15.1.08

O maestro israelita Daniel Barenboim tornou-se cidadão palestiniano num gesto em prol da paz


O famoso pianista israelita que sempre apelou ao fim da ocupação da Palestina e foi fundador, com Edward Said, da West Eastern Divan Orchestra, composta de jovens músicos árabes, palestinianos e israelitas, acabou de adoptar a nacionalidade palestiniana.

Daniel Barenboim, pianista e chefe de orquestra israelita de fama mundial, adoptou a nacionalidade palestiniana e declarou pensar que a sua rara e nova qualidade poderia ser um exemplo para a paz entre os dois povos.

«É uma grande honra ter recebido um passaporte», disse ele no domingo passado, depois de um recital de piano em Ramallah, a cidade da Cisjordânia onde ele durante alguns anos promoveu os contactos entre jovens músicos árabes e israelitas.

«Aceitei, também porque acredito que os destinos do povo israelita e do povo palestiniano estão inextricavelmente ligados» disse Barenboim. «Sejamos nós abençoados ou malditos, temos de viver uns com os outros. E eu prefiro a primeira (proposta)».
«O facto de um cidadão israelita poder receber um passaporte palestiniano mostra que isso é realmente possível», continuou.
O antigo ministro palestiniano da Informação, Mustafa Barghouti, que ajudou a organizar o concerto de domingo, disse que o passaporte tinha recebido a aprovação do governo anterior, ao qual tinha pertencido e que foi substituído em Junho.
Questionado sobre as declarações de George W. Bush na semana passada aquando da sua visita à região, dizendo que uma paz poderia ser celebrada este ano, Barenboim avisou contra o perigo de criar demasiadas esperanças, acresecentando : «Actualmente, até as pessoas obtusas dizem que a ocupação deve parar», disse Barenboim.

Consultar:
http://palestinavence.blogs.sapo.pt/

Daniel Barenboim (Buenos Aires, 15 de Novembro de 1942) é um pianista e maestro de ascendência judaica, nascido na Argentina e com a nacionalidade israelita, que acabou de adquirir agora o passaporte e a nacionalidade palestiniana.
Consagrou-se como pianista mas é tornou-se conhecido como maestro, ocupação esta pela qual é mundialmente famoso. Em 1999, em colaboração com seu amigo Edward Said, intelectual estadunidense de origem palestina, fundou a orquestra West-East Divan, baseada na iniciativa de reunir jovens músicos árabes e israelenses para a realização de concertos e de diálogos culturais entre as duas partes. Pela realização desse trabalho, recebeu, juntamente com Said, o Prêmio Príncipe das Astúrias em 2002. No ano de 2001, criou uma grande polémica ao reger uma obra do compositor alemão Richard Wagner, que era anti-semita, em Israel.
Barenboim já dirigiu a Orchestre de Paris e é o actual diretor musical da Orquesta Sinfónica de Chicago e da Ópera Estatal de Berlim. Já foi laureado com diversos péêmios e méritos, como o Prêmio Wolf e o Grammy



http://www.danielbarenboim.com/


Chopin Waltz Op.64 No.1 "Minute Waltz", Daniel Barenboim



Ernesto de Sousa ou como fazer da vida uma coisa bonita



"É preciso acabar com a distinção entre a arte e a vida. Detesto espectáculos, detesto a arte… Só me interessa a vida… Gostaria da arte se toda a vida fosse arte… e é isso que deve acontecer…” (Ernesto de Sousa)

A propósito da criação de um novo website dedicado à figura ímpar que foi Ernesto de Sousa deixamos aqui alguns textos sobre a sua obra e biografia, dele retirados:
http://www.ernestodesousa.com/?cat=1




Consultar ainda:
http://triplov.com/ernesto/
http://expressarte.weblog.com.pt/arquivo/380048.html


JOSÉ ERNESTO DE SOUSA nasceu em Lisboa, em 1921, e nos anos quarenta frequentou a Faculdade de Ciências para ai organizar a exposição de arte negra da Associação de Estudantes. Militava, então, no MUD Juvenil, organização política da resistência antifascista.

