25.9.04

Que nasçam muitas Fridas

Frida Khalo





Frida Khalo foi uma extraordinária artista mexicana da primeira metade do século XX. Mas também uma mulher sensível, rebelde e voluntariosa. A sua relação tumultuosa com o pintor mexicano não menos célebre, Diego Rivera, tornou-se uma lenda na história do século e do movimento popular anti-capitalista. A luta anti-estalinista e o acolhimento de Trotsky, aquando do seu exílio no México, marcaram ainda a sua vida . Um estúpido acidente de viação na sua juventude não lhe roubou a alegria de viver nem a energia que dela se desprendia. As sequelas do acidente acentuaram-se com o passar dos tempos. Via o corpo como um invólucro onde habitava. E representava-o na sua pintura como tal. De resto, a sua pintura bem pode ser vista como um contraponto à de Rivera: o vivo realismo pictórico deste encontrava na pintura subliminar e fantasmática de Frida um contraste extraordinário que não deixa com certeza ninguém indiferente. O fascínio das grandes cidades nunca lhe impediu um juízo muito severo das relações sociais e afectivas típicas da civilização urbana e capitalista.

A energia vital de Frida é um monumento à vida.

Nunca te esqueceremos.
Chamava-se Frida - era mulher, mexicana e pintora.

(e se virem, por aí, um filme sobre Frida - por favor - não o percam!)

Apagai a vossa TV

Apagai a vossa TV
(ainda é tempo do vírus dos teledependentes não vos contaminar)

Não perdeis tempo com nenhuma televisão

Olhai antes o mundo à vossa volta, olhai as pessoas, escutai-as... ...a maior parte delas falar-vos-ão do que viram ontem na TV... ...ao passo que vós podereis explicar-lhes como deverão deixar de ver a TV, e como esta lhes formata o pensamento, lhes transmite incessantemente as palavras-de-ordem do poder...

Nenhum canal escapa...
Não vale a pena procurar sequer num programa de TV a falar sobre a realidade. O endoutrinamento, o condicionamento, e a servidão mental impõem-se de forma inelutável... Trata-se no fundo de um problema de higiene mental, mas também, e sobretudo, de uma questão de sobrevivência...

Portanto, apagai urgentemente as vossas televisões! Se quiseres ser feliz e autónomo


12.9.04

Como bloqueámos a Cimeira OMC em Seattle

Uma acção não-violenta que ficou na história


(Tradução para português do texto publicado no Le Monde Libertaire de 6 de Janeiro de 2000, de autoria de Starhawk e tradução francesa da conhecida cientista belga Isabelle Stengers)


