Os beatniks surgem nos Estados Unidos no final da década de 50, tendo como pano de fundo o «maccarthismo». Rapazes e raparigas – jovens, muito jovens – que recusam o império do terror, da produção, do consumo.
À guerra fria, à chantagem da bomba atómica, à miragem da opulência, ao modelo do homem do «sistema», respondem com um «não» que tanto tem de instintivo como radical.
São poetas, romancistas, dramaturgos – todos eles heréticos. Não acreditam no modelo da racionalidade científica que lhes é proposto pela Universidade, pelo mundo dos negócios e pela classe política. Pelo contrário, preferem a abordagem espiritual, a visão, a imaginação. Não acreditam no homem produzido em série, moldado pelas sociedades de progresso e de destruição, tanto a Leste como a Ocidente: optam pelo indivíduo, pela integridade humana, pela protecção a todo o ser vivo. Não acreditam na diferença entre o sistema capitalista e o sistema socialista, já que para eles os modos de produção, os meios de controlo, a ordem científico-burocrática não conhecem fronteiras geográficas nem ideológicas. Um exemplo pessoal –embora esta geração só queira julgar com base na experiência – que funciona igualmente como um sintoma: Ginsberg é expulso de Cuba por ter defendido a causa homossexual, sendo posteriormente acusado de droga, em Nova Iorque.
Ingénuos, utopistas, irresponsáveis – que dizer destes indivíduos que encarnam o espírito de Maio? A rejeição do racionalismo não provocará a erupção do irracionalismo delirante, a espiritualidade, o misticismo desmobilizador? A valorização do indivíduo não implicará a ruptura com o mundo, o autismo colectivo, o isolamento na fruição de um prazer egoísta? Não servirá a identificação do funcionamento social no Leste e no Ocidente para travar as lutas, encobrir o inimigo principal e encorajar o «statu quo»? Existem alguns riscos, é um facto. Há ainda o perigo dos desvios de que falaremos adiante. Mas, para além destes riscos, no interior dos próprios riscos, subsistem os preciosos germens da subversão. O grito de Allen Ginsberg é também o de todo o indivíduo que tenta resistir à ameaça de normalização. O silêncio de Burroughs é também a arma do guerrilheiro que se prepara para fazer descarrilar o comboio. As palavras proferidas por Kerouac são exactamente aquelas que milhões de homens e mulheres ousarão dizer e repetir, ao longo dos dez anos seguintes.
A explosão dos anos 60 é impensável sem o contributo dessa geração que prepara o terreno para uma certa «revolução cultural» e para algumas «práticas de rupturas» sociais. O essencial é destruir a consciência propagada pelos meios de comunicação social de massas. Criar uma nova consciência. Pôr termo ao primado do factor económico, do centralismo, da hierarquia. Foi dentro deste espírito que se travaram no século XX, nos Estados Unidos ( e noutros países) lutas sem precedentes contra o racismo ( Movimento dos Direitos Cívicos), contra a desigualdade ( Movimento dos Direitos Sociais), contra o sistema de reprodução ( Movimento Estudantil) e até contra alguns aspectos do imperialismo ( Movimento contra a guerra do Vietname).
1960: O que diziam os heréticos
Ginsberg: «O nosso passado recente é a história de uma vasta conspiração para impor à humanidade um nível único de consciência mecânica e para destruir todas as manifestações exclusivas da nossa sensibilidade. A supressão da individualidade contemplativa é praticamente total»
Burroughs: «É preciso eliminar a máquina, agora que ela nos prestou o serviço de mostrar os perigos do controlo. Sou decididamente hostil à Ciência, porque sinto que a conspiração está prestes a impor o universo científico como o único universo real. Os cientistas são os drogados da realidade. Necessitam sempre de exercer o seu domínio sob qualquer coisa de real.»
Corso: «Recusamos a enfiar o colete-de-forças dos princípios morais legados pelos nossos pais, feito à base de fragmentos e de restos, cosido com a superstição de uma mitologia primitiva. Somos muitos. Faremos ouvir a nossa voz, com vista a alterar as leis que governam os nossos pretensos países civilizados. Por todo o lado, essas leis implantam polícias secretas, campos de concentração, de opressão, de escravidão, guerras e mortes.»
