Ruralidade: uma espeleologia da alma portuguesa
Autora: Natália Correia
É tempo de abrirmos a arca da cultura que nos é congénita, fazendo falar os símbolos de uma ruralidade que nos desvenda a razão de sermos uma cultura predominantemente fêmea.
Pulverizadas que são as últimas migalhas da expansão, é na cultura do sedere português que devemos procurar indicações para nos entendermos com as nossas raízes. Chega assim a altura de não disfarçarmos com cosméticos europeizantes, que os nossos deputados são a província, os nossos ministérios são a Beira, as nossas revoluções são a Maria da Fonte, os nossos heróis populares são a mesma Maria da Fonte e a Padeira de Aljubarrota, a nossa paz institucional é o pasmo domingueiro no largo da aldeia, a nossa igreja é o abade ( que bem haja!) com santa gula e hierogamia, o nosso génio romanesco é, de Camilo a Aquilino, um caminho rústico de comezainas de orelheira e pançadas de amor com remate lógico de morte com congestão amorosa e a própria urbandade queirosina é a náusea desabafada em ironia pelos ridículos de um Portugal feito cidade que só nas serras é rudemente autêntico.
E tome-se, ainda, esses ridículos como o caricato de uma caricatura do figurino urbano, pose mal entrajada de uma ruralidade que invade a cidade indefesa (por insuficiências de sólidos fundamentos burgueses) para se defender da rusticidade que a ocupa.
Esta realidade nada tem de desprimoroso. Grotesco será não assumi-la. Direi mesmo que, numa tendência moderna de regionalização como processo de absorção das demasias mórbidas do urbanismo, a ruralidade é antes uma disponibilidade para um contorno cultural, dialecticamente apreciável no difuso do planetarismo.
Será pois tempo de abrirmos a arca da cultura que nos é congénita, fazendo falar os símbolos de uma ruralidade que nos desvenda a razão de sermos uma cultura predominantemente fêmea. Não se escandalizem as petulâncias da virilidade portucalense com esta relação que estabeleço entre o rural e o feminino. Qualquer aldeão abaixará a grimpa da viripotência a quem pretender o contrário, remetendo para a patroa o atino em assuntos grados da vida.
O propósito destas palavras é o interesse com que li o livro de Moisés Espírito Santo, «A Religião Popular Portuguesa». Nas explorações sócio-antropológicas do autor realizadas no Norte do país é relevante reter os substratos politeísta e matrista ( a religião de Mãe tem sempre o carácter teodemocrático de politeísmo) que, cristianizados, persistem no culto dos santos e no marianismo populares. Do mesmo modo que o patrismo olímpico, para se sobrepor à religião arcaica da Mãe, tolerou a persistência dos «mistérios femininos», a patriarcalidade judeo-cristã impõe-se, transferindo as divindades do pré-cristianismo para os santos e a Grande Mãe partenogenética para a Virgem Maria. A pujança desses velhos ritos e símbolos, sob o verniz da sua cristianização relacionam-se com comportamentos que só no baptizado, na comunhão, no enterro e às vezes no casamento, permitem às estatísticas garantirem um país esmagadoramente católico.
Mas, seguindo o trilho percorrido por M. Espírito Santo, a feminização dos santos popularmente cultuados indicam-nos o matronato da divindade feminina. Uma emasculação que encontramos em todos os mediadores da religião da Mãe. Quer nos mitos da antiguidade como o de Diana de Éfeso e o da Deusa Síria; quer nos ritos de fertilidade ainda praticados nas sociedades ditas primitivas em que a efeminação é requisito da ordenação sagrada a exemplo dos sacerdotes dos índios, Pueblos do Novo México que são chamados «mujerados».
Primazia do feminino
Esta primazia do princípio feminino agora observada por M. Espírito Santo na sua «espeleologia da alma popular» ( no que segue Roger Bastide) é enriquecida por uma colecção de símbolos e de formas rituais que claramente nos situam num sistema matrista:o culto das pedras vaginais, a serpente ginocrática, a forma matriarcal da circularidade da aldeia, a lunaridade, a santificação das águas (uterinas), o sacerdócio feminino das «mulheres de virtude» e muitas outras práticas e crenças da mitologia popular ligadas a uma provedoria materna que actua do nascimento até à morte. Desde a Mãe marianizada que protege a maternidade, à Mãe ctónica em cujo seio o filho é reintegrado. Representações simbólicas de uma realidade social que contrasta com o patrismo urbano. E ao estabelecer este confronto, M. Espírito Santo tem um achado particularmente brilhante. É a referência iconográfica da Imaculada Conceição, minguada de formas, tipificando a filha e a esposa obedientes de uma sociedade aburguesada pelo mercantilismo. O cunho patrista do culto desta madona oficializado no século XVII confirma-se finalmente no facto de ela não trazer consigo o filho que, no mundo burguês pertence ao pai.