Como nós bloqueámos a Cimeira da OMC em Seattle

Duas semanas já passaram desde aquela manhã em que me levantei antes de me juntar ao bloco que impediu o encontro inaugural da Organização Mundial do Comércio. Desde a minha saída da prisão que leio as revistas de imprensa para tentar compreender o que é que realmente se passou e o que foi relatado pela imprensa.
Durante a manifestação de protesto tivemos a rara ocasião de sentir que aquilo que dizíamos – “o mundo inteiro olha-nos” – era realmente verdade. E realmente não me lembro de nenhuma acção política que tenha atraído tanta atenção dos media como aquela em que fomos protagonistas. Mas o que foi relatado pelo mundo fora através dos media continha tantas incorrecções que eu ainda agora me pergunto se os jornalistas não deveriam ser acusados de conspiração ou, muito simplesmente, de incompetência. Ninguém dúvida que foram partidas algumas montras de lojas, mas tal não se deveu ao “Direct Action Network” (DAN) que foi o grupo que organizou a acção directa não violenta e que conseguiu reunir alguns milhares de pessoas.
A verdadeira história que explica o sucesso da nossa acção nunca foi contada.
A polícia, que reagiu de maneira brutal e estúpida à situação, desculpou-se que não se encontrava preparada para a violência. Mas, na realidade, o que não estavam preparados era realmente para a não-violência e ao grande número de activistas não-violentos – e tudo isto muito embora todas as nossas reuniões tivessem sido abertas, públicas e sem segredo algum.
Suspeito que a nossa maneira de organização e tomada de decisões era de tal forma estranha para o entendimento habitual da polícia sobre o que é uma manifestação ou a direcção de um movimento que eles não compreenderam absolutamente nada do que estava a passar.
Os polícias quando pensam numa organização imaginam logo uma pessoa ou um pequeno número de pessoas a dizer aos outros o que deviam fazer. Estão habituados ao poder centralizado que exige uma obediência cega.
Mas o nosso modelo de organização é muito diferente. Vejamos em quê.
Durante semanas inteiras que precederam a manifestação em Seattle, centenas e milhares de activistas receberam treino acerca da não-violência – cursos de três horas que abrangiam desde história à filosofia da não-violência, incluindo práticas de “role-playing” (=jogo teatral) que pretendiam preparar as pessoas para se manterem calmas, tranquilas e serenas nos momentos de maior tensão, treino de tácticas não-violentas face à brutalidade, e sensibilização e preparação para os processos de decisão colectivos. Alguns seguiram ainda uma preparação específica relativamente à provável curta estadia nas prisões com estratégias e tácticas diversas de solidariedade e ajuda mútua, sem esquecer os aspectos judiciais. Houve também treinos de primeiros socorros, tácticas de bloqueio, teatro de rua, simulação de confrontos, e de outras eventualidades.
Durante a manifestação, enquanto milhares de pessoas se manifestavam e enfrentavam situações imprevistas sem qualquer preparação, as pessoas que tinham recebido aquele treino foram as que melhor souberem fazer face à brutalidade policial tendo conseguido gerar instantaneamente uma rede de resistência. Até na prisão assisti a situações copiadas das que nos tínhamos preparado no “role-playing”. Os nossos activistas foram capazes de proteger todos os elementos do grupo que corriam o risco de serem isolados ou separados dos restantes utilizando as tácticas previamente treinadas para o feito. Estas tácticas de solidariedade foram imensamente úteis para evitar a consumação dos actos de abuso do poder.
Recorde-se que foi exigido a cada activista-voluntário aceitar os princípios básicos da não-violência: abster-se de violência física e verbal, não possuir armas, não andar com drogas ilícitas nem beber álcool, nem destruir bens privados. Estas exigências apenas diziam respeito às manifestações a serem realizadas em 30 de Novembro, e não pretendiam ser os ingredientes de qualquer filosofia de vida ou de grupo a que se pedisse adesão. Tanto mais que havia opiniões muito divergentes acerca dessas matérias entre os vários activistas envolvidos.
Os participantes da acção estavam organizados em grupos de afinidade. Cada grupo estava habilitado (empowered) a tomar as suas próprias decisões quanto ao modo de participação. Houve grupos que realizaram teatro de rua, outros prepararam-se para se prenderem a edifícios com correias, outros ainda trouxeram gigantones e caricaturas gigantes, e os restantes aprontaram-se muito simplesmente para de braço dado se postarem frente aos carros oficiais a fim de impedirem de modo não-violento a sua circulação.
Em cada grupo havia geralmente pessoas que estavam já preparadas para irem parar à prisão, outras que cá fora lhes prestariam apoio, e ainda alguém qualificados em matéria de primeiros socorros.
