13.2.06

O anarquismo profético do Prof. Agostinho da Silva ( a propósito do centenário do seu nascimento)



Passam hoje 100 anos do nascimento do Professor Agostinho da Silva (1906-1994), um dos autores mais interessantes das letras e da cultura escrita e falada em português. Estão programadas várias iniciativas, para os próximos dias e meses, a fim de comemorar a data e chamar a atenção para a figura, o valor e importância do seu pensamento.
Agostinho da Silva é certamente dos autores, juntamente com Pessoa e Teixeira de Pascoais, que mais falaram e se dedicaram a perscrutar o que é ser português. Mas, ao contrário de qualquer nacionalismo serôdio, o seu motivo de interesse é eminentemente de tipo universalista e humanista. Aliás, uma das suas frases mais conhecidas - « Só então Portugal, por já não ser, será» - revela todo a sua visão universalista que encontra em Portugal a consumação da Humanidade. Talvez não por acaso Agostinho da Silva é um biógrafo dedicado, um autor para quem a educação é um dos seus temas predilectos.

Nasceu no Porto em 1906, de seu nome completo George Agostinho Baptista da Silva, frequenta aí o Liceu e passa depois para a Faculdade de Letras do Porto, onde sob a orientação de Leonardo de Coimbra, fez parte daquela geração que esteve na origem da chamada escola filosófica do Porto. Dedicando-se mais tarde ao ensino teve, porém, a dado passo, que se exilar para o Brasil face às suas incompatibilidades para com Regime salazarista. Provavelmente vem daí a sua propensão para o nomadismo que se reflecte nas suas ideias: a vida ficaria mais empobrecida se se lhe retirasse a dimensão do imprevisto; é preciso, portanto, estar sempre disposto a partir, como um nómada.

Claro está que Agostinho da Silva é um pensador religioso, e até mesmo cristão, mas de uma forma muito sui generis, pois que se trata de alguém que nunca cultivou a dogmática eclesial, nem faz do cristianismo ortodoxo a sua doutrina. Há quem lhe aponte simpatias pelo culto do Espírito Santo de Joaquim de Flora, mas ele ao proclamar que qualquer terceira Revelação, a vir, será de carácter íntimo, algo do foro interno de cada um, afasta-se daquela identificação, se bem que nunca deixa de estar imbuído dum certo messianismo, presente quer na história portuguesa quer nas tradições de certos movimentos heréticos e revolucionários. Ele próprio anuncia o reinado do Espírito Santo para «restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos imperador».

É ele próprio que confessa: « Claro que sou cristão; e outras coisas, por exemplo, budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, por exemplo, ser pagão. ( in «Reflexões, Aforismos e Paradoxos, 1999, Brasília).

Na verdade, ele – que jamais se mostrou místico – mesmo nas suas afirmações mais transcendentais, nunca deixou de ser um racionalista, um racionalismo diverso e distinto do racionalismo comum que geralmente encontramos. Para Eduardo Lourenço, com efeito, não se pode dizer que Agostinho da Silva fosse um místico, pois tinha pela natureza e a vida uma visão naturalista:
«Não se instalou na excepção, pregou e viveu no combate à ideia de excepção, em todos os domínios, numa espécie de anarquismo profético e radioso, no fundo mais próximo de Rousseau que de qualquer figura clássica da família mística» ( Eduardo Lourenço)

De qualquer forma o seu pensamento é irredutível a um sistema ou a uma doutrina; ele preferia antes vê-lo como um movimento, uma atitude, um espírito. Mais que um revolucionário, Agostinho da Silva é, e poderá ser visto, como um evolucionário radical.
Valoriza a ciência, o método e a prática científica. Para ele a técnica é encarada como um precioso instrumento do progresso, muito embora só se for integrada numa economia cooperativa que subordine a produção e o comércio aos consumidores.
Rejeita a sociedade centrada no lucro e preconiza a simplicidade e o espírito de exigência na vida do quotidiano. As suas três principais fontes de inspiração são: a) a meditação interior; b) a convivência aberta; c) o empenhamento na acção social, predominantemente pedagógica.

Por razões diversas, explicadas em parte pelo seu pensamento paradoxal, imbuído de terminologia religiosa e de referências históricas a Portugal, já para não falarmos do género de abordagens académicas e institucionais que normalmente se debruçam sobre a obra, o certo é que a caracterização do pensamento de Agostinho da Silva é objecto de algum entorse senão mesmo de um certo desvirtuamento, quando ela teria todas as condições para ser qualificado como uma das obras mais originais e subversivas dos últimos cem anos. Bastaria, para tanto, lê-la com alguma atenção e reconhecer aí a secreta voz anunciadora da anarquia.
Transcrevamos, por exemplo, um dos excertos mais brilhantes e inconfundíveis:

«No Político distingo dois momentos, o do presente e do futuro. Principiando pelo segundo, desejo o desaparecimento do Estado, da Economia, da Educação, da Sociedade e da Metafísica; quero que cada indivíduo se governe por si próprio, sendo sempre o melhor do que é, que tudo seja de todos, repousando toda a produção, por uma lado, no , por outro lado, na fábrica automática; que a criança cresça naturalmente segundo as suas apetências, sem as várias formas de cópia e do ditado que têm sido nas escolas, publicas e de casa; que o social com as suas regras, entraves e objectivos dê lugar ao grupo humano que tenha por meta fundamental viver na liberdade, e que todos em vez de terem metafísica, religiosa ou não, sejam metafísica. Tudo virá, porém, gradualmente, já que toda a revolução não é mais do que um precipitar de fases que não tiveram tempo de ser. Por agora, para o geral, democracia directa, economia comunitarista, educação pela experiência da liberdade criativa, sociedade de cooperação e respeito pelo diferente, metafísica que não discrimine quaisquer outras, mesmo as que pareçam antimetafísicas. Mas, fora do geral, para qualquer indivíduo, o viver, posto que no presente, já quanto possível no futuro; eliminando o supérfluo, cooperando, aceitando o que lhe não é idêntico – e muito crítico quanto a este -, não querendo educar, mas apenas proporcionando ambiente e estímulo, e procurando tão largo pensamento que todos os outros nele caibam. Se o futuro é a vida, vivamo-la já, que o tempo é pouco; que a Morte nos colha e não, como é hábito, já meio mortos, aliás, suicidados. »
(Agostinho da Silva, in Reflexos, Aforismos e Paradoxos, 1999, Brasília
)

Está consciente porém das dificuldades de uma completa e perfeita anarquia, pois diz: «…é difícil imaginar que se possa algum dia ser na terra inteiramente livre.» ( in As Aproximações, 1990, Relógio d’Água), acrescentando ainda que a sociedade «…tem direitos sobre nós como seres sociais, não como homens»

A solução que ele propõe para as dificuldades da concretização e da viabilidade da anarquia está em substituir o burocrata pelo servidor público voluntário. Assim, o serviço público só seria convenientemente prestado por voluntários disciplinadamente integrados em organizações de tipo militar ( ver a esse propósito o seu livro «As Aproximações»)

Noutra altura, escreve
«O reino que virá é o reino daqueles que foram crucificados em todas a épocas, por todas as políticas e por todas as ideologias, apenas porque acima de tudo amavam a liberdade».

Ou ainda:
"O homem não nasceu para trabalhar, mas para criar."
Prof. Agostinho da Silva