Amante das artes e entre estas do cinema, Ernesto de Sousa foi pioneiro na animação cultural, contribuindo para a implantação do movimento cineclubista no nosso país a partir da década de 50, ao fundar o primeiro cíneclube entre nós, o Círculo de Cinema.

O cinema apaixona-o e dirige a revista «Imagem». Em 1962 nasce do seu talento um filme que marcou o cinema português: «Dom Roberto», com o actor Raul Solnado. Como afirmou um grande crítico, Alves Costa, «é talvez arbitrário considerar Dom Roberto o filme charneira. O certo é que a partir dali a história do cinema português seria outra».

Ernesto de Sousa, no silêncio do seu comedimento, fez outra história para o cinema português.
Como fez outra história para as artes por onde viajou: - encenações no TEP, cursos de formação artística na Sociedade Nacional de Belas-Artes.
Nos anos 60, quando se preparava para se deslocar a Cannes e aí receber o Prémio da Crítica pelo seu filme «Dom Roberto», foi detido pela PIDE ficando preso na cadeia do Aljube.
Nos anos de chumbo a liberdade era coisa por conquistar. E o direito à diferença, estrangulado pela violência da ordem imposta.
Escreve, lê, pinta, fotografa, filma, teatriza, vive numa busca constante da beleza inesperada. Instalações, exposições e happenings fazem parte do seu itinerário nos anos 70 e 80.
Atravessa-o o 25 de Abril quando já tinha sido preso três vezes pela PIDE: em 48, numa reunião do cineclube, mais tarde por ter visitado a URSS e a última vez quando foi impedido de receber o prémio em Cannes.
«Foi a minha terceira prisão», declarou a Rui Ferreira e Sousa. «Eu estava no Aljube. Vesti- me com o fraque que iria levar a Cannes e fui contando vários episódios. Todos os companheiros estavam a ouvir-me contar e ler poesia: operários e até guardas. Então, os presos confeccionaram um diploma para me oferecer e premiaram, assim, a realização de 'Dom Roberto'. Foi muito bonito».

Pode dizer-se que o objectivo supremo deste homem foi fazer da vida uma coisa bonita, como quem respira. Conheceu Bazin, Agnés Varda, Resnais. Estudou Sartre, Merlau-Ponty e Rosa Ramalho. Conheceu por dentro o neo-realismo como o surrealismo. Não impôs a si próprio fronteiras ideológicas e deixou que a cultura o atravessasse sem tréguas.

Filma poemas de Herberto Helder, faz exercícios sobre poesia de Almada Negreiros, Luísa Neto Jorge, Herberto e Cesariny no Primeiro Acto de Algés, com música de Jorge Peixinho e a sua imaginação.
Recupera painéis de Almada Negreiros, em Madrid. É comissário por Portugal para a Bienal de Veneza em 1980, e vive no silêncio da sua serenidade.


