25.10.06

Não trabalho, logo existo


Uma apologia do satanismo laboral

Se nos repetiram até à exaustão que não se pode viver sem trabalhar, nós preferimos afirmar que não é possível viver enquanto se trabalha. Agiremos, portanto, em conformidade.
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O trabalho é algo mais que o motor da sociedade de consumo: é também o seu melhor meio de protecção. Enquanto pomos mãos à obra, convertemo-nos nos seus mais perfeitos defensores. Desta maneira, o que tem um lugar, não o quer perder, seja à custa de pisar os seus companheiros, numa espécie de darwinismo laboral que salvaguarda os valores do capitalismo, seja estrangulando a sua própria dignidade, feita em farrapos depois de infinitos tormentos e humilhações. Por outro lado, o que não o tem, não dorme enquanto não o tiver. Enquanto sofre a penúria económica ou pelo «que dirão» os vizinhos, sentindo-se como um inútil parasita. Este compreende melhor do que ninguém que trabalhar não serve apenas para poder comprar estúpidos automóveis ou televisores gigantes, também é a condição para ser alguém. Que grande verdade: o trabalho liberta-nos…de sermos livres.
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Sim, afirmamos peremptoriamente que a oral do suor na cara é para imbecis, para autênticos cretinos.
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«Pepe é muito bom homem, muito trabalhador», dizem-nos, como se o facto de quebrar as costas todos os dias para que o seu chefe cobre mais-valias fosse uma acto honroso e gratificante… Mas que fazer? Que alternativa temos? Só chorar e patear? À parte a alteração e a transformação radical da vida não vemos outra solução, mas podemos entretanto tentar-te com a possibilidade de passares connosco ao lado obscuro e praticares o doce satanismo laboral. Já que é um facto que esta estúpida sociedade olha com desconfiança quem não trabalha, ou simplesmente despreza tão alta instituição social, propomos-te dar-lhes um motivo para temer, ser um vírus, uma pedra na engrenagem, uma dor de cabeça constante. Assim não hesites, esconde-te no anonimato e sabota o que puderes: faz perder dinheiro ao teu chefe. Destrói a reputação da tua empresa, espalhando boatos e falsos testemunhos – para além dos verdadeiros. Leva tudo o que possas e vende-o ao desbarato. Cria ratos pelos cantos. Adoece todas as sextas-feiras. Esquece-te de olear as máquinas. Abre as janelas quando chover. Escreve obscenidades na mercadoria. Utiliza bombas de mau cheiro. Mete silicone nas fechaduras. Deixa cascas de banana em frente do encarregado. Derrama dissolvente na fotocopiadora. Estraga os computadores, esconde peixe e ovos podres por todo o lado, pratica sexo nas horas de trabalho, chega tarde todos os dias, ensina mal os aprendizes…

(panfleto distribuído na manifestação do 1º de Maio de 2005, em Sevilla, e reproduzido parcialmente no nº1 do jornal PREC)

Todo o ser humano tem direito à preguiça

Declaração universal dos direitos do ser humano
( segundo a formulação de Raoul Vaneigem)


Artigo 21º
Todo o ser humano tem direito à preguiça

1. Durante séculos, o direito à preguiça foi apenas uma organização do tempo de trabalho, concedendo aos escravos o descanso necessário a uma rendibilidade acrescida. Trata-se agora de o arrancar ao princípio da exploração para o restituir ao princípio da fruição, criativa ou não. Que a preguiça se baste a ela própria e não se possa confundir com as tréguas que a fadiga concede ao corpo para restaurar a sua força produtiva.

2. A verdadeira preguiça concede ao prazer de nada fazer a graça de se aceitar sem culpa, resignação, esquecimento de si mesmo ou impotência. Da mesma maneira que o repouso e o jogo proporcionam à criança a lenta maturação em que ela se torna naquilo que é e quer ser, queremos que a letargia dos sentidos e da razão, ao contrário de gerar monstros, seja o tempo em que a vida se emprenha a si mesma.

3. A arte da preguiça consiste em afiná-la a fim de que, conciliando-se com as outras paixões, ela escape a uma proliferação que, ao disseminá-la por todo o lado, a tornaria odiosa e a destruiria. Não há nada pior do que a lassidão do ânimo. O privilégio da preguiça refinada é o de impedir a preguiça do desejo.

