6.4.06

Recordar Mário Viegas




Mário Viegas, actor, encenador e homem do teatro, leitor e um notável declamador de poesia, deixou-nos há 10 anos, mais concretamente no dia 1 de Abril de 1996. Reproduzimos abaixo um texto escrito por Jorge Leitão Ramos no Expresso em 5 de Abril do mesmo ano.

Entretanto anuncia-se a criação da Associação dos Amigos de Mário Viegas que terá a sua sede na cidade natal deste, Santarém, no Largo Ramiro Nobre. A sede da Associação será denominada Casa do teatro. A discografia completa de Mário Viegas está a ser editada.


"Quando eu morrer batam em latas", poderia ter dito, parafraseando um dos poetas que tanto amou, incitando-nos a não confundir a dor com tarefa de carpideira, a perda com necessidade de panegírico. Por mim não resisti, diante do seu féretro exposto nos Jerónimos, a lembrar-me de A Birra do Morto, de Vicente Sanches, com que inaugurou a sua Companhia Teatral do Chiado, em 1990, na Sala-Estúdio do Teatro São Luiz que agora tem o nome de Mário Viegas. Era o mesmo ambiente, as cadeiras, as pessoas em volta, a voz baixa, o cheiro morno a flores - quase que esperei que ele se levantasse, quebrando o frio do espaço e o queixume, quebrando a solidão em cada um de nós ali se encontrava, galhofando no nariz da morte, em passe de mágica, momento de teatro. Mar, por uma vez, pela última vez, a surpresa foi diversa. A voz de Mário Viegas calou-se, ficou um silêncio muito grande e não se vê quem o preencha.
Viveu muito e muito intensamente, com uma urgência sem medida. Foi actor, encenador, empresário, declamador, escreveu crónicas, traduziu peças de teatro, divulgou poetas, gravou discos, fez rádio, cinema e televisão - e sorveu a vida, em todas as direcções, às golfadas. Grandes amigos, grandes ódios, grandes sonhos. Podia ser "cabotiníssimo", como ele próprio disse do livro informe e impetuoso com que se despediu de nós em Novembro, essa Auto-Photo Biografia (não autorizada) em Formato A3, em que, "para bons entendedores", foi dando a saber que estava de partida. Um objecto comovente: terminava com uma enorme fotografia do actor, alucinado, junto a um caixão (da peça O Suicidário) e um verso terrível de Camilo Pessanha lá por cima ("Eu vi a luz em um país perdido./ A minha alma é lânguida e inerme./ Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!/ No chão sumir-se, como faz um verme").
Excessivo, colérico, apaixonado, violento e doce, actor aceso pela graça da transfiguração, pelo riso que nos divertia e desinquietava, Mário Viegas era um personagem contraditório. Nenhum outro desafiou, do cimo de um palco, os poderes e os podres, as prepotências e as hipocrisias. Mas gostava de saber que o poder reconhecia a sua arte. Não adianta dizer, agora que morreu, que era uma figura consensual da cena e do cinema portugueses - porque não era. Dividiu muito, fustigou e foi fustigado, não sabia fazer as coisas em temperatura morna, em registo de assim-assim. Há 20 anos, quando o ouvi dizer, pela primeira vez, o Manifesto Anti-Dantas numa festa do teatro em luta (na FIL), estava David Mourão-Ferreira na SEC, percebi que era um adversário temível para quem quer que se sentasse na cadeira do poder. E o seu espectáculo a solo Europa Não! Portugal Nunca!, em 1994/95, em registo de conferência de imprensa de pré-pré-candidatura à Presidência da República, tinha uma fúria de iluminado, a corrosão de uma coragem sem limites, a louca a tocante fragilidade da auto-exposição, tudo caldeado em textos das mais diversas fontes que nos faziam ir do riso absoluto à dor de alma, porque era de nós todos e de si mesmo que falava.
Não me apetece, incréu de que nunca mais ouça a sua voz ao telefone convocando-me para a estreia de uma nova peça no teatrinho do Chiado, escrever hoje a sua ficha definitiva de dicionário. Não o vou escrever afora. Mas logo no dia da sua morte ouvi dizer nas rádios e televisões que Mário Viegas tinha 47, 48 e 49 anos, que se estreara no Teatro Experimental do Porto, que se candidatara várias vezes a Presidente da República - e esses disparates factuais tê-lo-iam posto ao rubro, e com razão. Um homem, quando morre, tem pelo menos direito a evocação biográfica que esteja certa. Do que de mais peculiar Viegas tinha como actor - e de que foram marcos os espectáculos que fez a solo, Mário Gin-Tónico (1986), Mário Gin-Tónico Volta a Atacar (1991), Tótó (1991) e Europa Não! Portugal Nunca! (1994) - não é possível saber algo, senão por ouvir dizer. Viviam daquilo que o teatro tem de mais específico, a directa circulação de energia entre o palco e o público, construindo-se num jogo de vaivém que os fazia diferentes a cada dia, a cada representação, jogo de risco de que o último daqueles títulos (um ano em cena!) era a expressão mais estremada porque quase inteiramente dependente da própria intervenção dos espectadores questionando o "candidato". Dia em que o público não estivesse para aí virado, era dia em que o espectáculo fenecia. De maneira que esse Viegas, actor de grandes cometimentos na corda bamba, só existirá enquando nos lembrarmos do que o vimos fazer. É esse o destino do teatro, em geral, mas muito especificamente daquele que Viegas praticou com mais singularidade.