Biografia

Ernesto de Sousa(1921-88) - Nasceu em 18 de Abril de 1921, em Lisboa. Seguiu o curso de físico-químicas na Faculdade de Ciências de Lisboa e dedicou-se, desde muito jovem, ao estudo da arte e da fotografia.
Espírito aberto, polémico, pioneiro em muitas das coisas a que se dedicou, exerceu uma vasta acção no campo artístico: artes visuais, cinema, teatro, jornalismo, rádio, crítica e ensaísmo.
Fez estudos de etnologia e estética, foi artista, comissário de exposições, professor.
Escreveu vários livros e textos dispersos em jornais e revistas, interessando-se particularmente pelo mixed-media e pela arte vídeo experimental.
A sua produção fotográfica, com início nos anos 40, inclui levantamentos etnográficos, de escultura medieval, de arte popular, retratos urbanos, etc. Entre os inéditos que fazem parte do seu espólio, contam-se numerosas montagens de fotografias que E.S. “paginava” com reenquadramentos e cortes, segundo um modelo que não era meramente gráfico ou cinematográfico mas antes se aproximava de posteriores sequenciações conceptuais.
Nos anos quarenta dedicou-se à divulgação e ao estudo do cinema desenvolvendo uma intensa actividade cine-clubistica, que teve significativa influência na formação ideológica e cultural de várias gerações e fundando, em 1947, o Círculo de Cinema, primeiro cine-clube português. Em 1948, a sede do Círculo foi assaltada pela PIDE-DGS, que prendeu E.S. e os restantes membros da Direcção. Esta foi a primeira de quatro prisões por motivos político-culturais. O carácter cultural e cívico desenvolvido por Ernesto de Sousa nesta área estendeu-se a todo o País e foi completado pela revista Plano Focal, onde publicou uma entrevista com Man Ray (1953), e pela revista Imagem-2ª Série, (1956-61), de que foi redactor principal, lutando pelo “cinema novo” em Portugal, e onde entrevistou Bernard Dort, e Chris Marker, entre outros.
Co-fundador, com Fernando Lopes Graça e outros, do Coro da Academia de Amadores de Música, em 1950.
Entre 1949 e 1952 viveu em Paris onde frequentou cursos de cinema da Cinemateca, da Sorbonne e do Institut de Hautes Études Cinematographiques, aulas de arte na Ecole du Louvre e fez o Cours d’Initiation aux Arts Plastiques de Jean d’Yvoire, com quem manteve relações de amizade. Foi membro do Cine-Clube do Quartier Latin, onde travou conhecimento com René Bazin e François Truffaut. Estagiou em Marly-le-Roy, onde privou com Alain Resnais, Agnès Varda, com Jean Michel, Presidente da Federação dos Cine-Clubes Franceses e Jean Delmas.
Iniciou a sua participação como crítico e teórico do neo realismo artístico e literário dos anos 40, por entender ser esse o local propício ao magistério da arte como instrumento de libertação social e individual. Em consequência, esteve sempre em violenta divergência com os seus contemporâneos surrealistas.
De 1958 a 1962, realizou o filme Dom Roberto, uma viragem no cinema português, ponto de partida para o chamado “cinema novo”. Apresentado no Festival de Cannes 1963, foi galardoado com os prémios Prémios da Jovem Crítica (”La Jeune Critique)” e de “L’ Association du Cinéma pour la Jeunesse”.
Participou em estágios e congressos internacionais para o estudo da comunicação e da pedagogia, através dos meios audio-visuais.
Entre 1966-69 leccionou no Curso de Formação Artística da Sociedade Nacional de Belas Artes as disciplinas Técnicas da Comunicação e Estética do Teatro e do Cinema. Durante este período criou a Oficina Experimental para desenvolvimento de projectos colectivos, de “criação permanente”.
Em 1969 participou no 1º Festival 11 giorni di arte collectiva a Pejo (Itália), onde conheceu Bruno Munari, Sarenco, Verdi, entre outros, e a partir daquela data passou a autodenominar-se “operador estético”.
No mesmo ano, o mixed-media Nós não estamos algures, merece especial destaque. Jorge Peixinho foi seu amigo e autor da música para encenações teatrais e obras mixed-media.
Ao longo da sua vida Almada Negreiros foi para Ernesto de Sousa uma referência permanente. A sua obra e personalidade foram ponto de partida para artigos, livros, e o mixed-media Almada, Um Nome de Guerra. Recuperou os painéis deste artista do Cine San Carlos em Madrid, que conseguiu transportar para Portugal numa importante operação no âmbito da defesa do património.
Em meados dos anos 60 entrou em contacto com o movimento Fluxus: entrevistou Ben Vaultier e foi amigo de Robert Filliou, e de Wolf Vostell. A partir de 1976, foi visita frequente do Museu Vostell, em Malpartida de Cáceres (MVM). Esta relação com Vostell permitiu o alargamento do seu projecto MVM à participação de muitos artistas portugueses.
Nos anos 60 a 80, divulgou a arte vídeo, o happening, a performance em cursos, artigos e conferências que contribuiram para abrir caminhos à arte portuguesa, entre as quais, Arte portuguesa actual, na Ecole Supérieure d’Arts Visuels, em Genebra, a convite de Chérif Défraoui. Apresenta, em 1976, o Ciclo sobre arte vídeo, no Instituto Alemão de Lisboa, em colaboração com a Videoteca do Neuer Berliner Kunstverein. A convite de Dulce d’Agro, introduz o ciclo Performing Arts, na Galeria Quadrum, em que se exibe vasta documentação visual sobre happenings, envolvimentos, performances, events, video e nova fotografia, em colaboração com Gina Pane, Ulrike Rosenbach e Dany Block, entre outros.
Foi convidado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) a integrar a Comissão consultiva para a cultura, poucos dias após o 25 de Abril 1974, em que também participavam Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, e outros intelectuais.
Organizou, em 1977, a exposição Alternativa Zero, que integrou os mais importantes artistas portugueses e ainda o Living Theatre.
Participou activamente nas correntes de mail art. Foi sócio fundador da Galeria Diferença (1978), membro da AICA e do IKG (Internationales Künstler Gremium).
As casas da Rinchoa (1967-1971) e de Janas (1971-) tornaram-se, muito de acordo com o espírito dos anos 60, locais de encontro de efervescência criativa e interdisciplinar. Por ali passaram portugueses e estrangeiros, nas mais diversas situações.
Em 1987 a SEC, por iniciativa de Teresa Gouveia, ex-Secretária de Estado da Cultura, organizou a exposição retrospectiva Itinerários.
A Fundação Calouste Gulbenkian-Centro de Arte Moderna dedicou-lhe a exposição Revolution My Body, em 1998, comissariada por Helena de Freitas e Miguel Wandschneider.



