28.3.05

Mary Wollstonecraft (1739-1797) e a primeira Reivindicação dos Direitos da Mulher



Mary Wollstonecraft nasce em Spitalfieds, subúrbios de Londres, no ano de 1739, no seio de uma abastada família de empresários, mas cuja riqueza não estava destinada para a instrução das raparigas. Por isso mesmo, Mary só muito tarde aprendeu a ler numa escola de dia, já quando tinha 14 anos. A sua educação foi completada com a ajuda de uma casal idoso, os Care, que a puseram em contacto com Shakespeare, Milton e Pope. No fundo, Mary foi uma autodidacta.

De 1777 a 1783 viveu com dificuldades económicas, partilhando os seus problemas com a sua amiga de sempre, Fanny Blood e a sua irmã Elisa, que havia decidido separar-se do marido trazendo consigo a filha. As 3 mulheres decidiram viver juntas e começaram a realizar trabalhos artesanais. Mary tentou também abrir uma escola mas não conseguiu.

Ao transferir-se para Newington Hill, perto de Londres, Mary conheceu Richard Price (1723-1791), um intelectual não conformista. Price era teólogo e filósofo de orientação unitarista, logo, um deísta seguidor de Franklin, Jefferson e Condorcet. Conheceu a obra de Locke e de Rouseeau, e leu ainda A Nova Eloísa.
Em 1785 fez uma viagem a Lisboa onde assistiu à morte por problema de parto da sua amiga Fanny. Atenta observadora da difícil condição feminina, publicou em 1787 o seu primeiro escrito com a preciosa ajuda do editor anticonformista Samuel Johnson, « Pensamentos sobre a educação das raparigas». Um texto que revelava, apesar de Mary ser programaticamente anglicana, a influência que recebera de Locke e de Rousseau, para além da dos unitaristas. No livro recolhiam-se ideias tanto de «Emilie» como dos «Pensamentos a respeito da educação», especialmente as relacionados com as raparigas, e se sublinhava a dificuldade de inserção social das jovens, mesmo sendo estas instruídas.

Depois de uma breve estância na Irlanda como professora, regressou a Londres em 1781 e começa a frequentar o ambiente intelectual da livraria de Johnson.

Conheceu o pintor pré-romântico Henry Fussli (1714-1825), Tom Paine , Coleridge, Wordsworth, William Godwin, e o pintor e gravador William Blake, que veio a ilustrar um livro de fábulas para crianças de Wollstonecraft, «Histórias originais»(1788). Muitos dos participantes deste ambiente intelectual sentiram-se inspirados e inflamados com os acontecimentos revolucionários de Paris, e a própria Mary escreveu em 1790 a «Reivindicação dos direitos dos homens» em que tomava posição a favor de Richard Price , que estivera ligado à revolução de 1688 e à de 1789 contra o conservador Edmund Burke (1729-1797).

No seu livro, Wollstonecraft criticava a iníqua divisão da riqueza típica da sociedade inglesa do seu tempo: o domínio que penalizava as raparigas bem assim a condição coactiva do matrimónio, definido por ela, como uma «prostituição legal» No plano político, reivindicava o direito do povo a eleger os governantes e os reis, segundo aliás uma tese de Price. Em 1792 publicou então a sua obra mais importante, «Reivindicação dos direitos da mulher»

No mesmo ano Mary Wollstonecraft parte para França com o objectivo de escrever uma história da revolução para o seu editor. Assiste, entre o temor e a angústia, à decapitação da Luís XVI.. Entre as forças políticas francesas sentia uma inclinação para os girondinos que combatiam por uma mudança regida pela razão e não tanto pelo sangue das massas.

Desta experiência surge o primeiro volume da «Visão histórica e moral da origem e evolução da Revolução Francesa» (1794), uma obra em impera uma visão oficial e na qual não marcas da presença feminina no movimento revolucionário.

À vida intelectual de Mary se somou entretanto (1793) as incertas e dolorosas vicissitudes da relação com um homem de negócios americano que conheceu em França durante o período do Terror, e que mais tarde a abandonaria em Le Havre com uma filha nos braços, relação que terá estado na origem em duas tentativas de suicídio em 1795.

