15.8.05

Somos uma cultura predominantemente fêmea?



Ruralidade: uma espeleologia da alma portuguesa

Autora: Natália Correia


É tempo de abrirmos a arca da cultura que nos é congénita, fazendo falar os símbolos de uma ruralidade que nos desvenda a razão de sermos uma cultura predominantemente fêmea.

Pulverizadas que são as últimas migalhas da expansão, é na cultura do sedere português que devemos procurar indicações para nos entendermos com as nossas raízes. Chega assim a altura de não disfarçarmos com cosméticos europeizantes, que os nossos deputados são a província, os nossos ministérios são a Beira, as nossas revoluções são a Maria da Fonte, os nossos heróis populares são a mesma Maria da Fonte e a Padeira de Aljubarrota, a nossa paz institucional é o pasmo domingueiro no largo da aldeia, a nossa igreja é o abade ( que bem haja!) com santa gula e hierogamia, o nosso génio romanesco é, de Camilo a Aquilino, um caminho rústico de comezainas de orelheira e pançadas de amor com remate lógico de morte com congestão amorosa e a própria urbandade queirosina é a náusea desabafada em ironia pelos ridículos de um Portugal feito cidade que só nas serras é rudemente autêntico.
E tome-se, ainda, esses ridículos como o caricato de uma caricatura do figurino urbano, pose mal entrajada de uma ruralidade que invade a cidade indefesa (por insuficiências de sólidos fundamentos burgueses) para se defender da rusticidade que a ocupa.
Esta realidade nada tem de desprimoroso. Grotesco será não assumi-la. Direi mesmo que, numa tendência moderna de regionalização como processo de absorção das demasias mórbidas do urbanismo, a ruralidade é antes uma disponibilidade para um contorno cultural, dialecticamente apreciável no difuso do planetarismo.
Será pois tempo de abrirmos a arca da cultura que nos é congénita, fazendo falar os símbolos de uma ruralidade que nos desvenda a razão de sermos uma cultura predominantemente fêmea. Não se escandalizem as petulâncias da virilidade portucalense com esta relação que estabeleço entre o rural e o feminino. Qualquer aldeão abaixará a grimpa da viripotência a quem pretender o contrário, remetendo para a patroa o atino em assuntos grados da vida.
O propósito destas palavras é o interesse com que li o livro de Moisés Espírito Santo, «A Religião Popular Portuguesa». Nas explorações sócio-antropológicas do autor realizadas no Norte do país é relevante reter os substratos politeísta e matrista ( a religião de Mãe tem sempre o carácter teodemocrático de politeísmo) que, cristianizados, persistem no culto dos santos e no marianismo populares. Do mesmo modo que o patrismo olímpico, para se sobrepor à religião arcaica da Mãe, tolerou a persistência dos «mistérios femininos», a patriarcalidade judeo-cristã impõe-se, transferindo as divindades do pré-cristianismo para os santos e a Grande Mãe partenogenética para a Virgem Maria. A pujança desses velhos ritos e símbolos, sob o verniz da sua cristianização relacionam-se com comportamentos que só no baptizado, na comunhão, no enterro e às vezes no casamento, permitem às estatísticas garantirem um país esmagadoramente católico.
Mas, seguindo o trilho percorrido por M. Espírito Santo, a feminização dos santos popularmente cultuados indicam-nos o matronato da divindade feminina. Uma emasculação que encontramos em todos os mediadores da religião da Mãe. Quer nos mitos da antiguidade como o de Diana de Éfeso e o da Deusa Síria; quer nos ritos de fertilidade ainda praticados nas sociedades ditas primitivas em que a efeminação é requisito da ordenação sagrada a exemplo dos sacerdotes dos índios, Pueblos do Novo México que são chamados «mujerados».

Primazia do feminino

Esta primazia do princípio feminino agora observada por M. Espírito Santo na sua «espeleologia da alma popular» ( no que segue Roger Bastide) é enriquecida por uma colecção de símbolos e de formas rituais que claramente nos situam num sistema matrista:o culto das pedras vaginais, a serpente ginocrática, a forma matriarcal da circularidade da aldeia, a lunaridade, a santificação das águas (uterinas), o sacerdócio feminino das «mulheres de virtude» e muitas outras práticas e crenças da mitologia popular ligadas a uma provedoria materna que actua do nascimento até à morte. Desde a Mãe marianizada que protege a maternidade, à Mãe ctónica em cujo seio o filho é reintegrado. Representações simbólicas de uma realidade social que contrasta com o patrismo urbano. E ao estabelecer este confronto, M. Espírito Santo tem um achado particularmente brilhante. É a referência iconográfica da Imaculada Conceição, minguada de formas, tipificando a filha e a esposa obedientes de uma sociedade aburguesada pelo mercantilismo. O cunho patrista do culto desta madona oficializado no século XVII confirma-se finalmente no facto de ela não trazer consigo o filho que, no mundo burguês pertence ao pai.
Bem diferente é a iconografia das Senhoras Camponesas que, dotadas de formas planturosas herdadas da robustez das divindades arcaicas femininas, não só seguram o menino como, na sua exuberância sumária, representam a fonte do leite que nutre a comunidade.
Deste confronto colhe concluir-se que, num país onde a burguesia é uma desvocação que se ilude em empresas descontínuas de curto alcance, a religião da Mãe é bem mais idónea à nossa cultura do que o símbolo madonal veiculado pela ideologia burguesa da autoridade paterna.
Retenha-se ainda outro traço vincadamente matricial recolhido por M. Espírito santo: a magia. Na importância atribuída aos meios mágicos prevalece o princípio do oficiante ser um agente activo, e não passivo, como acontece nas religiões do Deus que se afastou da natureza, já que esta é consubstancial à Deusa Mãe. Compreende-se, assim que, em oposição ao absolutismo uniteísta que caracteriza a religião do Pai, voltada para o transcendente inapreensível, a magia inserida na religião da Mãe subentenda o poder de produzir a acção divina, a liberdade de agir sobre a vontade das forças que regem a natureza e mesmo de modificá-la, pela eficácia do rito mágico. Esta crença mo valor da influência da vontade humana sobre os desígnios divinos, antípoda da passividade da fé no Deus absoluto do sistema patrista, completa-se na feição teodemocrática do pluriteísmo transferido para o culto dos santos. A relação mãe-liberdade, aliás patente na característica orgiástica dos ritos matristas e no comunitarismo da Aldeia-Mãe ( depois Mãe-Pátria) não foi certamente negligenciada no quadro de comportamento que Rattray Taylor estabeleceu para o ciclo matriarcal no qual inscreve a democracia política contrapondo-a ao autoritarismo político que atribui ao regime patriarcal.