Os grupos de afinidade estavam organizados em clusters. A área envolvente ao Centro de Convenções foi dividida em 13 secções, os grupos de afinidade e o seu cluster foram repartidos por cada secção.
Havia igualmente «grupos móveis» que se deslocavam aonde a sua presença era mais requisitada. Tudo isto foi coordenado nos encontros do Conselho dos porta-vozes de cada grupo de afinidade que enviava um(a) representante que falava em nome do seu grupo.
Na prática, este tipo de organização significava a possibilidade dos grupos se deslocarem e reagirem com grande facilidade. Caso fosse necessário mais gente num determinado local, um grupo de afinidade podia avaliar a situação e decidir a sua deslocação, ou não, em função das informações que lhe chegavam. Nos momentos em que se tinha de aguentar os gazes lacrimogéneos, os jactos de água, as balas de borracha, e as arremetidas dos cavalos, cada grupo tinha capacidade de avaliar até que ponto podia oferecer resistência à brutalidade desencadeada.
No terreno, o que aconteceu foi que os grupos encontraram uma inacreditável violência policial, mas quando um grupo estava em dificuldade derivadas do gaz lançado, ou dos ataques de bastões, outro grupo imediatamente se posicionava para o seu lugar.
Havia obviamente que contar com os grupos de afinidade que reuniam os activistas de mais idade, alguns com problemas de saúde (pulmões, ou de coluna), cujo papel estava reservado para as áreas mais tranquilas, ou então para fazer a interligação com os delegados de cada grupo, o que lhes poupava meio caminho, ou ainda para apoio à marcha do trabalho que conseguiu reunir milhares de pessoas no principal dia.
Nenhuma direcção centralizada poderia ter alguma vez coordenado toda as acções perante o caos que se instalou, tendo o nosso modo de nos organizar mostrado maior maleabilidade que a toda poderosa polícia. Nenhum líder teria conseguido convencer aquelas milhares de pessoas a enfrentarem as arremetidas policiais sob o efeito do gaz. lacrimogéneo, tendo isso só sido possível graças ao facto das pessoas tiverem livremente optado em adoptar as atitudes melhor apropriadas face à situação.
Os grupos de afinidade, os cluster e os conselhos de porta-vozes abrangidos pela DAN sempre tomaram as suas decisões por consenso – um procedimento que permite a cada um fazer-se ouvir e que obriga todos a respeitarem as opiniões dos minoritários. De facto, o consenso faz parte da sensibilização aos processos e procedimentos de não-violência.
Para nós, frise-se, consenso não significa o mesmo que unanimidade. O único princípio obrigatório era realmente as regras próprias da não-violência. Para além disso, foi dado ênfase à autonomia e à liberdade e à coordenação e não aos procedimentos conformistas nem às pressões de uns sobre outros.
Um exemplo bastará para ilustrar tudo isto. Uma das nossas estratégias de solidariedade foi justamente deixarmo-nos prender a fim de podermos utilizar a força do número para proteger as pessoas mais fragilizadas por inculpações mais graves, ou então terem por sido vítimas de um tratamento mais brutal. Acontece que ninguém foi pressionado para se deixar prender, e ninguém foi culpabilizado pelo facto de ter escolhido pagar uma caução para sair mais cedo da prisão. Todos sabemos que cada um tem as suas próprias necessidades, e a sua própria situação de vida, e o que era importante é que cada qual tivesse participado na acção de protesto segundo o nível e as modalidades que achasse mais convenientes. Se tivéssemos pressionado para que todos ficassem na prisão provavelmente haveria quem resistisse, outros que experimentariam algum ressentimento, e outros ainda sentir-se-iam manipulados.
Tal como fizemos, as pessoas sentiram-se livres e não manipuladas, tendo a grande maioria delas decidido elas próprias permanecer na prisão, e até alguns foram muito mais longe do que seria imaginável.
Escrevo este texto por duas razões. Em 1º ligar para mostrar a importância do DAN. Os seus coordenadores realizaram um difícil mas brilhante trabalho. Com efeito, aprenderam a aplicaram as lições dos últimos 20 anos de acção directa não-violenta, conseguindo gerar toda uma poderosa dinâmica contra uma não menos poderosa oposição. Uma tal dinâmica foi susceptível de transformar a vida mudando radicalmente o panorama político mundial, além de ter contribuído para a radicalização de toda uma nova geração. Em 2º lugar porque a verdadeira história do modo como as coisas se passaram permite apresentar e propor agora um novo modelo de acção a partir do qual os activistas se podem inspirar. Seattle não foi senão um começo.
Diante de nós fica a imensa tarefa de construir um movimento global que incomode e a finança e a indústria e contribua para a sua substituição por uma outra economia baseada na honestidade (fairness) e a justiça, uma economia saudável e um ambiente salubre, que garanta a protecção dos direitos humanos e esteja ao serviço da liberdade. Muitas campanhas estão à nossa frente. Devemos ter o direito de aprender com as lições dos nossos êxitos.