Bibliografia ( só livros):

Ser Moderno em Portugal
Assírio e Alvim ,1998

Presépios, o Sol, outras Loas & etc.
Bertrand, 1985

Re Começar Almada em Madrid
Colecção Arte e Artistas, Imprensa Nacional - Casa da Moeda ,1983


Maternidade - 26 desenhos de Almada Negreiros
Colecção Arte e Artistas, Imprensa Nacional - Casa da Moeda ,1982

Para o Estudo da Escultura Portuguesa ,ECMA,Livros Horizonte ,1973

A Pintura Portuguesa Neo-Realista (1943-1953)

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ARTE = VIDA = ARTE

Esta liberdade de meios, estratégias e conceitos proclamada por Fluxus e pelos artistas deste período encontraria um paralelismo na própria carreira de Ernesto (e de Vostell) que não era apenas crítico, comissário, cineasta ou artista. Ernesto foi, essencialmente, uma figura controversa no país de então, desenvolvendo uma estratégia de ruptura e descontinuidade para com alguns dos cânones estabelecidos. Depois de uma incursão pelo cinema e pela estética neo-realista enveredou por uma arte experimental com um forte cunho conceptual, ligando a arte à vida e as suas relações com o público, em sintonia com o que se fazia fora do país.
De suma importância – e definidora da estratégia que aqui nos interessa em particular – foi a visita que Ernesto realizou à Documenta de Kassel de 1972, onde conheceu pessoalmente Joseph Beuys e contactou com as ideias de Harald Szeemann, facto que marcaria o seu pensamento crítico e a dinamização do debate nacional com novas problemáticas no campo artístico introduzidas por Ernesto, tais como a desmaterialização da obra de arte, a noção de obra aberta, o artista como operador estético ou o papel activo do espectador.
No ano seguinte, Ernesto conheceu Robert Filliou, Ben Vautier e George Brecht e passou a desenvolver uma série de actividades-convívio no país, com projecção de slides, com a finalidade de divulgar a consciência moderna que lhe foi dada a entender no estrangeiro. À semelhança dos festivais Fluxus e após ter participado em Agosto de 1969 nos Undici Giorni di Arte Collectiva na cidade italiana de Pejo, em Dezembro desse mesmo ano, Ernesto organizaria Nós Não Estamos Algures, no Clube 1º Acto de Algés, um primeiro happening ou exercício sobre a poesia da comunicação, sem grandes definições, onde foi possível experimentar estratégias, com permissão para imprevistos e acasos. Desde então, toda a sua actividade como comissário, dinamizador cultural e promotor de projectos ficou marcada por acções próximas da performance, nomeadamente os Encontros do Guincho (1969), o 1000011º Aniversário da Arte (1974) e as exposições integradas na AICA Do Vazio à Pró-Vocação (1972) e Projectos-Ideias (1974), para além do marco histórico da década, a Alternativa Zero (1977).
Todos estes projectos tinham por base a lição aprendida por Ernesto em Kassel e as diversas leituras e contactos estabelecidos nestes anos, com uma singular preocupação pela noção de Vanguarda (marcante nos textos da década de 70) e pela relação entre arte e vida. Partindo da ideia original de Robert Filliou, o 1000011º Aniversário da Arte foi organizado por Ernesto e pelo CAPC com a intenção de reunir amigos e outros convivas numa festa sem arte (convencional). A intenção era internacionalizar o país e acrescentar Portugal (neste caso Coimbra) à constelação de locais onde se verificou o mesmo festejo, criando assim a possibilidade para que a «ARTE e VIDA SE CONFUNDAM em vez de se divorciarem: “A ARTE DEVE VOLTAR AO POVO, AO QUAL ELA PERTENCE.» (10)