Fórmulas encantatórias

Ainda no domínio dos ritos mágicos, não é menor subsídio para a «espeleologia» da lama popular português a crença na eficácia da palavra nas fórmulas encantatórias. A sacralização da palavra nos ensalmos ou encantações não me parece de subestimar na verbosidade dos portugueses que no seu mais falar do que agir denotam uma confiança residual na virtude encantatória da oralidade. Esta cultura que é característica das culturas femininas, quando depreciada na óptica do princípio masculino recebe o estigma de tagarelice considerada superficialidade de mulheres. Já do ponto de vista do princípio feminino a magia verbal que subjaz à crença no poder persuasivo da palavra é implicitamente estimada na desconfiança inspirada pelas pessoas de poucas falas. Antipatia proverbialmente posta em metáforas animalistas tais como «calado que nem uma mula» ou «cão que ladra não morde».
Encontro finalmente no estudo de M. Espírito Santo importantes coonestações, no campo da ciência social, de pesquisas e alvitres que tenho arriscado sobre a génese matrista da cantiga de amigo. Apoiada pela etnografia e estudo comparado com a mitologia, simbólica e ritos de outras religiões populares vinculadas à Mãe, foi-se-me afigurando cada vez mais nítida a matriarcalidade da cantiga paralelística. Os elementos que juntei, desde o esquema tautológico da estrofe de proveniência mágica, até aos tópicos da «árvore do amor», da «fonte de amor» da propriedade materna das ondas ( que persiste no ritual do banho santo), a inexistência do pai e muitos outros dados inequivocamente matriarcais, encontram-se nos materiais coligidos por M. Espírito santo na sua «Religião Popular Portuguesa».
Não se espera, bem entendido, que este livro comova os chamados agentes culturais da superestrutura que, entre as graçolas industrializadas, de Andy Warhol e o snobismo leitor de «O Nome da Rosa» ( tudo do lá de fora) não têm tempo para ouvir camponeses. Ouvi-os, porém, Teixeira de Pascoais que escreveu o «Marânus», parido pela Mãe da Montanha e vestiu-se Fernando Pessoa de «guardador de rebanhos?, ligando os sentidos às falas naturais da Terra Mãe,mpara que a bandeira do seu género não ficasse a meia haste. E quem duvidar deste selo de idoneidade na obra poética dos nossos maiores, releia Miguel Torga que faz versos, e mesmo prosa com torrões da Terra Mãe.
Pense-se, sobretudo, que a estabilidade emocional da nossa sociedade, atingida por uma massificação espúria à sua realidade anti-burguesa, não dispensa o fantástico e o irracional que têm as suas fontes no matrismo da sua congénita ruralidade.
Neste vazio em que caminhamos para um futuro temerário, a Religião Popular Portuguesa de M. Espírito Santo aconselha-nos precisamente a escutar o apelo da Mãe rústica que, mesmo indumentada de homem, é o seio que nutre a nossa cultura.


Autora: Natália Correia
Texto publicado no nº 98 de 22 de Maio de 1984
do JL, Jornal das Letras, Artes e Ideias

O tempo dos beatniks



Os beatniks surgem nos Estados Unidos no final da década de 50, tendo como pano de fundo o «maccarthismo». Rapazes e raparigas – jovens, muito jovens – que recusam o império do terror, da produção, do consumo.
À guerra fria, à chantagem da bomba atómica, à miragem da opulência, ao modelo do homem do «sistema», respondem com um «não» que tanto tem de instintivo como radical.
São poetas, romancistas, dramaturgos – todos eles heréticos. Não acreditam no modelo da racionalidade científica que lhes é proposto pela Universidade, pelo mundo dos negócios e pela classe política. Pelo contrário, preferem a abordagem espiritual, a visão, a imaginação. Não acreditam no homem produzido em série, moldado pelas sociedades de progresso e de destruição, tanto a Leste como a Ocidente: optam pelo indivíduo, pela integridade humana, pela protecção a todo o ser vivo. Não acreditam na diferença entre o sistema capitalista e o sistema socialista, já que para eles os modos de produção, os meios de controlo, a ordem científico-burocrática não conhecem fronteiras geográficas nem ideológicas. Um exemplo pessoal –embora esta geração só queira julgar com base na experiência – que funciona igualmente como um sintoma: Ginsberg é expulso de Cuba por ter defendido a causa homossexual, sendo posteriormente acusado de droga, em Nova Iorque.
Ingénuos, utopistas, irresponsáveis – que dizer destes indivíduos que encarnam o espírito de Maio? A rejeição do racionalismo não provocará a erupção do irracionalismo delirante, a espiritualidade, o misticismo desmobilizador? A valorização do indivíduo não implicará a ruptura com o mundo, o autismo colectivo, o isolamento na fruição de um prazer egoísta? Não servirá a identificação do funcionamento social no Leste e no Ocidente para travar as lutas, encobrir o inimigo principal e encorajar o «statu quo»? Existem alguns riscos, é um facto. Há ainda o perigo dos desvios de que falaremos adiante. Mas, para além destes riscos, no interior dos próprios riscos, subsistem os preciosos germens da subversão. O grito de Allen Ginsberg é também o de todo o indivíduo que tenta resistir à ameaça de normalização. O silêncio de Burroughs é também a arma do guerrilheiro que se prepara para fazer descarrilar o comboio. As palavras proferidas por Kerouac são exactamente aquelas que milhões de homens e mulheres ousarão dizer e repetir, ao longo dos dez anos seguintes.
A explosão dos anos 60 é impensável sem o contributo dessa geração que prepara o terreno para uma certa «revolução cultural» e para algumas «práticas de rupturas» sociais. O essencial é destruir a consciência propagada pelos meios de comunicação social de massas. Criar uma nova consciência. Pôr termo ao primado do factor económico, do centralismo, da hierarquia. Foi dentro deste espírito que se travaram no século XX, nos Estados Unidos ( e noutros países) lutas sem precedentes contra o racismo ( Movimento dos Direitos Cívicos), contra a desigualdade ( Movimento dos Direitos Sociais), contra o sistema de reprodução ( Movimento Estudantil) e até contra alguns aspectos do imperialismo ( Movimento contra a guerra do Vietname).