A Revolução Cultural
Ginsberg: «Aproxima-se uma verdadeira revolução nas relações humanas. Os indivíduos devem tomar de assalto os meios de comunicação e os postos de controlo. As técnicas utilizadas pelos poetas para transformar o mundo das artes podem facilmente ser aplicadas às centrais telefónicas, aos postos emissores de rádio, ao serviço de controle de informação, aos centros de escuta, ás mais ínfimas ramificações da vasta rede que cobre com a sua teia de aranha, as partes mais civilizadas do Mundo.»
Snyder: «A sabedoria é o conhecimento do espírito de amor e clareza que se esconde por detrás das angústias e das agressões suscitadas pelo ego. A meditação é a penetração na psique para que cada um possa constar tudo isso. A moralidade consiste em exteriorizar essa sabedoria na vossa forma de viver, através do exemplo pessoa e de uma acção responsável, a fim de atingir finalmente a verdadeira comunidade de todos os seres humanos.»
Ginsberg: « A humanidade precisa de um tipo de revolução que se proponha recuperar as zonas cerebrais inutilizadas, alargar o domínio da consciência, torná-la, assim, capaz de comunicar mais profundamente do que no nosso actual sistema de comunicação pré-histórico e estabelecer uma forma de contacto cerebral com todo o universo.»
Burroughs: « É preciso fazer a revolução cultural. A emancipação sexual é um elemento com o mesmo peso que a luta contra a censura. O sistema não pode deixar de endurecer e tornar-se fascista ou, pelo contrário, ceder cada dia mais terreno.É aí que devemos intervir. Tudo o que posso dizer é que, no curso da História, as armas mais poderosas foram sempre as novas formas de consciência e que a revolução fundamental só pode ser o resultado de uma evolução. A inquisição e o poder da Igreja durante a Idade Média não foram derrubados por meio de uma acção revolucionária directa. O seu domínio desfez-se porque foram ultrapassados pela evolução da consciência humana.»
1980: o ataque de todos os ângulos contra a tradição libertária
O elo de ligação entre estes opositores escritores ou militantes – empenhados em percursos múltiplos, paralelos, e até mesmo compartimentados, reside numa certa identidade de análise: a opressão tem múltiplas formas, sendo irredutível a uma única dimensão; é de natureza política, policial, económica, social, cultural e ideológica, etc. O objectivo não é a tomada do poder do Estado –o que asseguraria da melhor maneira a renovação das elites – mas a criação de uma nova sensibilidade, só ela capaz de transformar as estruturas fundamentais. O ideal da Revolução ( que, segundo a expressão de Burroughs, não é senão «circum-volução» nas suas encarnações históricas) dá lugar à vontade concreta de emancipações de carácter imediato, plural e quotidiano. Lutas desencadeadas, não à escala nacional ou internacional, mas local. Uma estratégia de conjunto baseada em tácticas descentralizadas.
Muito há a dizer acerca dos limites, da ambiguidade, das contradições de semelhante projecto. O balanço crítico está por fazer. Contudo, não é um balanço dessa natureza que hoje assistimos, antes à deformação metódica de uma concepção do mundo e à desvalorização sistemática de uma sensibilidade que, a julgar pela violência das suas reacções, incomoda a fracção mais «pura» da esquerda, tanto em França como nos Estados Unidos.
A rejeição da visão libertária, uma das mais importantes tradições populares, é sintomática do crescimento do vasto movimento conservador que atravessa o mundo em crise. Assistimos ao reforço do autoritarismo de direita e do sectarismo da esquerda.
Não é de espantar o ataque feito à direita. A tradição libertária é anti-autoritária, anti-hierárquica, anti-centralista, enquanto a tradição conservadora dominante, quer em França, quer nos Estados Unidos, é autoritária, hierárquica e centralizadora: o federalismo americano corresponde ao centralismo francês e o recente descomprometimento do Estado, de um e do outro lado do Atlântico, não constitui qualquer ameaça à realidade do poder do Estado. Nos anos 60, a tradição libertária contribui marcadamente para o forte arranque democrático caracterizado pela explosão das reivindicações igualitárias, mas também pelas várias modalidades de reivindicação: mobilização de massas, acções directas, lutas conduzidas à margem dos partidos, dos sindicatos e de outras organizações institucionais.
Ao encorajar a participação directa, estes meios fazem vacilar o sistema representativo tradicional, minam o poder do Estado, aumentando a crise de autoridade. Torna-se, então, necessário travar esses «excessos de democracia» e, parafraseando Samuel Huntington, um dos ideólogos do neo-conservadorismo americano, estabelecer «os limites desejáveis à extensão indefinida da democracia política». O equilíbrio não assenta na restauração da autoridade através de «hierarquia, da avaliação e da riqueza»?