Excerto de um texto que pode ser lido integralmente em:
http://expressarte.weblog.com.pt/arquivo/380048.html




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Utopia e Vanguarda em Ernesto de Sousa
(texto de David Soares)

“Os primeiros passos de uma criança são experimentais
e por isso começam algo absolutamente novo”
Ernesto de Sousa

Numa entrevista a propósito do “exercício de comunicação poética” Nós não estamos algures (1969), Ernesto de Sousa dizia: “…É preciso acabar com a distinção entre a arte e a vida. Detesto espectáculos, detesto a arte… Só me interessa a vida… Gostaria da arte se toda a vida fosse arte… e é isso que deve acontecer…”1. Este desejo declarado significa, afinal, todo um programa de uma época onde a criatividade vivia de ideias e experiências limites. O radicalismo e o sonho exigiam-se como espécie de aliados permanentes. A liberdade total resultava então, necessariamente, numa arte do efémero, da acção e da partilha essencial da vida. “Nós somos realistas, queremos o impossível”, lembrava Ernesto de Sousa, repetindo entre nós o famoso slogan do “Maio de 68”.
O contributo decisivo de José Ernesto de Sousa para o desenvolvimento de uma consciência de vanguarda no Portugal dos anos 70 não sofre hoje contestação de maior – sendo antes o reflexo de uma quase absoluta unanimidade, que por certo tanto incomodaria o próprio Ernesto. De facto, é cada vez mais evidente o valor da sua acção (ética e estética – aliança absolutamente essencial a toda a verdadeira vanguarda) junto da comunidade artística desses anos tão agitados política e socialmente, cenários de pequenas e grandes revoluções, como acabou por ser, em toda a sua dimensão, o nosso 25 de Abril de 1974. Contudo, nessa mesma época, Ernesto de Sousa sublinhava já algo de essencial, a necessidade de uma outra revolução, a revolução artística, social e política, de cada um consigo mesmo: “A única coisa que me interessa é a revolução total […] Uma revolução, também, interior”. Nesta declaração se resumia afinal todo o programa de uma vida, o desígnio último e primordial de uma existência que sempre se pautou pela busca de outras realizações artísticas, mais humanas e livres. Aí se promove uma utopia essencial em torno de um projecto renovador da criatividade mais espontânea e efémera, de partilha e comunhão de valores e experiências, marcada por um sincero e generalizado espírito de solidariedade. A defesa de uma vanguarda artística, dirigida por Ernesto de Sousa como expressão mais radical de uma outra espécie de felicidade e realização, alimentou assim um desejo – que aos poucos se tornou colectivo – de consciencialização sobre as carências estruturais e mesmo de auto-estima que eram próprios da prática artística portuguesa de então.
Mas, afinal, de que utopia e de que vanguarda se fala aqui? Desde logo, uma utopia entendida enquanto futuro indefinido, ideal regulador de uma matriz redentora de emancipação individual e colectiva que alimentou a esperança de reconciliação do sujeito consigo mesmo e com o(s) outro(s); fundamentada entre a crença dos valores ideológicos que atribuem ao sujeito a condição de transformação da vida e do seu destino e a consciência maior das impossibilidades ou limitações dessa mesma ambição. Vanguarda, considerada no mais amplo entendimento que o mosaico das suas manifestações pode permitir, ou seja, enquanto pretenso alheamento da estrutura narrativa subjacente à tradicional historicidade da realização artística, contraposição à definição metafísica da arte como lugar de conciliação e catarse, como correspondência maior entre o interior e o exterior do psiquismo humano, valores defendidos, ou pelo menos fixados, no essencial, pela estética idealista do início de oitocentos. Vanguarda julgada enquanto consciência de uma necessidade de negação que é, simultaneamente, reforço de um território, poderíamos dizê-lo, de autocriação, espécie de ruptura controlada, onde se mantém o paralelo evidente com a estética do Romantismo, nomeadamente, no desenvolvimento do “mito da originalidade” da criação subjectiva e sem modelo, definida por Rosalind Krauss2 enquanto pretensa e ingénua procura de um estado puro, o zero, a