1960: O que diziam os heréticos

Ginsberg: «O nosso passado recente é a história de uma vasta conspiração para impor à humanidade um nível único de consciência mecânica e para destruir todas as manifestações exclusivas da nossa sensibilidade. A supressão da individualidade contemplativa é praticamente total»
Burroughs: «É preciso eliminar a máquina, agora que ela nos prestou o serviço de mostrar os perigos do controlo. Sou decididamente hostil à Ciência, porque sinto que a conspiração está prestes a impor o universo científico como o único universo real. Os cientistas são os drogados da realidade. Necessitam sempre de exercer o seu domínio sob qualquer coisa de real.»
Corso: «Recusamos a enfiar o colete-de-forças dos princípios morais legados pelos nossos pais, feito à base de fragmentos e de restos, cosido com a superstição de uma mitologia primitiva. Somos muitos. Faremos ouvir a nossa voz, com vista a alterar as leis que governam os nossos pretensos países civilizados. Por todo o lado, essas leis implantam polícias secretas, campos de concentração, de opressão, de escravidão, guerras e mortes.»

A Revolução Cultural

Ginsberg: «Aproxima-se uma verdadeira revolução nas relações humanas. Os indivíduos devem tomar de assalto os meios de comunicação e os postos de controlo. As técnicas utilizadas pelos poetas para transformar o mundo das artes podem facilmente ser aplicadas às centrais telefónicas, aos postos emissores de rádio, ao serviço de controle de informação, aos centros de escuta, ás mais ínfimas ramificações da vasta rede que cobre com a sua teia de aranha, as partes mais civilizadas do Mundo.»

Snyder: «A sabedoria é o conhecimento do espírito de amor e clareza que se esconde por detrás das angústias e das agressões suscitadas pelo ego. A meditação é a penetração na psique para que cada um possa constar tudo isso. A moralidade consiste em exteriorizar essa sabedoria na vossa forma de viver, através do exemplo pessoa e de uma acção responsável, a fim de atingir finalmente a verdadeira comunidade de todos os seres humanos.»

Ginsberg: « A humanidade precisa de um tipo de revolução que se proponha recuperar as zonas cerebrais inutilizadas, alargar o domínio da consciência, torná-la, assim, capaz de comunicar mais profundamente do que no nosso actual sistema de comunicação pré-histórico e estabelecer uma forma de contacto cerebral com todo o universo.»

Burroughs: « É preciso fazer a revolução cultural. A emancipação sexual é um elemento com o mesmo peso que a luta contra a censura. O sistema não pode deixar de endurecer e tornar-se fascista ou, pelo contrário, ceder cada dia mais terreno.É aí que devemos intervir. Tudo o que posso dizer é que, no curso da História, as armas mais poderosas foram sempre as novas formas de consciência e que a revolução fundamental só pode ser o resultado de uma evolução. A inquisição e o poder da Igreja durante a Idade Média não foram derrubados por meio de uma acção revolucionária directa. O seu domínio desfez-se porque foram ultrapassados pela evolução da consciência humana.»

1980: o ataque de todos os ângulos contra a tradição libertária

O elo de ligação entre estes opositores escritores ou militantes – empenhados em percursos múltiplos, paralelos, e até mesmo compartimentados, reside numa certa identidade de análise: a opressão tem múltiplas formas, sendo irredutível a uma única dimensão; é de natureza política, policial, económica, social, cultural e ideológica, etc. O objectivo não é a tomada do poder do Estado –o que asseguraria da melhor maneira a renovação das elites – mas a criação de uma nova sensibilidade, só ela capaz de transformar as estruturas fundamentais. O ideal da Revolução ( que, segundo a expressão de Burroughs, não é senão «circum-volução» nas suas encarnações históricas) dá lugar à vontade concreta de emancipações de carácter imediato, plural e quotidiano. Lutas desencadeadas, não à escala nacional ou internacional, mas local. Uma estratégia de conjunto baseada em tácticas descentralizadas.
Muito há a dizer acerca dos limites, da ambiguidade, das contradições de semelhante projecto. O balanço crítico está por fazer. Contudo, não é um balanço dessa natureza que hoje assistimos, antes à deformação metódica de uma concepção do mundo e à desvalorização sistemática de uma sensibilidade que, a julgar pela violência das suas reacções, incomoda a fracção mais «pura» da esquerda, tanto em França como nos Estados Unidos.
A rejeição da visão libertária, uma das mais importantes tradições populares, é sintomática do crescimento do vasto movimento conservador que atravessa o mundo em crise. Assistimos ao reforço do autoritarismo de direita e do sectarismo da esquerda.
Não é de espantar o ataque feito à direita. A tradição libertária é anti-autoritária, anti-hierárquica, anti-centralista, enquanto a tradição conservadora dominante, quer em França, quer nos Estados Unidos, é autoritária, hierárquica e centralizadora: o federalismo americano corresponde ao centralismo francês e o recente descomprometimento do Estado, de um e do outro lado do Atlântico, não constitui qualquer ameaça à realidade do poder do Estado. Nos anos 60, a tradição libertária contribui marcadamente para o forte arranque democrático caracterizado pela explosão das reivindicações igualitárias, mas também pelas várias modalidades de reivindicação: mobilização de massas, acções directas, lutas conduzidas à margem dos partidos, dos sindicatos e de outras organizações institucionais.
Ao encorajar a participação directa, estes meios fazem vacilar o sistema representativo tradicional, minam o poder do Estado, aumentando a crise de autoridade. Torna-se, então, necessário travar esses «excessos de democracia» e, parafraseando Samuel Huntington, um dos ideólogos do neo-conservadorismo americano, estabelecer «os limites desejáveis à extensão indefinida da democracia política». O equilíbrio não assenta na restauração da autoridade através de «hierarquia, da avaliação e da riqueza»?