Starhwak

Internet: www.reclaiming.org



25 de Abril: para que ninguém se esqueça

O 25 de Abril representa a queda da ditadura fascista, o fim da polícia política, o fim das guerras coloniais. É preciso que ninguém se esqueça.



No 25 de Abril de 1974 dá-se a queda da ditadura de Salazar e Marcelo. Um regime fascista que durou quase 50 anos ( de 1926 até 1974).

Antes de !974 não havia liberdade de reunião, de associação, de imprensa, nem de expressão. A censura cortava a livre crítica e a livre expressão das ideias.

Não era permitido o Divórcio e eram obrigatórias as aulas de Religião e Moral. O Estado Português tinha uma religião oficial: o catolicismo.
Existia a figura do “Chefe de Família” reservado ao Marido em relação ao qual a mulher e os filhos tinham um estatuto inferior.

Registava-se uma emigração enorme de Portugueses para o exterior à procura de melhores condições de vida, já que no nosso país, grande parte da população vivia na miséria. ( dizia-se que Paris era a segunda maior cidade portuguesa tal era quantidade de portugueses que passaram a viver naquela cidade)

As raparigas dos liceus (hoje, as escolas secundárias) andavam de bata, e havia distinção entre escolas masculinas e escolas femininas.

Os rapazes , chegados aos 18 anos, eram mobilizados para as Guerras Coloniais e lá passavam 4 anos, que era o tempo médio que durava o serviço militar obrigatório. Ou seja: os melhores anos de juventude eram passados na tropa.

Por isso, cada vez mais, havia exilados no estrangeiro.

Muitos cursos e matérias estavam interditos: as ciências sociais e humanas eram vistas como perigosas.

Não era possível ver certos filmes, e os que passavam nas salas sofriam frequentemente cortes da Censura.

Vivia-se num ambiente fechado, com usos e costumes tradicionalistas

Não havia liberdade sindical. E os poucos sindicatos eram sindicatos do Regime com os apaniguados do governo. Também havia associações profissionais que reuniam patrões e trabalhadores, com estes sob a tutela daqueles.

A polícia política (PIDE) perseguia, prendia, torturava e executava os oposicionistas políticos. Eram feitos julgamentos-farsa, sem qualquer garantia de defesa para os acusados.

A Economia era controlada pelos grupos económicos que pertenciam a grandes famílias devidamente protegidas pelo Regime político.


O 25 de Abril de 1974 foi um golpe militar realizado por oficiais de médias patentes (capitães e majores) descontentes com a guerra colonial e o regime ditatorial.
Era tal a sede de liberdade que o golpe militar foi apoiado por grande número de pessoas que logo saíram à rua, se bem que a população em geral continuasse muito apática tal era a passividade e o tradicionalismo em que tinha sido educada durante a ditadura.


Na linha do movimento hippie dos anos 60, das movimentações estudantis de Maio 68 e da contestação dos jovens americanos contra a guerra do Vietname havia no Portugal de 1974 bastante aceitação das ideias libertárias. Mas uma aceitação difusa. Em Maio de 1974 foi convocada no Porto uma manifestação anarquista pela libertação dos homossexuais. Criaram-se Comunas ( hoje, Squats) quer em Lisboa quer no Porto inspiradas no ideário libertário. Os antigos militantes anarco-sindicalistas começaram também a reogarnizarem-se. Realizou-se um comício Anarquista na “Voz do Operário” no dia 19 de Julho de 1974 a assinalar a “Revolução Espanhola”. A imprensa anarquista e/ou libertária reaparece: A Ideia, A Batalha, Combate, A Voz Anarquista, etc.



