas políticas que subempreitam fielmente as directivas de Bruxelas, fingindo governar.»
[...] Alimentar e gerir as ideologias do medo encontra-se hoje no âmago de qualquer política – o securitário é o “social” do nosso tempo. A imigração africana, menos qualificada e a que menores salários aufere, juntamente com os seus filhos, marginalizados em massa e excluídos, dependendo muitas vezes dos magros rendimentos da “economia ilícita”, são os actores preferidos para representar o papel de “classe perigosa”. Numa entrevista ao Jornal de Notícias do Porto, o sr. [António] Costa, então ministro socialista do Interior, após algumas fanfarronadas do género “a República não pode aceitar a violência de minorias” ou “vamos aumentar a presença policial nas praias”, sublinhou que não frequentava essas praias perto da capital – por estarem excessivamente poluídas. À demagogia juntou-se assim o desprezo de classe. Aos pobres as praias poluídas, frequentadas por virtuais gangs que furtam telemóveis; aos ricos, incluindo os socialistas, os golfes regados por já cansados lençóis freáticos. Vendo bem, assim o temos de entender, trata-se de um problema de pobres que tomam banho em águas poluídas e que se roubam entre si. Se isso puder justificar uma política securitária, tanto melhor.
Para além de tais imposturas, há hoje um efectivo receio nos círculos do poder, entre as classes abastadas. O espectro da “classe perigosa” está de volta a este país onde os possidentes têm tido a vida facilitada desde que foram esmagadas as aspirações revolucionárias de 1974-1975. [...]
Em Portugal, a actual crise social está a gerar uma nova violência, mais aberta, mais explosiva. Não anuncia horizontes novos, sendo certo porém que já acabou o tradicional brando consenso que fez a felicidade da burguesia portuguesa e dos seus políticos. O desastre económico e social, a rápida urbanização, o desemprego endémico e o reatar da emigração com novas formas precárias aceleram a desagregação dos laços familiares, o desenvolvimento da família monoparental. Estamos perante uma modernidade urbana onde os homens estão ausentes, onde os imigrantes substituem os emigrantes, onde as crianças são entregues a si mesmas e à solidão. A violência interiorizada, abafada, expressa no sofrimento da célula familiar, contra as mulheres e as crianças, escapatória tradicional entre os pobres, prossegue agora a par de uma nova violência, que se manifesta abertamente no terreno social, com diversas formas de agressividade e de afrontamentos, de delinquência. Como é óbvio, os valores da emancipação social não estão presentes nestas atitudes, muitas vezes simples reflexo da barbárie imposta pelo sistema. O niilismo dos ricos tem eco no niilismo dos pobres. Seja porém como for, é forçoso reconhecer que as taras da sociedade já não estão encerradas atrás das paredes do lar, como ocorria na antiga sociedade portuguesa.
[...]
A longa experiência colonial da sociedade portuguesa, com o seu somatório de horrores, está completamente ausente da memória oficial, da transmissão da história. Na melhor das hipóteses, presta-se homenagem pública à branda visão duma colonização paternalista ou à reivindicação de uma pretensa “cultura lusófona” partilhada com os antigos colonizados. Perante isto, como podemos nós espantar-nos com o facto de todas as questões em torno da guerra colonial continuarem a ser assunto tabu?
Seria errado dizer que as feridas da guerra cicatrizam lentamente; na realidade, é a própria ferida que se vê ignorada. Há alguns anos, sobreviventes do exército colonial criaram uma associação para fazer reconhecer oficialmente o seu sofrimento material e psíquico, com o desejo declarado de nomear os responsáveis por uma empresa bárbara que causou quase catorze mil mortos e trinta mil feridos nas forças armadas, bem como centenas de milhares de vítimas nas populações colonizadas. Num país que então tinha nove milhões de habitantes, quase milhão e meio de homens passou pela experiência da guerra, sofrendo ainda hoje de problemas psicológicos – o chamado “stress de guerra” – centenas de milhares desses ex-combatentes.