A aliança dos neoconservadores e dos neo-estalinistas

As críticas às ideias e ao pensamento libertário dos beatniks provêm quer da direita neoconservadora quer da esquerda clássica neo-estalinista.

A descentralização,o anti-estatismo e o associativismo são conceitos de esquerda. E existe, sem dúvida, uma corrente minoritária de direita favorável a estes princípios, mas tal será suficiente para ignorar a poderosa tradição anarco-sindicalista norte-americana ( a realidade das suas lutas, a importância das suas vitórias) e anular os laços entre a tradição libertária e a tradição marxista?

Costuma-se também dizer que as práticas libertárias dos anos 60 são recuperáveis, permitindo até aos liberais o reforço de uma ordem baseada na permissividade, na modernidade e no mundialismo. Os libertários seriam, portanto, os aliados objectivos dos liberais! É evidente que, hoje em dia, o controlo social depende mais do que nunca do alargamento dos espaços das pseudo-liberdades e Marcuse foi o primeiro a denunciar as inúmeras manifestações de «tolerância repressiva». Mas como é possível aceitar a identificação caricatural das práticas libertárias dos anos 60 com os seus desvios, levados a cabo, nos anos 70, pelos estrategos de um reformismo new-look?

Aliás, como não detectar nas teorias desses defensores do Estatismo uma contradição – ingénua ?, demagógica?, táctica? – no reconhecimento de determinadas formas de descentralização? Finalmente como escapar à inquietação provocada pela retórica dos centralizadores, que mascaram o seu autoritarismo sob a capa do discurso da regionalização?

A nova sensibilidade, representada pelos libertários beatniks, provém dos Estados Unidos, estando, portanto, marcada pelo estigma do capitalismo. A sua principal manifestação seria a «nova esquerda americana» dos anos 60, caracterizada pela sua afeição apolítica, que exerce atracção junto dos grupos sociais «ideologicamente mais fracos» recém chegados à política. Lutar contra esta sensibilidade libertária seria assim lutar contra o imperialismo americano e a favor da verdadeira política de massas. Contra o mundialismo dos capitalistas e a favor do nacionalismo dos trabalhadores. O Estado nacional, democraticamente reestruturado, aparece como o único obstáculo à recomposição do capitalismo… Eis o que defendem os corifeus da Esquerda pró-estatal. Estadistas de todos os países, uni-vos! Nessa luta sem tréguas, levada a cabo contra a tradição libertária, acabamos por perguntar a nós próprios se o conluio tão estrondosamente denunciado entre libertários e liberais não se situará preferencialmente entre os liberais neoconservadores e os neo-estalinistas.

Os desvios dos anos 70

Os riscos de desvio da ideologia libertária são, contudo, reais, sobretudo numa época marcada pela desvalorização sistemática da coisa pública e pela sobrevalorização do domínio privado. Assiste-se à aceleração de um duplo processo histórico: à queda do homem público e à ascenção do homem privado. A erosão do sector público está associada ao aparecimento do Romantismo, que vem perturbar o equilíbrio clássico entre o público e o privado. E a exploração do sector privado está relacionada com o aparecimento de uma produção de massas destinada a satisfazer as necessidades individuais. Hoje em dia, a estabilidade social assenta claramente neste duplo movimento de desenvolvimento público e de desenvolvimento privado.
Travadas numa perspectiva de libertação global, mas a partir de práticas individuais, as lutas de emancipação inspiradas pelos libertários dos anos 60 estão longe de ter conseguido ultrapassar os objectivos meramente pessoais, de se terem conseguido organizar em acções eficazes e de terem conseguido opor uma resistência efectiva a esse vasto processo de privatização. Não é sem alguma ironia que se chega à conclusão que a luta contra o homem do «sistema» tenha dado origem a um novo modelo cultural – o de um Narciso perfeitamente mesquinho, isolado do mundo exterior ou, pelo contrário, perfeitamente integrado. E não é de todo impossível estabelecer uma filiação, degradada é certo, entre o ideal narcisista de análise de um «eu» fragmentado e o ideal «beat-nik» (Nota: segundo Norman Mailer o termo beatnik foi forjado em San Francisco e resulta da fusão de beat, expressão do jazz que significa ritmo, com o sufixo nik, que é um diminutivo pejorativo em indiche) de exploração de um espaço individual e colectivo infinito.
O exemplo do mais espectacular desvio é o de Jerry Rubin, um dos líderes do Movimento Estudantil de Berkeley, em 1965, e o principal organizador da marcha sobre o Pentágono contra a guerra do Vietname, em 1968. Presentemente, Rubin lamenta-se no mais completo delírio egocêntrico: «Durante cinco anos», recorda orgulhosamente na sua autobiografia, «de 1971 a 1975, experimentei pessoalmente EST, a Gestalt terapia, a bioenergia, a massagem, o jogging, a dança moderna, a meditação, o controle espiritual Silva, a acupunctura, a terapia sexual, a terapia reichiana, a «More House» - um verdadeiro curso de nova consciência. Aplicava-me desde as sete horas da manhã, com uma curiosidade e uma energia sem limites».
O desvio não se limita a alguns desvios. A América dos anos 70 foi contaminada por esta procura de bem-estar meramente pessoal. A tomada de consciência individual, por si e para si ( «self-awareness» ou auto-conhecimento), torna-se em pouco anos a nova panaceia nacional. O objectivo a atingir é o «contacto» consigo mesmo; a relação com o mundo, com a natureza, com os outros; a «paz interior» que isola do barulho e da fúria. Mas os promotores desta nova indústria da crença do «eu» não visam apenas melhorar a saúde individual e a qualidade de vida. Eles vêem nas suas práticas a chave do progresso social, a solução para os problemas sociais, nacionais e até internacionais. Considera que os seus métodos permitem uma «profunda politização» do indivíduo e uma abordagem mais global. É, ainda, Jerry Rubin que encarna isto ao declarar: « A visão implica a luta, e a visão psíquica, a harmonia. Em síntese, posso criar harmonia na luta e permanecer harmonioso enquanto luto.»


