20.3.05

Pluralismo Jurídico contra o Monopólio Estatal da formação do Direito

Em todas as sociedades e comunidades existem variados tipos de normas e regras: as normas sociais, as normas de cortesia, as normas morais, as normas religiosas, as normas dos usos e costumes, as normas jurídicas, etc
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Ou seja: existem várias ordenamentos ou ordens normativas que se podem mostrar convergentes ou divergentes entre si.
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Por exemplo:
A)a possibilidade e o direito a divorciar-se, após o vínculo de casamento, pode estar na ordem jurídica mas não estar na ordem religiosa (o código canónico proíbe um segundo casamento);
B)o direito de resistência pode estar quer na ordem moral como na ordem jurídica;
C) o direito à igualdade pode estar na ordem jurídica mas não ser uma norma social. Etc,etc.
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O valor e a importância relativa destes diversos ordenamentos normativos varia conforme as épocas históricas, as sociedades e as latitudes em que nos encontrarmos.
Exemplos:
a) na Idade Média as normas religiosas eram sumamente mais importantes que as normas provenientes de outros ordenamentos normativos;
b) tradicionalmente as normas consuetudinárias ( isto é, os usos e costumes) prevaleciam face às normas estatais;
c)as normas morais ( ou seja, os imperativos de consciência) prevalecem sobre as normas legais quando alguém invoca a objecção de consciência, e o reconhecimento da primazia da consciência moral individual sobre a lei não é reconhecido por muitos Estados respectivas legislações. Etc,etc.
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Acontece que o ordenamento normativo estatal (que aprova e impõe as normas jurídicas) veio a adquirir uma importância crescente a partir da Revolução Francesa que é o acontecimento histórico que verdadeiramente dá início à época moderna e à moderna organização social e política das sociedades europeias, desde então tendo aquelas normas jurídicas adquirido quase o exclusivo senão mesmo o monopólio da função de reger e normativizar as relações sociais das nossas sociedades contemporâneas.
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Ou seja: a partir do momento em que o Estado começa a impôr-se e a assumir-se como entidade política reguladora no seio das nossas sociedades (o que aconteceu só com as sociedades modernas) muda igualmente a hierarquia e a importância relativa entre as várias ordens normativas passando as normas jurídicas ( as normas escritas com força de lei, aprovadas e impostas pelo Estado) a sobrepôr-se a todo o outro tipo de normas proveniente de qualquer outro ordenamento normativo
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Daí ao monopólio da formação estatal da formação do Direito foi um curto passo, dado sem hesitação pelas elites políticas.
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E a situação em que nos encontramos hoje é a tentativa imperialista do Estado de regular o que quer seja da vida pública e privada de cada indivíduo e tornar a sua vontade como o único critério de aceitabilidade dos comportamentos e ideias dos indivíduos e grupos sociais.
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Ao paradigma modernista da formação estatal do direito opõe-se uma outra visão que defende o pluralismo jurídico ou seja a constatação empírica que a sociedade é atravessada por outros ordenamentos normativos que escapam à rede tentacular e monopolística da vontade legislativa do Estado.
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O pluralismo jurídico apoia-se em estudos de antropologia para demonstrar a existência dessas normas conflituantes com as normas jurídicas estatais e que questionam não só o monopólio estatal da construção jurídica do direito em vigor numa sociedade como o próprio papel e função do Estado como entidade estranha às realidades sociais e culturais.
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O recente caso dos touros de morte em Barrancos pode servir de exemplo à potencial conflitualidade e divergência entre as normas sociais de uma parte do território do Estado e a própria ordem jurídica de que esse mesmo Estado pretende impôr em todo o território sob a sua jurisdição.
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Obviamente que os touros de morte são um arcaísmo atávico, mas na verdade poucos viram nisso um real factor de subversão para a pretensão totalitária do Estado de tudo submeter à sua ordem jurídica.
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E à medida que as sociedades se tornam cada vez mais sociedades multiculturais com a coexistência de diversas culturas, maior será a tendência para o pluralismo jurídico, ainda que no outro extremo possa espreitar o perigo da deriva comunitária, isto é, aquelas situações em que as comunidades culturais se fecham em si mesmas e rejeitam o cosmopolitismo.
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Restará então defender o multiculturalismo cosmopolita, a diversidade e a miscigenação cultural que não seja o resultado de um decreto legislativo do Estado mas da vontade esclarecida, tolerante e emancipadora dos indivíduos, cidadãos do mundo.