As leis repressivas de 1794-1798 de William Pit contra os radicais e os filojacobinos ameaçaram Mary Wollstonecraft e o seu círculo de amigos intelectuais.

Em 1796 inicia uma relação como filósofo radical William Godwin, com o qual se decidiu casar-se,enquanto esperava um filho seu. Em Agosto de 1797 nasce a pequena Mary Godwin, mas quinze dias depois Mary Wollstonecraft morre por septicemia.

Mary Godwin, mais conhecida por Mary Godwin Shelley (1797-1851), a filha de Mary Wollstonecraft, foi também um mulher de engenho e uma escritora de créditos firmados. Mary Godwin Shelley casa-se com o poeta Percy Bisshe Shelley (1792-1822).Maru Shelley escreve a sua obra mais famosa, «Frankenstein».


A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792)

Em 1791, Thomas Paine, livre pensador angloamericano, que tinha regressado à Inglaterra em 1787, publica «OS Direitos do Homem», facto que constituiu motivo bastante para ser desterrados e obrigado a emigrar para França. No ano seguinte, Mary Wollstonecraft publica a sua «A Reivindicação dos Direitos da Mulher». Trata-se de um livro que se inscreve na literatura político-filosófica do período revolucionário, entre a declração da Independência americana e a Declaração dos direitos do cidadão, na França.

Mary Wollstonecraft pretendia inserir as reivindicações sobre a liberdade e igualdade social e política das mulheres dentro do contexto mais geral dos Direitos do Homem. Ou seja, para Wollstonecraft o ideal da emancipação feminina e a igualdade entre homens e mulheres não era visto como um valor em si mesmo, mas estava antes inserido nos princípios do direito natural moderno, como uma espécie de suplemento ao programa iluminista.

Para Wollstonecraft as mulheres devem sair da sua jaula de ouro, desse limbo formal de «feminilidade» que é a outra cara da marginalização e da submissão. A mulher deve adquirir, segundo ela, o ideal da razão, ou seja: não mais «amantes sedutoras» mas sim «mulheres afectuosas e mães racionais».

As mulheres deveriam implicar-se plenamente no projecto ilustrado e reformador: educação, direitos políticos, responsabilidade pessoal, igualdade económica, racionalidade e virtude, liberdade e felicidade. Estas são os ideais de Wollstonecraft que chaga a propor, provocatoriamente, uma castidade feminina desmistificadora das relações ambíguas com o homem. Frequentemente faz referência a Francis Bacon que, encarna para ela, o poder libertador da razão filosófica. Mas não menos frequentemente polemiza com Rousseau, de quem aceita a agudeza das análises de «Emilie» e do «Contrato Social», mas cujas conclusões rejeita.

Os vícios das mulheres do seu tempo são vivamente censurados por Wollstonecraft. O intelecto e a virtude são inseparáveis, e não poderá haver verdadeira moralidade ( e verdadeira religiosidade) se, porventura o intelecto é débil e está mal aproveitado: à mulher exige-se um intelecto firme, e é sobre ele que poderá fundar a sua própria moralidade e felicidade. A superstição é coisa totalmente contrária à razoabilidade da religião cristã. A frivolidade e o sentimentalismo são induzidos às raparigas pela literatura novelesca. O apego afectivo mórbido ao marido resulta da sua subordinação intelectual. A incapacidade de educar bem os filhos é possível tanto nas mulheres como nos homens. A ignorância, no seu sentido mais enfático, tem a raiz na inferioridade e na instabilidade psíquica das mulheres. Esta é a lista dos males que as mulheres padecem, especialmente as burguesas, que tinham alguma possibilidade de se ilustrarem, na óptica de Mary Wollstonecraft.

A mentalidade feminina fora relegada pela tirania masculina para o limbo da fatuidade ao que as mulheres, em geral, acabaram por se adaptar. E as mulheres que, hoje, reclamam direitos, devem saber que a estes correspondem deveres, assim como a rebelião contra a dominação masculina se deve realizar em nome dos valores universais.

O interesse pedagógico de Wollstonecraft reside na sua visão geral da evolução do mundo feminino com base na ideia do progresso intelectual e moral. A educação feminina deve ser, pois, renovada e igual à do homem, de acordo com os princípios da razão.