O novo capitalismo transforma a cultura em comércio

Autor do texto: Jeremy Refkin

Está a dar-se uma grande transformação na natureza do capitalismo. Depois de milhares de anos a converter recursos físicos em bens, os meios para gerar riqueza consistem agora em transformar recursos culturais em experiências pessoais e entretenimento pagos.
O anúncio da fusão entre a América Online (AOL) e a Time Warner sublinha a mudança para uma nova forma de hipercapitalismo que se baseia na transformação do tempo humano numa mercadoria.
A AOL-Time Warner, Disney, Viacom e Sony são apenas empresas de media. São árbitros globais de acesso a um vasto repositório de experiências culturais, que inclui o turismo e as viagens globais, cidades e parques temáticos, centros de entretenimento, bem.-estar, moda, gastronomia, desportos e jogos profissionais, música, cinema, televisão, livros e revistas.
O último passo da caminhada capitalista é a mercantilização da própria cultura humana.
As empresas de media transnacionais com as redes de comunicações que cobrem o globo de uma extremidade a outra estão a explorar até à exaustão os recursos culturais locais em todas as partes do mundo e a empacotá-los como mercadorias culturais e entretenimentos. Os 20 por cento mais ricos da população mundial gastam agora quase tanto dos seus rendimentos no acesso a experiências culturais como na compra de bens e serviços básicos.
Ao controlar os «pipelines» que as pessoas usam para comunicar umas com as outras, bem como o formato de quase todo o conteúdo cultural do que é filmado, transmitido na televisão ou enviado na Internet, as empresas como a AOL-Time Warner, são capazes de afectar as experiências das pessoas em qualquer sítio. Não há precedente na história para a amplitude deste tipo de controle das comunicações humanas.
Os críticos começam a perguntar o que é que vai acontecer à rica diversidade que constitui o ecossistema da existência humana, quando uma mão-cheia de empresas de informação, entretenimento e telecomunicações controlam a maioria do conteúdo cultural que faz as nossas vidas diárias.
As novas forças do capitalismo cultural podem acabar por devorar os nossos recursos culturais remanescentes – da música e dança tradicionais aos festivais locais, à comida e cozinha nativas - empacotando-os como entretenimento culturais de curta duração, divertimentos pagos e espectáculos com bilhete.
Perder o acesso à riqueza da diversidade cultural de milhares de anos de experiência humana pode ser tão devastador para a nossa capacidade de sobrevivência e florescimento humanos como acabar com o que resta da diversidade biológica.
Quando a pr´pria cultura é absorvida pela economia, apenas sobram os laços comerciais para manter a coesão da sociedade. A questão crítica desta nova Idade do Acesso é se a civilização pode continuar a existir quando as nossas relações fora da família são cada vez mais experiências pagas.
Enquanto Wall Street celebra a nova fusão e 20 por cento da população emigra para o ciberespaço, o resto da humanidade ainda está apanhada num mundo de escassez física. Mais de metade da raça humana nunca fez uma chamada telefónica.
O mundo desenvolve-se rapidamente em duas civilizações distintas: aqueles que vivem dentro dos portais electrónicos do ciberespaço e os que vivem no exterior.
As novas redes globais de comunicações digitais, porque são todas omnipresentes e globais, têm o efeito de criar um espaço social novo e totalizante, uma nova esfera terrestre acima da Terra-mãe.
A migração do comércio humano e vida social para o reino do ciberespaço isola uma parte da população humana do resto de uma forma nunca antes imaginável. O grande cisma, na nova era, é entre aqueles cujas vidas estão cada vez mais no ciberespaço e os que nunca terão acesso a este novo reino da existência humana.
Há mais de 20 anos, o sociólogo de Harvard Daniel Bell comentou que, na era que se anunciava, o controle sobre os serviços de comunicações seria uma fonte de poder e o acesso às comunicações seria uma condição para a liberdade. A fusão AOL-Time Warber faz-nos dar um passo mais em direcção a esse mundo.