A aliança dos neoconservadores e dos neo-estalinistas
As críticas às ideias e ao pensamento libertário dos beatniks provêm quer da direita neoconservadora quer da esquerda clássica neo-estalinista.
A descentralização,o anti-estatismo e o associativismo são conceitos de esquerda. E existe, sem dúvida, uma corrente minoritária de direita favorável a estes princípios, mas tal será suficiente para ignorar a poderosa tradição anarco-sindicalista norte-americana ( a realidade das suas lutas, a importância das suas vitórias) e anular os laços entre a tradição libertária e a tradição marxista?
Costuma-se também dizer que as práticas libertárias dos anos 60 são recuperáveis, permitindo até aos liberais o reforço de uma ordem baseada na permissividade, na modernidade e no mundialismo. Os libertários seriam, portanto, os aliados objectivos dos liberais! É evidente que, hoje em dia, o controlo social depende mais do que nunca do alargamento dos espaços das pseudo-liberdades e Marcuse foi o primeiro a denunciar as inúmeras manifestações de «tolerância repressiva». Mas como é possível aceitar a identificação caricatural das práticas libertárias dos anos 60 com os seus desvios, levados a cabo, nos anos 70, pelos estrategos de um reformismo new-look?
Aliás, como não detectar nas teorias desses defensores do Estatismo uma contradição – ingénua ?, demagógica?, táctica? – no reconhecimento de determinadas formas de descentralização? Finalmente como escapar à inquietação provocada pela retórica dos centralizadores, que mascaram o seu autoritarismo sob a capa do discurso da regionalização?
A nova sensibilidade, representada pelos libertários beatniks, provém dos Estados Unidos, estando, portanto, marcada pelo estigma do capitalismo. A sua principal manifestação seria a «nova esquerda americana» dos anos 60, caracterizada pela sua afeição apolítica, que exerce atracção junto dos grupos sociais «ideologicamente mais fracos» recém chegados à política. Lutar contra esta sensibilidade libertária seria assim lutar contra o imperialismo americano e a favor da verdadeira política de massas. Contra o mundialismo dos capitalistas e a favor do nacionalismo dos trabalhadores. O Estado nacional, democraticamente reestruturado, aparece como o único obstáculo à recomposição do capitalismo… Eis o que defendem os corifeus da Esquerda pró-estatal. Estadistas de todos os países, uni-vos! Nessa luta sem tréguas, levada a cabo contra a tradição libertária, acabamos por perguntar a nós próprios se o conluio tão estrondosamente denunciado entre libertários e liberais não se situará preferencialmente entre os liberais neoconservadores e os neo-estalinistas.
Os desvios dos anos 70
Os riscos de desvio da ideologia libertária são, contudo, reais, sobretudo numa época marcada pela desvalorização sistemática da coisa pública e pela sobrevalorização do domínio privado. Assiste-se à aceleração de um duplo processo histórico: à queda do homem público e à ascenção do homem privado. A erosão do sector público está associada ao aparecimento do Romantismo, que vem perturbar o equilíbrio clássico entre o público e o privado. E a exploração do sector privado está relacionada com o aparecimento de uma produção de massas destinada a satisfazer as necessidades individuais. Hoje em dia, a estabilidade social assenta claramente neste duplo movimento de desenvolvimento público e de desenvolvimento privado.
Travadas numa perspectiva de libertação global, mas a partir de práticas individuais, as lutas de emancipação inspiradas pelos libertários dos anos 60 estão longe de ter conseguido ultrapassar os objectivos meramente pessoais, de se terem conseguido organizar em acções eficazes e de terem conseguido opor uma resistência efectiva a esse vasto processo de privatização. Não é sem alguma ironia que se chega à conclusão que a luta contra o homem do «sistema» tenha dado origem a um novo modelo cultural – o de um Narciso perfeitamente mesquinho, isolado do mundo exterior ou, pelo contrário, perfeitamente integrado. E não é de todo impossível estabelecer uma filiação, degradada é certo, entre o ideal narcisista de análise de um «eu» fragmentado e o ideal «beat-nik» (Nota: segundo Norman Mailer o termo beatnik foi forjado em San Francisco e resulta da fusão de beat, expressão do jazz que significa ritmo, com o sufixo nik, que é um diminutivo pejorativo em indiche) de exploração de um espaço individual e colectivo infinito.