Comentário – Existe uma preguiça mortífera. Remete para o trabalho, serve-lhe de escape, usa o corpo e a consciência para produzir, como ele, o vazio do ser. Uma preguiça que, pronta a fazer a economia de um gesto, vai obrigar em breve a efectuar dez. Uma preguiça que se poupa ao trabalho de uma reflexão, põe-se a pensar de forma enviesada e cai na servidão e na moleza para ser apanhada na armadilha do poder. A preguiça é o triunfo da independência, e não uma cilada da sujeição

Raoul Vaneigem, in Declaração universal dos direitos do ser humano

João Santiago, sapateiro libertário


Comecei com 11 anos no ofício de sapateiro, ao pé de mestres competentes aqui de Setúbal, com os quais acompanhei até aos 21 anos. Trabalhavam em pequenas oficinas. Aos 21 anos libertei-me daquela situação e comecei a trabalhar por conta própria. Muitas coisas aprendi com eles e outras tive de aprender sozinho. Até hoje.
Depois tive na tropa e, quando sai, não havia trabalho na profissão. Entretanto já era casado…tive que ir à procura de outras coisas, mas sem gostar do que me aparecia. Assim que tive oportunidade de voltar novamente para isto, nem hesitei.. Porque os outros empregos implicavam trabalhar com muita gente ao mesmo tempo. Não sei se foi por me ter habituado a lidar com pouca gente. De início, achei aliciante. Gostei! Depois apanhei aquele período a seguir ao 25 de Abril… e foi uma situação muito complexa. Meti-me naquilo a sério, com entusiasmo. E as pessoas com quem trabalhava não sentiam as coisas da mesma maneira. Comecei a ter problemas e tive de fugir. Voltei ao meu primeiro ofício.
Claro que nessa fase aprendi muito. Aprendi a conhecer melhor as pessoas. Tinha um sonho, um sonho com o qual sempre sonhei: acreditava que, um dia, aquele sistema político haveria de cair. E a partir daí haveria um despertar nas pessoas para coisas que até aí não tinham. Foi extremamente decepcionante para mim ver que as pessoas não eram capazes de acompanhar, de fazer a leitura disso e de se lançarem na aventura de reconstruir. Portanto, fiquei desiludido. Não só pelo facto de as pessoas não terem feito o que eu sonhava, também pelo de se terem virado contra os que sonhavam assim…contra quem queria fazer as coisas. E isso atingiu o ponto de agressão, da perseguição e de outras coisas do género. Não suportei e vim-me embora.
Os sonhos que tinha vinham-me de um passado. Tive a felicidade de conhecer gente muito interessante. Coisas que são pouco conhecidas e que deviam sê-lo. Conheci analfabetos, pessoas que não sabiam ler, muito pobres, que viviam do seu trabalho e ganhavam muito pouco mas, do pouco que ganhavam, tiravam dinheiro, quotizavam-se, para comprar livros. Tinham uma noção do que lhes faziam falta. E depois havia de aparecer alguém que lesse os livros para eles ouvirem. Era pequenito, na altura, tinha para aí 7,8, ou 9 anos, já sabia ler. Esses adultos teriam já 30 e tal ou 40, talvez mais, vinham de uma escola anarco-sindicalista riquíssima – isso hoje é pouco conhecida… Então eu lia para eles os livros que eles compravam e lia outras coisas que arranjavam clandestinamente. Ainda hoje não sei como é que conseguiam arranjá-las. Nomeadamente Batalhas, o jornal A Batalha que na época saia clandestinamente. A leitura de um texto que poderia ter durado uns minutos, prendia-me ali horas. Porque eles ouviam a leitura e mandavam-me parar para comentar. Aí é que estava daqueles momentos. Foi a minha escola. A seguir comecei a entusiasmar-me pelos livros, a ler muito. Ainda hoje leio. Já menos, porque a vida não deixa. Tive a felicidade de conhecer esses e outros amigos através do pensamento. Leitura, contacto, conversação foram a minha escola. Há coisas mais importantes que o trabalho. Para mim, o mais importante é conversar e pensar. A minha formação foi e ainda hoje é isso.
Na época havia folhetos, uns livrinhos pequenitos, de gente ligada ao anarco-sindicalismo e ao anarquismo, às ideias libertárias…Havia folhetos do Errico Malatesta, do Pedro Kropotkin, de outros assim. Eles gostavam muito de ouvir essas leituras. Não sei onde arranjavam as publicações. A verdade é que as tinham. E, coisa curiosa, guardavam os livros junto do peito…Também se lia muito romance. Certos autores, estavam muito em voga: o Emílio Zola, o Vítor Hugo. Um português, o Ferreira de Castro, de quem eles gostavam muito. Conheci indivíduos desses que até iam a Lisboa para se encontrarem com o Ferreira de Castro num café…agora não me ocorre o nome do café. Era rapazinho na altura. Depois conheci outras pessoas, já mais «entradas» no movimento. Cheguei a ter reuniões com elas. Aceitaram receber-me o que, na época, era muito perigoso. Nessas reuniões, perspectivaram o relançamento do anarquismo em Portugal.
Apesar do meu gosto pela leitura, nunca me aproximei de instituições oficiais, como sejam as bibliotecas. Contactei com associações que tinham a sua biblioteca, mas foi mais uma decepção. Moro num bairro de uma cooperativa de habitação. Entrei para a cooperativa com um entusiasmo extraordinário. E depois vi no que aquilo se tornou. O mundo de hoje é para os vigaristas. A cooperativa caiu nas mãos dessa gente quesó vê dinheiro.Na cooperativa estavam previstas iniciativas para juntar amigos e familiares. Portanto, a dada altura, formei uma biblioteca quase sozinho. Mas surgiu o velho problema. Aceitei formar a biblioteca conquanto não houvesse lá muito material político partidário. Estávamos num período quente…Por causa disso, os políticos que lá estavam caíram-me todos em cima e foi o fim. Não tenho outras experiências de encontro com a leitura em lugares públicos ou associativos. Noutros tempos, a leitura fazia-se em casa das pessoas. Umas vezes numa, outras noutra, para não dar muito nas vistas de ser sempre no mesmo sítio. O que contava mais era o convívio.
Agora sou quase solitário, estou quase sozinho. Os meus amigos morreram todos e entretanto, infelizmente, não encontrei ninguém que preenchesse esse vazio. Enfim, sou conversador, gosto de conversar com toda a gente…mas aquilo que me interessa de facto parece interessar poucas pessoas. Alguns não dão grande atenção àquilo que eu digo, outros não me compreendem. Outros até nem gostam de me ouvir.
Esse mundo onde aprendi a ler, pensar e conversar morreu. Aliás a conversação é uma coisas que quase já não existe. Mesmo em família. Enfim, a verdade é que tive a sorte e a felicidade de conhecer aquela gente especial no ler e no viver.