Nesse sentido, Rousseau entra em contradição quando postula o regresso ao «estado da natureza». O Ser sábio, que criou os homens, deu-lhes a luz da razão para que a Virtude ocupe o lugar do vício.
O Intelecto, a Virtude e a Liberdade são as 3 caras da razão iluminada que Mary Wollstonecraft tomou como os princípios do seu pensamento.

O seu objectivo é a criação de uma «nova civilização» em que humanidade seja virtuosa e feliz. A via de acesso é aberta pela Razão , uma razão que é reforçada pela fé: «firmemente persuadida de que não existe o mal no mundo fora do desígnio divino, construo a minha fé sobre a perfeição de Deus». É a religião da Razão.

A Sociedade contra o Estado ( P. Clastres)

A Sociedade contra o Estado é uma obra fundamental cujo autor é Pierre Clastres, fundador da antropologia política e um dos maiores antropólogos de todos os tempos .

A sociedade contra o Estado, colectânea de onze artigos publicados por Pierre Clastres entre 1962 e 1974, é um dos mais importantes trabalhos de antropologia política já divulgados. Lançada em 1974, traz o sabor de sua época reflectindo uma reviravolta nas ciências humanas, propiciada na década anterior por autores franceses como Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Como estes, Clastres agarra-se ao projecto de uma forte crítica da Razão ocidental - no seu caso, uma crítica da Razão política, então aferrada em noções de dominação e subordinação. No entanto, Clastres morreu prematuramente (aos 43 anos), não podendo continuar, como queria e poderia ter feito, o seu projecto original de constituição de uma antropologia política geral.

A tese que atravessa os textos da colectânea, fortemente alinhavados a despeito dos anos que os separam, é retumbante: a sociedade civil pode prescindir da figura do Estado, e isso pode ser verificado - empiricamente - na experiência de boa parte dos povos indígenas da América do Sul. Com efeito, o argumento lançado aguçou o interesse de antropólogos, filósofos e cientistas políticos. Se, por um lado, Clastres escrevia para especialistas em povos não-ocidentais, tocando num problema bastante delicado para eles - até que ponto essas sociedades podem ser ditas igualitárias? -, por outro, ele (re)abria uma séria discussão, própria da filosofia política, sobre a natureza do poder político.


Um chefe sem poder


A figura que serviria de inspiração a Clastres é a do chefe indígena (figura certamente genérica), autoridade que não detém poder algum, prisioneiro do grupo. Mesmo dotado de privilégios como a poliginia (casamento com mais de uma mulher), esse chefe está submetido a uma série de obrigações que pressupõem certas habilidades, dentre as quais, as mais importantes são a generosidade e o dom da oratória.

O chefe indígena é, em suma, aquele que pode dar e sabe falar. Essa sua fala reúne os homens ao seu redor sem, no entanto, mostrar-se eficaz para cooptá-los. Em suma, é uma fala vazia, pois não tem poder de mando, mantém o chefe numa posição de poder que é de fato aparente. O argumento de Pierre Clastres vai mais longe. Não se trata simplesmente de afirmar que o chefe indígena não detém o poder, pois, para o autor, a sociedade indígena (ou "primitiva", como ele prefere chamar de modo algo antiquado e que hoje poderia soar como "antropologicamente incorrecto") não é estranha ao poder. O chefe não detém o poder porque é impedido pela própria sociedade, essa sim a detentora de um certo poder, que não consegue, no entanto, constituir-se como esfera política separada - ou seja, como Estado. O poder ali permanece difuso.

Essa tese fora formulada por Clastres quando ele tinha apenas 28 anos e divulgada num artigo intitulado "Troca e poder: filosofia da chefia ameríndia" - segundo capítulo da presente colectânea. Nessa época, ele ainda era um estudante de filosofia e preparava-se para iniciar suas pesquisas de campo em sociedades indígenas sul-americanas, como os Guayaki, Guarani e Chulupi - todos do Chaco Paraguaio -, os Yanomami da Venezuela e os migrantes Guaranis mbyá das redondezas da cidade de São Paulo.