A questão no início dos anos 80

Os desvios da ideologia libertária são indiscutíveis. Igualmente incontestáveis são as desinformações que lhe são infligidas pelas novas ideologias autoritárias. Uma questão surge: quais as possibilidades de acção da tradição libertária no contexto da nova ordem que surge após a crise de 1973-74? NO decorrer dos anos 60, apoiada de alguma modo por um crescimento económico sem precedentes, a tradição libertária contribuiu para fazer recuar o «maccarthismo» e fazer progredir a consciência ( e, consequentemente, a condição) dos homens e mulheres. Mas qual o seu papel, num contexto de estagnação, de inflação e de desemprego, em que o centro de gravidade se desloca da esfera nacional para a mundial, das classes proletárias para as nações proletárias e em que técnicas de controlo social atingem graus de sofisticação impensáveis?
O possível impacte da tradição libertária depende da ausência de sectarismo. A nostalgia de 68 é tão absurda quanto ineficaz. A complexidade social impossibilita o recurso a simplificações e a exclusivismos. O momento já não é de certezas. A nostalgia jacobina, também ela, é ineficaz e absurda. A única conquista do poder do Estado é tão pouco satisfatória quanto a mera transformação das estruturas mentais. As tradições antagonistas devem enriquecer-se e procurar atingir um equilíbrio entre si. Estas condições prévias devem impor-se pela sua evidência.
Numa análise mais precisa e imediata, qual o contributo da leitura dos poemas, dos romances, dos ensaios da geração beatnik? Em primeiro lugar, a consciência quase profética das novas formas de controle social: é a revelação, com muitos anos de avanço, daquilo que, hoje em dia, se designa por «sociedade informatizada», «armadilhas liberticidas do computador», etc. Por outro lado, um modelo de estratégia ( contra o inimigo, utilizar a arma do inimigo ) e um registo de estratégia: a retórica, o discurso da publicidade e, contra esses discursos, a arma das palavras, a frase, o poema, a escrita. De igual forma, o sentimento de que a subjectividade não está inelutavelmente virada para si própria, mas funciona como uma condição prévia para a acção; a subjectividade pode e deve ser subversiva. Para retomar a fórmula particularmente feliz empregada por Marcuse num dos seus últimos textos, « a subjectividade rebeldes prepara um dos aspectos da libertação: o da existência de indivíduos solidários, tanto ao nível da acção como no plano da sensibilidade».

Autor: Pierre Dommerges, in Magazine Littéraire nº157, Fevereiro de 1980

Monte da Verdade (Monte Verità, Ticino, Alpes,1906)


Em 1906, Ida Hofman e Herny Oedenkoven, fundadores do Monte Verità ( Monte da Verdade) afirmaram que « perante o facto das relações humanas estarem dominadas pelo egoísmo, as aparências, o luxo e a mentira», era « necessário mudar as nossas vidas para uma forma mais natural e saudável de existência»Por essa razão fundaram o Monte Verità em Ticino, no coração italiano dos Alpes Suíços.
Rapidamente os intelectuais europeus mostraram interesse pelo projecto e deram-lhe o seu apoio.Nomes como Jung, Eliade, Otto Hesse, Kropotkin, Gross, Steiner, Arp, Joyce, Rilke, Mann, Frisch, Klee, Brecht, Stefan George; Duncan e muitos outros, entre os quais vegetarianos, nudistas, teósofos, anarquistas, literatos e utopistas cheios de vontade e em busca da verdade passaram pelo Monte Verità.

« Numa realidade onde as relações humanas estão dominadas pelo egoísmo, o luxo, as aparências e a mentira, e conscientes dessa condição através das doenças do corpo e do espírito que nos assaltam, decidimos mudar as nossas vidas para uma forma mais natural e saudável de existência»
(Ida Hofman, Henry Oedenkoven, fundadores do Monte Verità, 1906)


Quando perguntaram ao médico anarquista Raphael Friedeberg como é que estava a sua mulher, a teósofa Emy Lenz, ele respondeu, sarcástico: « A organizar um sindicato teosófico»

Em 1900, sob o ambiente histórico e filosófico da Europa do período da pré-guerra, aparece a singular história da realização de uma utopia que tomou o nome de Monte Verità. Singular não só pelo seu alcance mas também pela radicalidade das suas propostas iniciais, e pela atracção que exerceu sobre inumeráveis artistas e pensadores, inclusivamente pelo facto de ter preparado o terreno para a criação do Círculo de Eranos, o qual teve como expoentes figuras como Carl G. Jung, Rudolf Otto, Karl Kerenyi, Joseph Campbell, Mircea Eliade, Gilbert Durand, Gershim Scholem, Henry Corbin e Gerardus van der Leeuw.