raiz, ou o princípio, esse novo que funciona então menos como móbil, como rejeição da tradição e do passado, de um progressismo civilizacional e artístico, mas antes enquanto exacerbação da ideia de origem, causa, razão. Em Ernesto de Sousa convergem ainda as dimensões mais utópicas do espírito vanguardista, de uma vanguarda que evoluiu ao longo do século XX sobretudo como equilíbrio entre a ruptura e a continuidade de uma herança, em permanente e estonteante abertura de experiências estéticas e processos ideológicos análogos às vanguardas político-revolucionárias que alimentaram o primeiro quartel do século passado, enquanto resultado mais imediato das teorias socialistas desenvolvidas durante as manifestações sociais do final do século XIX. Vanguarda identificada também na arte do pós-guerra, entre as décadas de 50 e 70, reforçando e ampliando o vasto espectro das noções de experimentalismo em arte, na exponencianção extremada do conceito de obra (aberta, como proposta de Umberto Eco3), na profusão de uma interdisciplinaridade onde se revelam os valores de uma autocrítica da arte e do artista, como sintoma da “morte do autor” preconizada por Roland Barthes, em favor duma autoria da recepção, experimentada na desvalorização da interpretação estritamente individualizada, sublinhando antes uma arte enquanto ideia e acção, num processo generalizado de desmaterialização da obra de arte, sintoma maior de um desejo de aproximação radical entre a arte e a vida.
Ernesto de Sousa foi decisivo sobretudo num processo de descoberta nacional sobre os sinais de uma vanguarda entendida como “work in progress” e experiência de liberdade, investigação e descoberta, participação colectiva e festa. Essa consciência da partilha de um olhar estético plural e livre (popular e/ou erudito) resulta então em Ernesto de Sousa numa inevitável dissidência com as formas mais tradicionais (no sentido elitista da autonomia da arte) de produção e fruição do objecto artístico. Nesse sentido, ele repetia muitas vezes uma célebre frase de Franz Fanon: “Todo o espectador é um cobarde e um traidor”. Tal como sugere o título da exposição Do Vazio à Pró-vocação, organizada em 1972 por Ernesto de Sousa, era afinal a participação activa do receptor que se pretendia com essa arte-processo (ou process art). Pairava no ar esse “espírito Fluxus” que promovera a dissolução da obra de arte na acção e na vida. À contemplação passiva opunha-se um esforço analítico e de participação que exigia uma maior e decisiva cumplicidade entre os intervenientes e os “operadores estéticos”, como então se dizia. A atitude transgressora do movimento Fluxus (tendo Ernesto de Sousa desenvolvido contactos epistolares com artistas como Joseph Beuys e ainda profunda amizade e comunhão com figuras tão determinantes para esse movimento como Wolf Vostell, Robert Filliou ou Ben Vautier), assim como da earth art, land art, performace e body art, e ainda de todas as variantes do conceptualismo emergente, desencadearam nessa época uma verdadeira atmosfera (essencialmente utópica…) de superação absoluta dos limites da instituição arte, fazendo eco na famosa expressão de Harald Szeemann: “Percebe-se perfeitamente o desejo de fazer explodir o triângulo internacional da arte: estúdio-galeria-múseu”.
Todavia, e apesar dos resultados artísticos mais decisivos desse contexto revelarem afinal, e paradoxalmente, uma temporalidade bastante curta e sobretudo terem sido ainda objecto de uma perfeita assimilação museológica, inclusivamente aqueles de carácter mais efémero, ou contestatários do sistema político, económico e artístico vigente, podemos afirmar que na assunção da arte portuguesa do século XX, Ernesto de Sousa representa uma consciência ímpar, fundamentalmente no que diz respeito ao desenvolvimento de uma actividade crítica, didáctica e pedagógica que introduziu entre nós as referências essenciais dessa vanguarda internacional dos anos 60 e 70. A sua acção revelar-se-ia pioneira e tanto mais importante quanto assumida essencialmente como valor crítico e de resistência, realizada num país, até então, praticamente isolado da informação e do debate estético internacional, inocentemente afastado de uma maior consideração das práticas vanguardistas que em torno dos valores experimentais haviam transformado, nas suas premissas e resultados, o contexto de produção e recepção da obra, bem como o conceito de arte em geral.