A tirania do relógio

A concepção do tempo, característico da actual sociedade ocidental, não podia ser mais diferente do que a das sociedades anteriores, europeias ou orientais. Para os antigos, gregos ou chineses, para o pastor árabe ou para o camponês mexicano, o tempo é representado pelos processos cíclicos da natureza, pela sequência alternada do dia para a noite, pela passagem de uma estação para outra. Os povos nómadas e camponeses mediam e medem ainda os seus dias desde o nascer ao pôr do sol, e os seus anos pela sementeira ou pela colheita, pela queda da folha nos bosques e pelo degelo dos rios e dos lagos. O camponês trabalha condicionado pelos elementos naturais e o artesão fabrica o que lhe faz falta, acabando o seu produto com perfeição. O tempo é considerado como um processo de mudança natural, e os homens não se preocupam com a sua medida exacta. Por essa razão, algumas civilizações muito desenvolvidas em vários aspectos tinham facilmente meios muito primitivos de medir o tempo: o relógio de areia ou de água, o relógio de sol ( que não se podia usar em dias de nuvens), e a vela ou a lamparina que indicavam o tempo de acordo com a cera ou o azeite que ficavam por queimar. Estes instrumentos eram toscos, e as condições atmosféricas ou a preguiça de quem cuidava deles, tornava-os com frequência inúteis. Com excepção de uma pequena minoria, quase ninguém no mundo antigo ou medieval se preocupava em medir o tempo de uma maneira matematicamente exacta.
Porém, o homem moderno ocidental vive num mundo que corre sob os símbolos mecânicos e matemáticos do tempo do relógio. O relógio dita os seus movimentos e inibe as suas acções. O relógio converte o tempo de um processo natural numa mercadoria que pode ser medida, comprada e vendida.
Ocorre às vezes, na história de uma cultura ou civilização, a invenção de um instrumento que é logo utilizado na sua própria destruição, como aconteceu por exemplo com a invenção da pólvora pelos chineses, mais tarde aperfeiçoada no ocidente, serviu depois para destruir a civilização chinesa em guerras onde foi utilizado esse explosivo potente e moderno. Analogamente, a invenção mais aperfeiçoada pelos artesãos das cidades medievais europeias foi o relógio, o qual, ao alterar revolucionariamente o conceito de tempo, contribuiu para a morte da Idade Média.
A tradição afirma que o relógio apareceu pela primeira vez no século XI, para, nos mosteiros, tocar os sinos com intervalos regulares. Os seus membros levavam um estilo de vida de tal forma regulamentado que é o estilo de vida da Idade Média que mais se parece com o das fábricas da actualidade. Porém, não há provas de que tenha havido relógios antes do século XIII e foi a partir do século XIV que os relógios se converteram em adornos correntes nos edifícios públicos das cidades alemãs.
Esses primeiros relógios de pesos, não eram nada exactos, e foi só no século XVI que se conseguiu um grau mais elevado de exactidão. Por exemplo, diz-se que em Inglaterra foi o relógio de Hampton Court, de 1540, o primeiro que funcionava com exactidão, embora se tenha de ter em conta que esses relógios do século XVI tinham somente o ponteiro das horas. A ideia de medir o tempo em horas, minutos e segundos já existia nos matemáticos do século XIV, mas só se utilizou a agulha dos minutos depois da invenção do pêndulo, em 1657, enquanto que a agulha dos segundos só apareceu no século XVIII. Foi precisamente nesses dois séculos que o capitalismo cresceu de tal modo que pode aproveitar-se das técnicas e da revolução industrial para estabelecer o seu domínio sobre a sociedade.
O relógio é, como assinalou Lewis Mumford, o mecanismo chave da era da máquina, tanto pela sua influência na técnica, como pela sua influência nos costumes dos homens. Do ponto de vista técnico, o relógio foi a primeira máquina realmente automática que teve influência sobre a vida humana. As máquinas anteriores dependiam de forças exteriores e variáveis, como os músculos de homens e animais, o vento ou a água. As máquinas primitivas inventadas pelos gregos ( como a máquina a vapor de Heron) foram utilizadas para alcançar «efeitos sobrenaturais» nos templos ou para divertir os tiranos nas cidades do próximo oriente. O relógio foi, por outro lado, a primeira máquina automática que teve importância pública e uma função social. A relojoaria foi a actividade a partir da qual os homens aprenderam os elementos da indústria mecânica e adquiriram habilidade e técnica. O que lhes permitiu produzir a maquinaria complicada da revolução industrial.
O relógio teve, socialmente, uma influência maior do que qualquer outra máquina, já que foi o meio para regularizar e regimentar a vida de uma maneira precisa num determinado sistema económico. O relógio trouxe os meios para que o tempo – uma categoria tão esquiva que a sua natureza não foi estabelecida por nenhum sistema filosófico – pudesse ser medido concretamente em termos de espaço, na tangível circunferência dos mostrador do relógio. O tempo como duração foi posto de lado e começou-se a falar de «tamanho» de tempo como quem fala do «tamanho da roupa». E o tempo que se expressava e media com símbolos matemáticos, foi considerado uma mercadoria comprável e vendável como outra qualquer.