Na região sul dos Alpes suíços, o Ticino, localizam-se vários lagos da Suíça italiana, entre eles o Lago Maggiore, imponente pela sua extensão e por se achar encravado no coração dos Alpes. Chegar às aldeias ribeirinhas do lago é como aterrar numa espécie de oásis, no meio de uma paisagem tropical, cujos grandes picos se reflectem na superfície brilhante dos lagos. No século XIX, várias povoações estabeleceram-se ao seu redor, entre elas a comunidade de Ascona. A região está dotada de um clima subtropical muito diferente das temperaturas extremas do resto da Suiça. A riqueza mineral é enorme e dá ao lugar um magnetismo especial que propicia o aparecimento de inumeráveis lendas. A região adquiriu um prestígio de paraíso terrestre, quase mágico. E rapidamente começou a receber refugiados políticos e pensadores que fugiam da atribulada vida das grandes cidades europeias, ao que contribuía a tradicional neutralidade Suiça face aos conflitos do resto da Europa.


O fim do idealismo alemão, o aparecimento do materialismo, o pensamento de Nietzsche e as teorias de Freud pareciam unir-se na luta contra a filosofia positivista que ganhava força com a industrialização: ordem e progresso unidos sob a batuta da ciência.

Recorde-se que o anarquismo tinha ganho raízes em Ascona desde que em 1869 o célebre anarquista russo Bakunine tinha vindo residir para aqui como refugiado político.
Também pouco tempo depois começaram a chegar outros refugiados com projectos distintos, como o de fundar um convento laico com o nome de Fraternitas, por iniciativa de teósofos como Alfredo Pioda e Franz Hartmann, justamente nas montanhas de Ascona, que receberiam então, mais tarde, o nome de Monte Verità.

Em Novembro de 1900, Ida Hofmann(feminista, anarquista, professora de piano nascida na Áustria em 1864), Henry Oedenkoven(n.1875-m.1935), Gustav Gräser, Lotte Hattemer, Karl Gräser y Jenny Hofmann decidem criar uma comunidade autárquica e libertária que os afastasse da civilização. Chamaram ao seu projecto Cooperativa Vegetariana Monte Verità. Escolheram Ascona porque descobriram que na região residiam grupos isolados que viviam quase que em clandestinidade. Além disso, discordavam profundamente do rumo que as sociedades ocidentais estavam a tomar. Decidiram então adoptar a chamada «terceira via», conhecida na Alemanha como «Lebensreform» ou Reforma da vida, que tinha como antecedente o pensamento de Bernstein. Muitos jovens da burguesia europeia que não desejavam transformações profundas na economia sentiram-se atraídos por este projecto. Tal foi o caso do casal Ida Hofmann e Henry Oedenkoven, ela professora e, ele, jovem herdeiro. Também as ideias de Karl Graser influenciaram o grupo. Graser preconizava que as reformas de vida se deviam inspirar no Émile de Rousseau, bem como na ideia de Tolstoi, para quem o homem deve seguir aquilo que a sua consciência determina.
O irmão de Karl, o poeta e pintor Gustav Graser, com 21 anos, e a irmã de Ida, Jenny, foram os dois elementos mais radicais de todo o grupo. Gustav tinha pertencido a vários círculos boémios da Alemanha. Mais tarde, Hermann Hesse converter-se-ia num dos seus discípulos.

A Reforma de vida para aquela comunidade baseava-se numa dieta vegetariana estrita, na prática do nudismo, mesmo durante as intempéries, no amor livre, formas de vida simples e naturais, assim como na reforma de vestir e da escrita. Tratava-se, fundamentalmente, numa proposta de vida anti-citadina, uma espécie de contra-mundo que procurava o regresso à natureza.
No desenho utópico do Monte Verità e do seu projecto de vida comunitário valorizava-se a busca de uma pureza espiritual, da mesma maneira em que Rousseau via o regresso à natureza como um reencontro com o sagrado e com toda a forma de bondade e felicidade. Renunciava-se a toda e qualquer relação com o mundo civilizado. Para isso era indispensável a criação de um habitat natural, a renúncia à roupa, ao soutien e aos espartilhos, substituindo-as por túnicas simples de linho, camisas largas, calças semicurtas e sandálias ( alguns preferiam andar descalços). A vida comunitária, um regime de vida natural e os movimentos mutualistas constituíam uma tríada indissolúvel.

Ida e Henry viam no uso do capital para lançar o projecto Monte Verità como um mero instrumento, sempre com a ideia de que as futuras gerações pudessem satisfazer as suas necessidades apenas com os recursos da natureza. Durante um único ano, os fundadores construíram com as suas próprias mãos cabanas à base de madeira, pedra e cal, trabalhando entre as 11 e as 13 horas diárias, vestidos com roupas muito simples ou, então, completamente despidos. Lavraram a terra, semearam jardins e hortas, plantaram árvores de fruta e cultivaram vinhas. Construíram ainda canalizações artesanais e instalações eléctricas com a ajuda de trabalhadores locais. Hoje em dia, ainda se podem observar estas cabanas rústicas: a Casa Selma, a Casa Aida e a famosa Casa dei Russi, onde, em 1905, nela habitaram vários estudantes russos e que serviu de alojamento a Lenine, Trotsky e Kropotkine.