Entre a “metáfora do zero” e a transparência teórica, a participação e a festa, a criatividade e a celebração do convívio humanos, ou a formação aberta e nunca dogmática dessa espécie de reanimação da “inocência almadina” apontada por José-Augusto França, a perspectiva crítica que Ernesto de Sousa produziu, seria responsável, directa e indirectamente, por uma profunda transformação no modo como os valores e os desígnios da vanguarda artística viriam a ser entendidos entre nós, num trabalho árduo, porque praticamente isolado, perante o marasmo da reflexão teórica e artística que o contexto nacional então apresentava. A expressão mais evidente desse longo e atípico projecto crítico revelou-se finalmente no espaço expositivo da Alternativa Zero, em 1977, como resultado de uma atmosfera reivindicativa e poética alimentada igualmente pela Revolução do 25 de Abril de 1974. Nesse espaço de participação plural, Ernesto de Sousa confirmou-se então como voz essencial de uma nova geração de jovens artistas que em torno das suas ideias e dinamismo viriam a criar uma espécie de nova oportunidade criativa, experimentando para lá dos ditames académicos, sintonizando-se desse modo, e finalmente, com o que de mais avançado se fazia na arte ocidental.
Também na Galeria Quadrum, então dirigida por Dulce D’Agro, Ernesto de Sousa dinamizou uma ideia de vanguarda, trazendo até nós nomes como Gina Pane, Ulrike Rosenbach, Silvie e Chérif Defraoui, Dany Bloch ou Fernando de Fillipi. Esse mesmo espaço galerístico viria a apresentar também a primeira exposição individual de Ernesto de Sousa no nosso país, em Novembro de 1978. Em “A Tradição como Aventura”, título da mostra que lançava Ernesto de Sousa como artista plástico, dava-se conta da reciclagem a que a imaginação criativa deste crítico-artista esteve sempre sujeita. Na verdade, depois da experiência autoral desenvolvida por Ernesto de Sousa no cinema, com todo o seu envolvimento na criação de “cine-clubes”, na realização de um filme mítico como Dom Roberto (1961) – interpretado por Raul Solnado e Glicínia Quartim – Ernesto assumia uma outra dimensão de autoria e criatividade, mais interdisciplinar e livre de constrangimentos orçamentais. Pelo meio, e como testemunho de todo esse processo de transição artística e existencial, ficava o documentário planeado para dar a ver essa figura essencial do primeiro modernismo português que foi Almada Negreiros. De um filme documental, Ernesto de Sousa passou a um projecto multimédia (ou mixedmedia, como então se preferia dizer) onde a pluralidade de suportes utilizados privilegiava ainda uma lógica que hoje se chamaria de instalação, criando assim uma espécie de “antifilme?”4 Esse foi na verdade o projecto que marcou a passagem do cinema para o mundo das artes visuais. Almada, Nome de Guerra, em projecto iniciado em 1969, resultaria sobretudo como espécie de híbrido entre esses dois grandes universos de criatividade artística, como um longo e inconclusivo work in progress.
Da acção cultural que Ernesto de Sousa desenvolveu fundamentalmente entre o dealbar da década de 60 e meados dos anos 80, resulta lógica a confirmação de um pensamento crítico onde o didactismo do olhar e da imaginação estética serviram sempre uma ampla utopia transformadora que refutava, ao mesmo tempo, qualquer espécie de elitismo mais exclusivista, dado que da arte popular dos barristas do norte de Portugal às teorias conceptuais mais complexas de Joseph Kosuth, o entendimento e a sensibilidade criativas não tinham para ele quaisquer fronteiras ou limites pré-definidos. Para Ernesto de Sousa, tudo se convocava numa urgência, ou necessidade primeira: a vanguarda; pela afirmação de um desejo: a experiência de liberdade, na reivindicação de um ritual: a festa, ou a participação de uma arte feita por todos, a partir dessa plural e frutuosa ideia: a “criação consciente de situações”5, num Portugal carenciado afinal de ousadia, utopia e espírito de vanguarda.