Do outro actor, capaz de composições em registos vários, sobrarão os testemunhos do cimena - e, felizmente, Mário Viegas fez muitos filmes e, melhor ainda, filmes onde ficou presente a extrema diversidade de recursos que tinha e até os seus maiores defeitos e qualidades. A filmografia de Viegas é significativa, caso muito raro no panorama português.
Se houvesse que escolher, pôr-se-ia à cabeça um dos primeiros filmes em que participou, esse O Rei das Berlengas, de Artur Semedo (1975/76), onde atravessava em sátira desmedida toda a História de Portugal. Aí encontramos aquilo que se poderia chamar um actor-diamante em estado bruto, sem lapidação, indirigido. O cómico do esgar facial e da truculência, do excesso turbulento e sem margens, autocomplacente, capaz de provocar a gargalhada de primeiro grau e mal se podendo saber se distingue entre o devido e o mau gosto. Mas também se encontra o actor capaz de fazer fundir o estado de riso e o patético - numa linha que muito poucos são capazes de pisar - juntando o humor e o aperto no coração, em particular nas espontosas sequências em que o proclamado rei das Berlengas é entrevistado no hospício e descobre que o que o povo lhe gritara e aos seus antepassados, durante oito séculos, não era "come!, come!, come!), mas "fome!, fome!, fome!".
Veio, depois, José Fonseca e Costa, o cineasta essencial da carreira de Mário Viegas, aquele que lhe permitiu não apenas alguns êxitos históricos - como Kilas, o Mau da Fita (1977/79) e Sem Sombra de Pecado (1982) - mas também o que provocou que o actor controlasse e diversificasse os seus recursos. Fonseca e Costa nunca lhe pediu uma comicidade de primeiro grau, nunca quis despertar nele um registo de farsa, antes o sorriso que podia ser menos ou mais subtil, mas se ancorava as mais das vezes em detalhes. E, melhor do que tudo, entregou-lhe a figuração do português total, a que o actor correspondeu. Foi o pequeno manguelas lisboeta, muita parra pouca uva, no Kilas; foi um rapaz da alta burguesia, imberbe e crédulo, nas malhas tecidas pelo líbido de uma mulher em Sem Sombra de Pecado - talvez o seu grande desempenho cinematográfico. Foi caricatura de intelectual castrado em A Mulher do Próximo. Foi professoral e pomposo - vazio, vazio - em Os Cornos de Cronos.
Viegas era um actor tendencialmente calhado para a comédia (não por acaso, foi o género que estatisticamente mais praticou no teatro - e aquele a que se dedicou, quase em exclusivo, quando dirigiu, nos últimos cinco anos, a Companhia Teatral do Chiado). Mas nunca quis ficar preso a essa faceta. No teatro é possível lembrá-lo a fazer Brecht (Baal, em 1984, no Teatro Aberto, sob a direcção de João Lourenço) ou a notável criação de Na Solidão dos Campos de Algodão, de Bernard-Marie Koltès, encenação de João Lourenço no Teatro Aberto em Abril de 1990. Mas o cinema vai guardar essa vertente do actor, no ainda por estrear Rosa Negra, de Margarida Gil, na figura de um vagabundo sem-abrigo verdadeiramente singular. Havia ainda o actor-boneco, o actor-roberto, o que se despojava de psicologia para ser apenas ícone marionético, máscara, personagem de "cartoon": a série de 48 Filmezinhos de Sam que gravou para a RTP, em 1988, são disso testemunho.
E vão ficar os discos de poesia, infelizmente há muito esgotados e não reeditados, no que é uma injustiça profunda para com o grande divulgador de poetas que Viegas também o foi. Aí ficará guardada memória da multiplicidade de coisas que ele era capaz de fazer apenas com a voz. E não teriam sido precisos todos os discos para o saber: logo no segundo - Palavras Ditas, de 1972 - Viegas como que estabelece um catálogo de modulações, do lírico ao humor, da gravidade trágica à caricatura. É nesse disco que, quase em estilo de demonstração de que a voz é tudo, ele lê o boletim meteorológico como se estivesse a invocar um presságio funesto. O resultado é espantoso. De poesia perdurará, ainda, nos arquivos da RTP, pelo menos a série Palavras Vivas, que Nuno Teixeira dirigiu em 1984.
O resto, o teatro, esfuma-se devagar enquanto a nossa memória se apaga com o correr dos dias. A última vez que o vi representar no palco foi em Outubro, quando estreou aquela que viria a ser a sua última peça, quer como actor quer como encenador (Uma Comédia às Escuras, de Peter Shaffer). Depois disso vi-o representar na vida o papel de um homem ainda pronto para todos os combates, enquanto se ia despedindo, codificadamente, de cada um de nós.
Agora foi-se embora de vez, era 1 de Abril. Parece impossível.
Escrevi um dia acerca de Mário Viegas que era um declamador genial e um actor de grande talento. Não percebia eu então que dizer poesia era nele ainda um mode de ser Actor. Aqui o deixo dito, com maiúscula, como ele gostava. E acho que devemos, pelo menos, beber um copo em sua honra."