Bem diferente é a iconografia das Senhoras Camponesas que, dotadas de formas planturosas herdadas da robustez das divindades arcaicas femininas, não só seguram o menino como, na sua exuberância sumária, representam a fonte do leite que nutre a comunidade.
Deste confronto colhe concluir-se que, num país onde a burguesia é uma desvocação que se ilude em empresas descontínuas de curto alcance, a religião da Mãe é bem mais idónea à nossa cultura do que o símbolo madonal veiculado pela ideologia burguesa da autoridade paterna.
Retenha-se ainda outro traço vincadamente matricial recolhido por M. Espírito santo: a magia. Na importância atribuída aos meios mágicos prevalece o princípio do oficiante ser um agente activo, e não passivo, como acontece nas religiões do Deus que se afastou da natureza, já que esta é consubstancial à Deusa Mãe. Compreende-se, assim que, em oposição ao absolutismo uniteísta que caracteriza a religião do Pai, voltada para o transcendente inapreensível, a magia inserida na religião da Mãe subentenda o poder de produzir a acção divina, a liberdade de agir sobre a vontade das forças que regem a natureza e mesmo de modificá-la, pela eficácia do rito mágico. Esta crença mo valor da influência da vontade humana sobre os desígnios divinos, antípoda da passividade da fé no Deus absoluto do sistema patrista, completa-se na feição teodemocrática do pluriteísmo transferido para o culto dos santos. A relação mãe-liberdade, aliás patente na característica orgiástica dos ritos matristas e no comunitarismo da Aldeia-Mãe ( depois Mãe-Pátria) não foi certamente negligenciada no quadro de comportamento que Rattray Taylor estabeleceu para o ciclo matriarcal no qual inscreve a democracia política contrapondo-a ao autoritarismo político que atribui ao regime patriarcal.
Fórmulas encantatórias
Ainda no domínio dos ritos mágicos, não é menor subsídio para a «espeleologia» da lama popular português a crença na eficácia da palavra nas fórmulas encantatórias. A sacralização da palavra nos ensalmos ou encantações não me parece de subestimar na verbosidade dos portugueses que no seu mais falar do que agir denotam uma confiança residual na virtude encantatória da oralidade. Esta cultura que é característica das culturas femininas, quando depreciada na óptica do princípio masculino recebe o estigma de tagarelice considerada superficialidade de mulheres. Já do ponto de vista do princípio feminino a magia verbal que subjaz à crença no poder persuasivo da palavra é implicitamente estimada na desconfiança inspirada pelas pessoas de poucas falas. Antipatia proverbialmente posta em metáforas animalistas tais como «calado que nem uma mula» ou «cão que ladra não morde».
Encontro finalmente no estudo de M. Espírito Santo importantes coonestações, no campo da ciência social, de pesquisas e alvitres que tenho arriscado sobre a génese matrista da cantiga de amigo. Apoiada pela etnografia e estudo comparado com a mitologia, simbólica e ritos de outras religiões populares vinculadas à Mãe, foi-se-me afigurando cada vez mais nítida a matriarcalidade da cantiga paralelística. Os elementos que juntei, desde o esquema tautológico da estrofe de proveniência mágica, até aos tópicos da «árvore do amor», da «fonte de amor» da propriedade materna das ondas ( que persiste no ritual do banho santo), a inexistência do pai e muitos outros dados inequivocamente matriarcais, encontram-se nos materiais coligidos por M. Espírito santo na sua «Religião Popular Portuguesa».
Não se espera, bem entendido, que este livro comova os chamados agentes culturais da superestrutura que, entre as graçolas industrializadas, de Andy Warhol e o snobismo leitor de «O Nome da Rosa» ( tudo do lá de fora) não têm tempo para ouvir camponeses. Ouvi-os, porém, Teixeira de Pascoais que escreveu o «Marânus», parido pela Mãe da Montanha e vestiu-se Fernando Pessoa de «guardador de rebanhos?, ligando os sentidos às falas naturais da Terra Mãe,mpara que a bandeira do seu género não ficasse a meia haste. E quem duvidar deste selo de idoneidade na obra poética dos nossos maiores, releia Miguel Torga que faz versos, e mesmo prosa com torrões da Terra Mãe.
Pense-se, sobretudo, que a estabilidade emocional da nossa sociedade, atingida por uma massificação espúria à sua realidade anti-burguesa, não dispensa o fantástico e o irracional que têm as suas fontes no matrismo da sua congénita ruralidade.
Neste vazio em que caminhamos para um futuro temerário, a Religião Popular Portuguesa de M. Espírito Santo aconselha-nos precisamente a escutar o apelo da Mãe rústica que, mesmo indumentada de homem, é o seio que nutre a nossa cultura.
Autora: Natália Correia
Texto publicado no nº 98 de 22 de Maio de 1984
do JL, Jornal das Letras, Artes e Ideias