Ida Hofmann e Henry Oedenkoven pensavam que a auto-consciência bastava para criar uma comunidade livre e capaz de viver em harmonia. Porém, a coexistência de pensamentos tão heterogéneos como o anarquismo, o teosofia e o naturismo, ainda que tivessem pontos comuns, acabou por gerar alguns confrontos insuperáveis. Inicialmente, parecia que as divergências incidiam sobre coisas meramente práticas, como seja renunciar ao uso de electricidade ou de aquecedores. Porém, para os irmãos Graser coisas como estas tinham um significado decisivo no que respeita a uma autêntica transformação da vida. Para eles, Ida e Henry violavam os princípios da comunidade quando decidiam aproveitar as riquezas derivadas do capitalismo, ao mesmo tempo que afirmavam que este sistema era a causa dos males sociais.

Apesar de toda a sua ingenuidade, o projecto era assombroso por todo o seu arrojo e convicção. É fácil imaginar que para os anarquistas a prática vegetariana era insossa e absurda. Nas suas memórias, o anarquista Erich Musham recorda: «Depois de ter trabalhado toda a manhã na construção e só ter comido pão e uma maçã, sentia-me a desfalecer, pelo que fui descansar. Henry Oedenkoven perguntou-me então porque é que não continuava a trabalhar tal como os ouros; acabamos por ter uma altercação e ele gritou: “podes ir-te embora; não se perde nada”. Logo que cheguei ao centro de Ascona pedi um bife e um copo de vinho, que me souberam como nunca.»

Os primeiros anos do Monte Verità, até 1905, foram os mais radicais. Com o tempo agravaram-se os problemas financeiros e acentuou-se a divisão entre os vários elementos. Por essa altura, o local era habitado de maneira regular por cerca de 40 pessoas.

Ida e Henry optaram por comercializar a Casa de Cura, que até ali havia servido só para os residentes, transformando-o num sanatório privado com serviço aberto ao público. Uma tal decisão originou enormes divergências e constituiu o ponto de ruptura. Para os anarquistas, Monte Verità tinha-se transformado numa experiência social isolada protagonizada por burgueses excêntricos à procura da «terceira via». Prevaleceu então o grupo de teósofos e naturistas, mas, apesar de vários anarquistas terem abandonado o projecto, a verdade é que não deixaram de o influenciar.
Em 1905 construíram-se as casas maiores e o sanatório vegetariano, que foi baptizado como Sociedade Vegetariana do Monte Verità. A Casa Centarl tornou-se no centro de reunião de toda a comunidade e do sanatório; tinha cantina, sala de música, sala de jogos, assim como espaços com sol e ar para terapias naturais. A Casa Annatta foi construída a partir do conceito teosófico de casa-alma; conservada ainda hoje, o seu exterior parece-se com um paralelepípedo rematado com ângulos rectos de madeira, e por dentro é constituído por formas orgânicas e ondulantes que harmonizam com ângulos arredondados dos tectos, das portas e das janelas.
Um lendário personagem do Monte Verità foi o médico anarquista Dr. Raphael Friedeberg, que atraiu, a partir de 1905, uma colónia de outros anarquistas. Tinha sido militante do Partido Social-Democrata Alemão, e pensou em Ascona como o local ideal para criar uma comunidade anarco-reformista baseada no conceito criado por ele mesmo: o psiquismo histórico. Esta ideia postulava que a libertação do indivíduo podia dar-se a partir de uma edução não coerciva, livre do dogmatismo sócio-religioso da burguesia. Friedeberg desenvolveu a medicina natural ao longo de 35 anos, e nunca deixou de polemizar com a medicina científica, apesar da fama e do prestígio desta.

Outros anarquistas ligados ao Monte Verità foram Erich Musham Fritz Brupbacher, Kropotkine, Ernst Frick, o boémio psicanalista Johanes Nohl, o psicanalista austríaco Otto Gross, que procurou fundar no Monte Verità um matriarcado naturista e comunista.

Erich Müsham tornou-se, no entanto, num crítico ferrenho da comunidade. Para ele havia uma terrível contradição no objectivo de criar uma colónia autárquica inspirada em princípios comunistas. Quando observava a convivência no grupo, alertava: «Todas as colónias comunistas que não se apoiem numa orientação revolucionária socialista terminarão no fracasso, sobretudo quando os laços que unem os participantes são tão insignificantes como os princípios vegetarianos.»


Em 1909 Monte Verità contava cerca de 200 residentes e um número aproximado de opiniões. A maioria eram seguidores do teosofismo, enquanto uma parte minoritária estava próxima do antroposofismo de Rudolf Steiner. Ainda que Ida e Henry não fossem teosóficos, partilhavam também o interesse pela mitologia e reencontro das religiões orientais, sobretudo o hinduísmo e budismo.

A criação em 1910 da Escola da Nova Vida, dirigida por Rudolf von Laban e da sua ajudante Mary Wigman, trouxe ao Monte Verità uma fase de grande ebulição artística; a escola estava próxima da ideia da reforma do corpo e do espírito que preconizava Hofmann. Nesses anos o dadaísmo não deixou de marcar presença com a chegada de Hans Arp e da sua mulher Sophie Taeureb.


Os habitantes de Ascona deram aos monteveritanos o nome de «balabiott», que significa «dançam nus». Alguns velhos habitantes recordam: «Aqueles nórdicos (alemães, suíços, holandeses, ingleses) faziam festas durante noites inteiras, e durante as quais dançavam despidos uma espécie de dança árabe.» Entrar no Monte Verità era proibido para as crianças e jovens de Ascona; para os adultos, aquele local era para os loucos, endiabrados, monstros, seres sujos que viviam em pequenas cabanas como carneiros.
Apontadas com ainda maior temor eram as mulheres que não eram poupadas a adjectivos: « a endiabrada», «a puta», «a cabra negra», «a impúdica».
O Município acabou por proibir as pessoas em circular em Ascona com «minifraldas» porque os «balabiott», quando desciam ao povoado, traziam túnicas largas atadas á cintura, e quando não havia ninguém em redor desatavam-nas deixando à vista as pernas e o corpo.