O exemplo do mais espectacular desvio é o de Jerry Rubin, um dos líderes do Movimento Estudantil de Berkeley, em 1965, e o principal organizador da marcha sobre o Pentágono contra a guerra do Vietname, em 1968. Presentemente, Rubin lamenta-se no mais completo delírio egocêntrico: «Durante cinco anos», recorda orgulhosamente na sua autobiografia, «de 1971 a 1975, experimentei pessoalmente EST, a Gestalt terapia, a bioenergia, a massagem, o jogging, a dança moderna, a meditação, o controle espiritual Silva, a acupunctura, a terapia sexual, a terapia reichiana, a «More House» - um verdadeiro curso de nova consciência. Aplicava-me desde as sete horas da manhã, com uma curiosidade e uma energia sem limites».
O desvio não se limita a alguns desvios. A América dos anos 70 foi contaminada por esta procura de bem-estar meramente pessoal. A tomada de consciência individual, por si e para si ( «self-awareness» ou auto-conhecimento), torna-se em pouco anos a nova panaceia nacional. O objectivo a atingir é o «contacto» consigo mesmo; a relação com o mundo, com a natureza, com os outros; a «paz interior» que isola do barulho e da fúria. Mas os promotores desta nova indústria da crença do «eu» não visam apenas melhorar a saúde individual e a qualidade de vida. Eles vêem nas suas práticas a chave do progresso social, a solução para os problemas sociais, nacionais e até internacionais. Considera que os seus métodos permitem uma «profunda politização» do indivíduo e uma abordagem mais global. É, ainda, Jerry Rubin que encarna isto ao declarar: « A visão implica a luta, e a visão psíquica, a harmonia. Em síntese, posso criar harmonia na luta e permanecer harmonioso enquanto luto.»
A questão no início dos anos 80
Os desvios da ideologia libertária são indiscutíveis. Igualmente incontestáveis são as desinformações que lhe são infligidas pelas novas ideologias autoritárias. Uma questão surge: quais as possibilidades de acção da tradição libertária no contexto da nova ordem que surge após a crise de 1973-74? NO decorrer dos anos 60, apoiada de alguma modo por um crescimento económico sem precedentes, a tradição libertária contribuiu para fazer recuar o «maccarthismo» e fazer progredir a consciência ( e, consequentemente, a condição) dos homens e mulheres. Mas qual o seu papel, num contexto de estagnação, de inflação e de desemprego, em que o centro de gravidade se desloca da esfera nacional para a mundial, das classes proletárias para as nações proletárias e em que técnicas de controlo social atingem graus de sofisticação impensáveis?
O possível impacte da tradição libertária depende da ausência de sectarismo. A nostalgia de 68 é tão absurda quanto ineficaz. A complexidade social impossibilita o recurso a simplificações e a exclusivismos. O momento já não é de certezas. A nostalgia jacobina, também ela, é ineficaz e absurda. A única conquista do poder do Estado é tão pouco satisfatória quanto a mera transformação das estruturas mentais. As tradições antagonistas devem enriquecer-se e procurar atingir um equilíbrio entre si. Estas condições prévias devem impor-se pela sua evidência.
Numa análise mais precisa e imediata, qual o contributo da leitura dos poemas, dos romances, dos ensaios da geração beatnik? Em primeiro lugar, a consciência quase profética das novas formas de controle social: é a revelação, com muitos anos de avanço, daquilo que, hoje em dia, se designa por «sociedade informatizada», «armadilhas liberticidas do computador», etc. Por outro lado, um modelo de estratégia ( contra o inimigo, utilizar a arma do inimigo ) e um registo de estratégia: a retórica, o discurso da publicidade e, contra esses discursos, a arma das palavras, a frase, o poema, a escrita. De igual forma, o sentimento de que a subjectividade não está inelutavelmente virada para si própria, mas funciona como uma condição prévia para a acção; a subjectividade pode e deve ser subversiva. Para retomar a fórmula particularmente feliz empregada por Marcuse num dos seus últimos textos, « a subjectividade rebeldes prepara um dos aspectos da libertação: o da existência de indivíduos solidários, tanto ao nível da acção como no plano da sensibilidade».
Autor: Pierre Dommerges, in Magazine Littéraire nº157, Fevereiro de 1980