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E a quarta voz que aqui trago é a de Ernesto de Sousa
(texto de Eduarda Dionísio)


(…)E a quarta voz que aqui trago é a de Ernesto de Sousa, uma grande excepção, que conta o seu quotidiano em 75. Deitar às 5, levantar às 8. E, num só dia, reler uma mesa redonda do Jornal Novo sobre “Revolução Cultural”, uma nota da Quinta Divisão sobre a polémica da Exposição de Paris, escrever uma crónica para a Vida Mundial, participar num júri da SNBA, fazer uma sessão de diapositivos no ARCO com uma escultora belga, encontrar-se com Mário Pedrosa (ex-director do Museu de Santiago do Chile), ver a exposição “Colagens” na SNBA, participar numa mesa redonda sobre o conflito no IPC, montar um super 8 da Festa da Electricidade para os amigos da Dinamização, pôr em dia a correspondência com o realizador Robert Kramer e o pintor Robert Filliou. E no fim exclama: “Eu sou um trabalhador, não acham? Pois, um trabalhador intelectual, e depois?”
Já em 77, poria de pé uma inesperada “Alternativa Zero”, com o apoio da SEC então ocupada em “moralizar” o teatro independente … “Criação consciente de situações”. “Entrar no quotidiano” sem a “mentira dos objectos”. 10.000 visitantes no Mercado de Belém. Artistas consagrados e estreantes. Movimentos artísticos “de ponta”. Participação activa do público.
Mas já era tarde para provar que o difícil, o diferente, o abstracto ou o conceptual não é necessariamente igual a “elitista” e que o fácil, o habitual, o naturalista, o figurativo, o decorativo não é igual a “popular”. Tinha-se dado o regresso aos quartéis e começavam os regressos a casa. O 25 de Novembro apanhou na rede também a “Alternativa Zero”: possibilitou a sua concretização ao mesmo tempo que esvaziou a sua proposta.



Eduarda Dionísio, in Títulos, Acções, Obrigações, Sobre a Cultura em Portugal 1974-1994, Ed. Salamandra, Col. Tempos Modernos, 1993.