Questionando o marxismo e estruturalismo


As experiências de campo foram certamente responsáveis pela sofisticação de seu pensamento, no entanto, a ideia central havia sido lançada já no texto de 1962, publicado originalmente na revista L´Homme, que tinha como director Claude Lévi-Strauss. A propósito, "Troca e poder" - seguido, sobretudo, de "Independência e exogamia" (Cap. 3) - é um diálogo aberto com a obra deste autor e, com efeito, um momento decisivo de ruptura com o estruturalismo. Ao tomar o poder como foco, Clastres afasta-se de campos como a mitologia e o parentesco, então consagrados pela análise estrutural. A Clastres não interessa a dedução de princípios cognitivos universais que tornam possível a existência de qualquer sociedade, mas sim a verificação de como determinadas sociedades - no caso, as indígenas - respondem de maneiras diferentes a problemas de facto gerais, como a possibilidade de vigência de um poder político separado, o Estado. Vale lembrar que, nesse ponto, Clastres também aposta em questionar o marxismo, visto que, ao contrário do que este pensam, ele não vê a formação do Estado como função do desenvolvimento de uma desigualdade económica. A realidade, para ele, é justamente a inversa: são as relações de poder que definem as classes e, portanto, a divisão da sociedade em pobres e ricos.


Contra o Estado e a favor da sociedade


Sob esse aspecto, as sociedades indígenas deixam de ser tomadas, como de costume em abordagens evolucionistas, como passado ou infância das sociedades modernas, cuja organização política seria mais complexa e, logo, "superior". Se as últimas optaram por viver sob o jugo de um Estado, as primeiras recusaram-no em nome da liberdade. É então que chegamos à conclusão do último texto, "A sociedade contra o Estado" (Cap. 11), que dá nome à colectânea. Ou seja, as sociedades indígenas não são simplesmente sociedades "sem" Estado - esta seria a tese de um filósofo como Lapierre, criticada em "Copérnico e os selvagens" (Cap. 1) -, são, sim, "contra" o Estado na medida em que reconhecem a possibilidade de emergência de um poder político, que está, segundo a definição da filosofia política clássica, atrelado ao exercício da coerção, da violência.

A violência que se encontra nas sociedades indígenas não é monopolizada por um Estado, mas controlada pela própria sociedade. Em "Da tortura nas sociedades primitivas" (Cap. 10), Clastres salienta os rituais de iniciação - fortemente marcados por intervenções no corpo, como perfuração de lábios e orelhas, escarificações, reclusões etc. - como mecanismos de inscrição da lei (e memória) social nos indivíduos.


Promessas proféticas


Em "Do Um sem o Múltiplo" (Cap. 9), Clastres encontra no pensamento dos Guarani a identificação do Mal com a figura do Um - e esse Um coincide justamente com centralização política, com o Estado. No entanto, devido a factores incertos como o crescimento demográfico - tema discutido em "Elementos de demografia ameríndia" (Cap. 4) -, os Guaranis vêem-se não raro às voltas com a emergência do Estado e isso pode ser compreendido pelo aparecimento de líderes religiosos, os chamados profetas. Os profetas, como os chefes, falam. Mas a sua fala não é um mero dever - o capítulo 7 ("Dever da palavra") trata desse aspecto -, tão pouco é vazia. É uma fala que anuncia o fim dos tempos e incita à busca da Terra sem Mal, onde a mortalidade poderia ser, enfim, encontrada - este é, com efeito, o tema do capítulo 8 ("Profetas da Selva").

O profetismo ocupa, em A sociedade contra o Estado, um lugar intrigante. Referido inicialmente como uma revolta, ele pode ser também o germe de uma organização estatal entre os ameríndios. Com isso, Clastres reflecte sobre a situação dos povos tupi-guarani antes da Conquista.

As eventuais organizações em confederações, como aquela constituída pelos Tamoios no século XVI, não seriam um produto do contacto com os europeus, mas antes um processo constituído pelos próprios ameríndios. Mais uma vez, a questão não reside na ausência do Estado, mas na sua presença, mesmo entre os nativos, em forma latente. O que os distingue de nós, ocidentais, é a capacidade que eles apresentam de contornar, sempre que possível, o poder. Ao contrário de nós, eles riem do poder e de seu perigo - essa é a revelação de "De que riem os índios"? (Cap. 6).