10 mandamentos para 1 espectador de teatro ( por Mário Viegas)

Extraído de:
http://pancadademoliere.blogspot.com/


1º NÃO CHEGARÁS ATRASADO, incomodando a concentração daqueles que estão a Representar e dos outros (que chegaram religiosamente a horas) que estão a assistir ao Santo Sacrifício do Teatro.
2º NÃO FALARÁS BAIXINHO com o ou a acompanhante; incomodando com a tua inclinação de cabeça o Espectador de trás, e distraindo os Actores celebrantes do Santo Sacrifício do teatro.
3º NÃO ADORMECERÁS NEM RESSONARÁS, dando marradas para a frente ou para trás, ou pondo a mão nos olhos para os outros pensarem que estás muito concentrado no Santo Sacrifício do teatro.
4º NÃO TOSSIRÁS NEM TE ASSOARÁS com grande ruído, escolhendo as melhores pausas dos celebrantes do Santo Sacrifício do Teatro.
5º NÃO TE ABANARÁS constantemente com o programa, distraindo os que estão, religiosamente, ao teu lado e, irritando os que estão no palco a celebrar o Santo Sacrifício do Teatro.
6º NÃO COMERÁS rebuçados, pipocas, caramelos, chocolates, pastilhas, comprimidos; tirando-os muito devagarinho, fazendo com o papel e as pratinhas o mais diabólico, satânico e herético ruído numa sala de espectáculos em que se celebra o Santo Sacrifício do Teatro.
7º NÃO LEVARÁS relógios com pipis electrónicos, telemóveis e sacos de plásticos que andarás constantemente a pôr, ora entre as pernas, ora no colo, perturbando os que celebram o Santo Sacrifício do Teatro.
8º NÃO LERÁS OU FOLHEARÁS o programa durante a celebração do Santo
Sacrifício do Teatro para tentar saber qual é o nome de determinado Actor, ou para tentar perceber a sequência do Santo Sacrifício do Teatro.
9º NÃO PEDIRÁS borlas ou insistirás em descontos, a que não tens direito, para assistir à celebração do Santo Sacrifício do Teatro.
10º NÃO OLHARÁS «com umas grandes vendas» para o vizinho do lado, que achou religiosamente Graça ao que tu não achaste, ou que, piamente e cheio de Fé, se levantou logo para aplaudir, enquanto tu bates palmas por frete e já a pensar ir a correr tirar a porcaria do teu carrinho, ou a porcaria do teu sobretudo do bengaleiro, mais cedo do que os outros.

ASSIM: SUBIRÁS PURO AOS CÉUS!
OU ASSIM: PODERÁS IR A 13 DE MAIO À COVA DA IRIA
OU ASSIM: PODERÁS IR E COMUNGAR NO CASAMENTO REAL

de Sua Majestade Sereníssima Dom Duarte Pio João Miguel Gabriel Rafael De Bragança, chefe da Sereníssima Casa de Bragança, Duque de Bragança, de Guimarães e de Barcelos, Marquês de Vila Viçosa, Conde de Arraiolos, de Ourém, de Barcelos, de Faria, de Neiva e de Guimarães; e de sua Augusta Noiva Isabel Inês De Castro Corvello de Herédia.

IDE E ESPALHAI A BOA NOVA!!

Portugal

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os
infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe
atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira, que o Infante
D. Henrique foi uma invenção do Walt
Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do
Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino
nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos
espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se
contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um
resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encon-
trar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e
idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce, que os
pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer
à minha vontade
Portugal
estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete, Salazar
estava no poder, nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra, tenho amigos que
emigraram, nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas
a nado na piscina municipal de Braga
ia propôr-te um projecto eminentemente nacional
Que fossemos todos a Ceuta à procura do olho que
Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

(de Jorge de Sousa Braga)