Esses antigos militares depressa se viram atolados no pântano das diligências, das promessas politicóides e de uma burocratização paralisante. E tais questões, consideradas sensíveis, foram relegadas para o esquecimento. Rever as circunstâncias históricas do horror que marcou a história recente do país leva-nos necessariamente a sublinhar a natureza colonial do Estado-nação – a famosa “Índia” de que falava Antero – e a desvendar a essência bárbara e sangrenta da “missão civilizadora” em que se alicerça o mito nacionalista português, fulcral na produção e reprodução da “identidade nacional”. [...]
Recorrendo aos arquivos disponíveis da antiga polícia política do salazarismo – que estabeleceu uma rede de informadores tão vasta como a própria Stasi da Alemanha de Leste –, Dalila Cabrita Mateus [in A PIDE / DGS na Guerra Colonial, 1961-1974, Lisboa, Terramar, 2004] sublinha o papel determinante dessa instituição repressiva na condução da guerra, as relações que tinha com os serviços secretos estrangeiros e, por último, o modo como o sistema democrático pós-salazarista protegeu os seus antigos agentes. Em 1954, quando na metrópole a repressão dos militantes e das correntes da oposição se encontravam “no bom caminho”, a polícia política salazarista deslocou metade dos seus efectivos para as colónias, onde se tornou uma segunda administração. De início ocupada a perseguir os militantes nacionalistas, quando foi declarada a guerra, a PIDE mostrou-se particularmente eficaz, desempenhando um papel essencial de informação no desmantelamento das redes da guerrilha anticolonialista. Foi então que essa polícia política revelou plenamente o seu carácter terrorista, conduzindo operações especiais de comandos, praticando a tortura, levando a cabo massacres em grande escala, organizando o assassinato de pessoas seleccionadas, criando e administrando campos de concentração. A guerra colonial foi o momento histórico distintivo em que o fascismo português mostrou a sua verdadeira natureza, totalitária e bárbara.
[...] Após a derrocada do antigo regime e do sistema colonial, os principais chefes e responsáveis da organização terrorista do Estado nas colónias encontraram formas de escapar, mais facilmente ainda que os agentes da PIDE que operavam em Portugal, ajudados como foram pelos serviços secretos de outros Estados e protegidos pela hierarquia militar portuguesa, inclusive pelos chefes golpistas agora vestidos de democratas. É inútil salientar que nenhum desses criminosos foi julgado e que nem sequer foram presos. A maior parte vive hoje com tranquila reforma de funcionário público. Outros, situados em posições cimeiras na hierarquia e directamente envolvidos nos massacres, desapareceram para sempre sem deixar rasto, como nos bons romances policiais.
Tais coisas revelam, uma vez mais, os elos que unem o antigo poder autoritário e a nova democracia parlamentar, ilustrando a continuidade burguesa da vida política. Em 2005, a nomeação dum antigo importante apparatchik salazarista para ministro dos Negócios Estrangeiros do governo socialista [Diogo Freitas do Amaral] simbolizou a conclusão do trabalho de revisionismo histórico empreendido desde há anos pelas diversas oficinas de propaganda do novo regime democrático. E explicam também a reticência destes últimos em relação a todo o trabalho crítico relativo à memória histórica. [...]
Não é pois de espantar que as obras que abordam estas questões esbarrem no silêncio cortês dos media e sejam relegadas para o fundo das gavetas pelos profissionais das ideias politicamente correctas. Foi o que aconteceu ao livro de Dalila Cabrita Mateus, A PIDE / DGS na Guerra Colonial, 1961-1974, que aborda um aspecto particular dessas bárbaras páginas com que se encerrou a epopeia sangrenta do colonialismo português. [...]»
[in A Memória e o Fogo. Portugal: O Cenário Invertido da Eurolândia: Lisboa, Letra Livre, 2008]
Ver ainda:
http://www.boaventuradesousasantos.pt/