Os índios e nós

Em A sociedade contra o Estado, Clastres viaja longe para reflectir, de facto, sobre a situação do Ocidente. NUma outra colectânea, «Arqueologia da violência: pesquisas em antropologia política», ele rememorará o filósofo do século XVII Etienne de La Boétie, que vê a razão da subordinação do homem como um acto de vontade. As sociedades ameríndias, para Clastres, são aquelas que recusam a subordinação - por isso, controlam o seu chefe, que não impõe leis nem executa sanções. Isso não reflecte nem significa sociedades desorganizadas, fragmentadas, como muito se pensou. Pelo contrário, revela um alto nível de organização a tal ponto de tornar inviável o aparecimento de um Estado. Essa escolha pela liberdade é o que Clastres quer sublinhar nas paisagens que percorreu e, assim, formular uma lição para o Ocidente, em que a dominação encontra-se por toda parte.

Em tempos como os que vivemos nos dias de hoje, marcados por guerras entre Estados e pelo desejo de expansão e dominação de verdadeiros impérios, a leitura de A sociedade contra o Estado parece, no mínimo, reconfortante. Diante de uma batalha pelo poder político (e, por conseguinte, económico) que tem custado inúmeras vidas, nada como imaginar um lugar onde este possa ser vivamente combatido pela sociedade.


Sobre o autor


Pierre Clastres nasceu em Paris em 1934. Foi director de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crónica dos índios Guayaki [1972], A sociedade contra o Estado [1974], e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani [1974]. A sua morte prematura, num acidente de carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política [1980].