Reprodução da entrevista realizada para o vídeo «Aprender Viver e Trabalhar» (ICE/Abril em Maio), 1997, e publicada no nº1 do jornal PREC

Ciclo Grandes Livros de Poesia


Já se iniciou o ciclo de sessões dedicadas aos grandes livros de poesia a decorrer na Fundação Eugénio de Andrade, Rua Passeio Alegre, 584, Porto, sempre às 18.30

O acesso é totalmente livre


Calendário

21 de Outubro
Cântico dos Cânticos – por José Tolentino Mendonça

28 de Outubro
Odisseia – por Frederico Lourenço

11 de Novembro
Eneida – por Maria Helena da Rocha Pereira

25 de Novembro
Divina Comédia – por Vasco Graça Moura

16 de Dezembro
Os Lusíadas – por Vítor Manuel Aguiar e Silva

6 de Janeiro de 2007
Fausto ( de Goethe) - por João Barrento

13 de Janeiro
Folhas de Relva, de Walt Whitman – por Maria Irene Ramalho

20 de Janeiro
As Flores do Mal, de Baudelaire – Fernando Pinto do Amaral

27 de Janeiro
Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke – por Nuno Júdice

3 de Fevereiro
A Terra Devastada, de T.S. Eliot – por Gualter Cunha

10 de Fevereiro
Mensagem – por Fernando Guimarães

17 de Fevereiro
Romancero Gitano, de Federico Garcia Lorca – por Pilar Nicolás Martínez

24 de Fevereiro
Vinte poemas e uma canção desesperada, de Pablo Neruda - por Albano Martins

3 de Março
A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade – por Arnaldo Saraiva

10 de Março
As Mãos e os Frutos, de Eugénio de Andrade – Rui Lage




Os Grandes Livros de Poesia
(do texto de apresentação)

São estes, mas podiam ser outros, até dos mesmos autores – ou de outros, com nomes tão sonantes como Horácio, Petrarca, Villon, Góngora, Sharkespeare, Holderlin, Kavafis, Ruben Darío, Camilo Pessanha, Ezra Pound, César Vallejo, Huidoro, João Cabral de Melo Neto, Szymborska…E não esquecemos grandes livros ou grandes nomes da poesia médio-oriental e oriental, de que trataremos noutro ciclo: poemas védicos, Mahabharata, Lao Tsu, Li Po, Omar Khayyam, Bashô, Pushkin…