Os capitalistas estavam conscientes da importância do tempo. O tempo, que na indústria simbolizava o trabalho dos operários, foi encarado por eles quase como se fosse a matéria-prima da indústria. Recorde-se que o famoso slogan «tempo é dinheiro» se tornou a chave mestra da ideologia capitalista. O capataz, funcionário que media o tempo, tornou-se uma peça fundamental na engrenagem produtivista nos alvores do capitalismo.
Nas primeiras fábricas, os patrões chegavam a manipular os relógios ou a fazer soar as sirenes antes ou depois da hora para burlar aos seus assalariados um pouco dessa valiosa mercadoria que passou a ser o tempo. Tais práticas passaram a ser mais ou menos frequentes, mas a influência do relógio fez-se sentir sobretudo por via da imposição de uma regularidade nas vidas da maioria dos homens, regularidade essa que anteriormente só existia nos mosteiros. Os homens tornaram-se realmente como relógios, actuando com uma regularidade repetitiva que não se aparentava absolutamente nada com a vida e o ritmo natural. Os homens tornaram-se, segundo a expressão vitoriana, «regulares como um relógio». Somente nas áreas rurais, onde a vida natural dos animais e das plantas, juntamente com os fenómenos atmosféricos, dominavam ainda a existência, é que uma boa parte da população conseguiu evitar o tic-tac mortal da monotonia.
No princípio, essa nova atitude face ao tempo, esse pautar regular da vida, foi imposto aos pobres pelos amos contra a vontade daqueles. O «escravo» da fábrica reagiu, vivendo o seu tempo livre com irregularidade caótica, aliás característica dos subúrbios da industrialização dos princípios do século XIX, com o recurso a bebedeiras e outras formas de fazer passar o tempo... O engaiolamento dos homens nas fábricas de produção industrial concorria com a bebida e a religião. Mas, gradualmente, a ideia de regularidade vulgarizou-se no seio dos trabalhadores. A religião e a moral jogaram então a sua cartada ao proclamar pecaminoso o «passar o tempo» sem nada fazer. A produção em massa de relógios, a partir de 1850, ajudou à tomada de consciência do tempo, para quem até então só conhecia a sirene da fábrica para marcar o tempo. A pontualidade converteu-se na maior virtude, na igreja como na escola, na oficina como na fábrica.
A desmoralização que reina hoje na vida fabril ( e, de um modo geral, empresarial) nasceu justamente dessa dependência escravizadora do tempo mecânico, que no século XIX se alastrou insidiosamente a todas a sociedade. Quem não se adaptasse ( ou se não adapte) ao todo poderoso ritmo do tempo do relógio terá de enfrentar a reprovação social e a não menos certa ruína económica, a não ser que escolha um estilo de vida não conformista no qual o tempo não tenha tanta importância.
As refeições apressadas, a luta matutina e vespertina por um lugar nos transportes colectivos, ou as intermináveis filas de automóveias que bloqueiam os acessos às cidades e aos centros industriais e comerciais, a pressão de ter de trabalhar segundo um horário fixo, ou por turnos, contribuem sem margem para dúvida para a alteração dos processos digestivos e nervosos, enfim, para arruinar a saúde de quem trabalha neste ritmo infernal.
Impor uma tal regularidade não significa geralmente maior eficiência. De facto, a qualidade do produto deixa a desejar, uma vez que, sendo o tempo uma mercadoria, a imposição de uma velocidade de produção obriga a menor tempo e dispêndio na realização das tarefas. O critério reinante passa a ser a quantidade e não a qualidade, e por isso retira-se ao trabalho assalariado toda a sua capacidade de satisfação e o trabalhador converte-se consciente ou inconscientemente num produto da medição do tempo que o leva a olhar permanentemente para o relógio para saber quando chegará a hora do fim de trabalho e ter acesso a outra forma de tempo padronizado em que se tornou por sua vez o «tempo livre» na sociedade capitalista contemporânea. Tempo livre esse que se traduz não raro em «matar o tempo» - medido também em horas e minutos – a ver tv, jogar cartas, ir ao futebol, tudo isto medido segundo o seu cansaço e o seu salário.
Só quando estiver disposto a viver segundo a sua capacidade e criatividade é que o homem pode evitar viver como um escravo do relógio.
O problema do relógio tem paralelo ao problema da máquina. O tempo mecanizado teria valor como um meio para coordenar as mais variadas actividades de uma sociedade altamente desenvolvida, tal como a máquina podia ser utilizada como um meio para reduzir o tempo de trabalho desnecessário. Ambos poderia humanizar a sociedade e ajudar os homens a cooperarem e contribuir para a superação do trabalho monótono, tornando espúrio o controle e o domínio de uns homens sobre os outros.
Infelizmente, o movimento e ritmo do relógio determina hoje em dia o quotidiano da vida humana nas nossas sociedades. Os indivíduos tornaram-se subservientes do conceito de tempo, criado por eles e utilizado pela economia capitalista em seu próprio benefício. O relógio converteu-se como Frankenstein: um monstro de quem os seus criadores têm medo.
Numa sociedade livre e saudável esse domínio do homem pela máquina tonar-se-á ainda mais ridículo que a dominação do homem sobre o homem. O tempo mecânico seria relegado à sua verdadeira função como meio de coordenação e os homens voltariam a Ter ums visão equilibrada e saudável já não pautada nem determinada pela adoração pelo ritmo do relógio. A liberdade completa exige a libertação da tirania deste tipo de abstracções, para além, evidentemente, do desaparecimento das estruturas de domínio de uns homens sobre os outros.
George Woodcock