Os conhecimentos tradicionais




Os conhecimentos tradicionais, ou conhecimentos autóctones (Indigenous Knowledge) são utilizados há milénios pelos povos indígenas e comunidades locais, e sempre constituíram a pedra angular da sua existência no que diz respeito à alimentação e à saúde. Os cientistas ocidentais começaram a interessar-se recentemente por esses conhecimentos indígenas, pelo facto deles representarem uma fonte potencial de novos medicamentos, sobretudo desde que os preços das patentes aumentaram muito no mercado. A aceleração dos fenómenos de biopirataria é reveladora da atitude hipócrita dos pesquisadores ocidentais em relação aos conhecimentos tradicionais: explorar a fundo esses conhecimentos e patentear todo tipo de substâncias deles oriundas (curcuma, ayahuasca, neem etc.), ao mesmo tempo que recusam reconhecer seu valor económico, bem como os seus detentores originais.
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Apesar do reconhecimento gradual de que se beneficiam os conhecimentos tradicionais enquanto verdadeiros saberes, as leis ocidentais sobre a propriedade intelectual classificam-nos como pertencendo ao "domínio público", portanto de livre acesso a todos. Além disto, em certos casos, os conhecimentos indígenas foram patenteados e protegidos pelos direitos de propriedade intelectual, tornando assim impossível qualquer indemnização aos seus reais inventores ou proprietários.
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Do mesmo modo, a utilização e o aperfeiçoamento constante das variedades são essenciais em muitos sistemas agrícolas. Em muitos países, o mercado de sementes depende essencialmente de um sistema local e descentralizado de produção de sementes, que opera a partir do princípio de difusão da melhor semente disponível numa comunidade, enquanto os fazendeiros locais asseguram-se de que a comunidade agrícola possui o material necessário para a sementeira. O seu conhecimento das variedades de plantas e de suas características específicas foi fundamental para o desenvolvimento de novas variedades, bem como para a segurança agrícola mundial.
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O reconhecimento da importância dos saberes tradicionais ganha espaço no debate intelectual e político mundial. Assim, uma lei da OMPI-UNESCO sobre o Folclore foi adoptada em 1981; depois, em 1992, a Convenção sobre a Diversidade Biológica tratou dessa questão. Em 2000, um Comité inter-governamental sobre a propriedade intelectual relativa aos recursos genéticos, aos saberes tradicionais e ao folclore foi criada pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual).
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Desvio dos saberes tradicionais
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Um grande número de patentes foram outorgadas para recursos e saberes genéticos obtidos de países em desenvolvimento, sem o consentimento dos detentores desses saberes e recursos. Muitos produtos oriundos de matérias biológicas e de saberes desenvolvidos e utilizados por comunidades locais e indígenas (tais como a árvore neem, o kava, o barbasco, o endod e o curcuma, entre outros) foram objecto de uma importante pesquisa visando a obtenção de eventuais Direitos de Propriedade Intelectual sobre esses produtos considerados como "brutos", sem aperfeiçoamento (cf., por exemplo, a patente americana n° 5.304.718 sobre o quinoa, concedida a pesquisadores da Universidade do Estado do Colorado; ou ainda a patente americana sobre as plantas, de n° 5.751, sobre o ayahuasca, uma planta medicinal sagrada da Amazónia.
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Muitas dessas patentes foram revogadas pelas autoridades nacionais competentes. Assim, o Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CRSI) da Índia pediu uma revisão da patente americana n° 5.401.5041 a respeito das propriedades curativas do curcuma. O Escritório das Patentes e das Marcas Registradas dos Estados-Unidos (USPTO) revogou essa patente, constatando que não havia a novidade exigida; a inovação vem sendo utilizada na Índia há muitos séculos. No início do ano 2000, a patente concedida à empresa W.R. Grace e ao Ministério da Agricultura americano para o neem (patente EPO n° 436257) foi igualmente revogada pelo Escritório Europeu das Patentes (EPO), pois o seu uso já estava repertoriado na Índia. O uso mais importante da árvore neem é como um biopesticida. Neste sentido, o neem contém mais de 60 componentes úteis, que incluem igualmente o azadirachtin A (aza A), amplamente conhecido. De acordo com o grupo Grace, esse componente era destruído no tratamento tradicional da planta. Isto é totalmente falso. De facto, as substâncias sofreram uma degradação, mas isto não se aparenta com uma perda, já que os fazendeiros só utilizam essas substâncias quando isto é necessário. O problema da estabilização só surgiu quando surgiu a questão do empacotamento e do armazenamento por longos períodos, com finalidades comerciais. O pedido de patente, de 1992, foi apresentado por Grace com o argumento de que o tratamento pretensamente inventado por esta empresa permitia uma extracção adicional de produtos solúveis na água, o que representaria uma alternativa mais do que um substituto ao tratamento indiano actual dado ao neem. Por outras palavras, as técnicas de Grace são supostamente mais novas e avançadas do que as técnicas indianas. Entretanto, essa “novidade” existe principalmente devido à ignorância ocidental. Um pedido de revisão para a patente sobre os tipos e grãos de arroz Basmati (US Patent n° 5.663.484) concedido pela USPTO, também foi formulado pelo CSIR e Rice Tech, o que fez com que 15 das 20 pretensões do solicitante fossem retiradas.
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As convenções e tratados internacionais que tratam dos saberes tradicionais são caracterizadas pelo fato de não serem obrigatórios. Cada cláusula que trata da repartição dos benefícios é contestada e rejeitada. A convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata amplamente dos padrões legais para os direitos indígenas, não protege os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas. Apesar da Declaração dos direitos dos povos indígenas reconhecer os direitos e aspirações desses povos, ela não passa de um documento sem efeito obrigatório, não podendo ser legalmente imposto. No tratado internacional sobre os recursos Genéticos das Plantas, as nações desenvolvidas conseguiram bloquear um reconhecimento internacional dos Direitos dos Fazendeiros. Eles contestam igualmente qualquer noção de retribuição para a utilização de germoplasma tradicional no âmbito de um acordo de divisão dos benefícios. A Convenção sobre a Diversidade Biológica, que tentou defender os interesses dos Povos Indígenas, foi contrariada nesse projecto pela recusa americana em ratificá-la e em aceitar as suas condições.
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Proteger os conhecimentos tradicionais no interesse das comunidades implicadas requer, portanto, uma acção ao mesmo tempo a nível nacional, e sob forma de leis protectoras, e a nível internacional, por meio de acordos que condenem a bio-pirataria e reconheçam que conceder patentes para o que é propriedade de comunidades locais, é contrário à ética.