O Período Expressionista

Não é difícil imaginar que foram as crises financeiras e as rupturas entre os residentes que levaram Ida Hofman e Henry Oedenkoven a abandonar o projecto. Em 1920 decidiram viajar para o Brasil e venderam a propriedade a um triunvirato formado pelos pintores Hugo Wilkens, Max Bethke e Werner Ackerman. Outros artistas mantiveram por lá, entre eles Hans Arp e a sua mulher. Outros dadaístas chegaram, entretanto: Hans Ball, Hans Richter e Richard Hulsenbeck.

Em 1924, os novos donos reinauguraram Monte Verità com uma grande festa que durou mais de meia semana. O princípio do vegetarianismo foi abandonado como norma, podendo os veritanianos deliciar-se com pratos esquisitos, tomar champanhe e andar despidos pelos jardins.
A esta nova etapa que pressupõe uma arte mais dinâmica se chamou o período «expressionista», durante o qual o lugar foi palco de múltiplas exibições de arte, teatro, dança e música com um sentido carnavalesco.

A era do Barão von der Heydt

Perante nova crise financeira em 1926, o Monte Verità foi comprado pelo Barão Eduard von der Heydt, banqueiro, coleccionista e mecenas. O centro naturista converteu-se então ao grande capital. Conhecidos arquitectos da Bauhaus transformaram o sanatório num hotel que funciona ainda hoje.
Monte Verità tornou-se assim o templo das colecções de arte oriental e ocidental do Barão. Mas a prática do nudismo não foi abandonada até à doação do local ao Cantão de Ticino, depois da morte do Barão em 1964.


Monte Verità constituiu-se num espaço de sincretismo religioso que anos depois frutificou por via do Círculo de Eranos, centro de estudos mitológicos fundado pela holandesa Olga Fröbe-Kapteyn, teósofa próxima de Annie Besant e do hindu Krishnamurti.
Fröbe-Kapteyn tinha chegado a Monte Verità em 1924, onde se começou por interessar pelo estudo das religiões orientais. Entabulou amizade com o mitólogo Rudolf Otto, a quem propôs a tarefa de analisar as religiões do Oriente e do Ocidente. Por isso é que, a partir de 1927, se realizaram congressos anuais no Monte Verità, onde estiveram presentes prestigiados estudiosos das religiões. Em 1933, o psicanalista C.G. Jung foi convidado a participar nesses encontros, tendo a sua colaboração prolongado até ao ano de 1951. Graças aos seus estudos durante esses anos Jung reafirmou a sua tese acerca da necessidade de encontrar os arquétipos e as estruturas simbólicas. O resultado de todos esses congressos e encontros constitui um enorme contributo para a hermenêutica simbólica da cultura.

Ao falar de Eranos e dos compromissos de Mircea Eliade com o animismo, o chamanismo e a simbologia alquímica, George Steiner afirma: «Aonde é que, senão em Ascona, se podia tratar de tais temas, de receber o privilégio de uma erudição que fosse a mistura de mais alta qualidade e de uma galhofeira gravidade platónica-nietzscheana?»

A pesar de todos os encontros e desencontros, em Monte Verità refugiaram-se, por curtas e longas temporadas, mais de 600 almas. Muitos deles eram escritores, pintores, músicos, bailarinos e filósofos que não quiseram deixar de passar por esse mágico lugar.

Talvez fosse oportuno recordar algumas dessas figuras que por lá viveram: Hans Arp, Hans Ball, Richter, Hermann Hesse, James Joyce, Rainer María Rilke, Thomas Mann, Max Frisch, Paul Klee, Eduard Toller, Bertolt Brecht, Stefan George, Georg Kaiser, Mary Wigman, Von Laban, Isadora Duncan.

Com o tempo, Monte Verità tornou-se num hotel de luxo, num museu e centro cultural que não deixa de guardar zelosamente a sua história. Não obstante, qual vestígio de outros tempos, é possível ver ainda, ao longo das suas ruas, velhos artistas com barbas e cabelos compridos que fazem lembrar a contracultura dos anos sessenta.

O fim da utopia?

Diz E.M.Cioran em «História e Utopia»:

« O que mais me surpreende é que, sendo a sociedade o que é, alguns se tenham esforçado em conceber outra, diferente. De onde vem tanta ingenuidade ou tanta loucura?(…) Para conceber uma verdadeira utopia, para esboçar, com convicção, o desenho da sociedade ideal, é imprescindível uma certa dose de ingenuidade, e até de tontice…»

Para Cioran ao homem só lhe resta ruminar o vazio da sua existência. Esse é o seu presente e nele não entram utopias.
A função dos utópicos foi denunciar os prejuízos e as calamidades provocados pela propriedade privada. Coube-lhes também estimular o fascínio do impossível para que não se caia num estado de esclerose e de ruína.
Hoje as utopias refugiaram-se no imaginário literário que se tem encarregado de as resguardar e de gerar novas utopias e antiutopias

Nota:
Ida Hoffmann, foi autora de obras tais como "A Contribution to the Female Question" (Uma Contribuição à Questão Feminina); "The Importance of True Theosophy" (A Importância da Verdadeira Teosofia); sendo esta última em italiano; compilou algumas notas conhecidas como "Notes Towards the Promotion of the Vegetarian Lifestyle" (Notas para a Promoção do Estilo de Vida Vegetariano); e também escreveu junto com Henri Oedenkoven um livro em alemão sobre o Monte Verità..


Tradução de:
El cielo en la tierra — Marcela Sánchez
http://www.jornada.unam.mx/2001/mar01/010325/sem-monte.html


Mais infos e fotos:
http://www.colloquia.ch/fr/colloques/monte.htm
http://www.fileane.com/espagnol/monta_verita_espanol.htm
http://home.nordnet.fr/~jgrosse/int/reves.htm
http://www.fileane.com/espagnol/monta_verita_espanol.htm