Voltaire e os perigos da Leitura

Era comum entre os homens de letras da França do século XVIII, para se esquivarem da censura e do olho inquisidor do clero, fazerem-se passar por viajantes orientais, ou situarem suas histórias em meio a sultões, cádis, odaliscas e dervixes em algum cantão qualquer da Ásia Menor para assim melhor criticarem as opressões a que estavam submetidos. Montesquieu atingiu a celebridade imediata com suas Lettres persanes (Cartas persas, 1721), uma corrosiva exposição dos costumes franceses.
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Voltaire seguiu-o mais tarde, entre outros, com um pequeno artigo intitulado De l´horrible danger de la lecture (Do horrível perigo da leitura) para satirizar os que perseguiam a Encyclopédie e o partido dos filósofos. Para tanto, explorou os arraigados preconceitos que os europeus tinham em relação ao Império Turco-Otomano, velho inimigo dos cristãos e símbolo, segundo eles, da aliança do despotismo com o obscurantismo.
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O Parecer do Mufti Cherébi
Tudo começa, na historieta de Voltaire, quando Joussouf Cherébi, mufti do santo Império Otomano, dá a resposta, numa data imprecisa, a uma solicitação interrogante feita por um ex-embaixador da Sublime Porta na França. O dignatário viera do Ocidente, maravilhado pela presença da imprensa, e queria saber dos grandes sábios do reino turco a opinião deles sobre aquele invento. Consultaram-se então os irmãos cádis e os imãs da cidade imperial de Istambul, sobretudo os faquires ("conhecidos por seu zelo contra o espírito", disse Voltaire), que não demoraram em propor a condenação, proscrição e anatematização do infernal engenho.
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Os Argumentos dos Sábios Otomanos
1. Ela, a imprensa, é perigosa porque facilita a comunicação dos pensamentos, tendendo evidentemente a dissipar a ignorância que, afinal, é a guardiã e a salvaguarda dos Estados bem policiados.
2. É especialmente temível que cheguem, entre os livros que aportam vindos do Ocidente, alguns que tratem da agricultura e sobre os meios de aperfeiçoar-se as artes mecânicas, obras que podem, a longo prazo (o que não agradaria a Deus), revelar o gênio dos nossos cultivadores e dos nossos manufatureiros, exercitando-lhes a indústria, aumentando-lhes a riqueza, inspirando-lhes assim a elevação das suas almas e um certo amor ao bem público, sentimentos que são opostos à sã doutrina.
3. Chegará por fim o tempo em que teremos livros de história descomprometidos com o maravilhoso, o que sempre entreteve a nação numa feliz estupidez: haverá nesses livros a imprudência de fazer justiça às boas e às más acções e de recomendar a equidade e o amor à pátria, o que é visivelmente contrário aos nosso direitos locais.
4. Logo chegará a vez dos miseráveis filósofos que, sob pretextos especiosos, mas puníveis, irão querer esclarecer o homem comum e tentar fazê-los melhores, ensinando-lhes virtudes perigosas as quais o povo jamais deve tomar conhecimento.
5. Argumentando que têm enorme respeito por Deus, eles, os pensadores, terminarão imprimindo escandalosamente, fazendo por diminuir os peregrinos a Meca, provocando um grande detrimento da saúde das suas almas.
6. Sem dúvida chegará o momento em que, à força de ler os autores ocidentais que tratam das doenças contagiosas e da maneira de preveni-las, ficaremos infelizes por nos garantirem contra as pestes, o que seria um grave atentado contra a Providência.
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Recomendações do Mufti Cherébi
Em vista do exposto, o mufti então propõe que, para edificar as fidelidades e pelo bem geral das almas, jamais alguém leia um livro, sob pena da danação eterna. Que evite-se por todos os meios a tentação diabólica dos pais desejarem ensinar seus filhos a ler e a escrever, pois nós os defendemos deles tentarem pensar. Além disso, sugere que os crentes sejam mobilizados a denunciar à oficialidade qualquer vizinho que consiga falar quatro frases seguidas que tenham algum sentido, que sejam claras e inteligíveis. Ordenemos, encerra o mufti, que toda a conversação deve servir-se de expressões e termos que nada signifiquem, tal como é o antigo uso na Sublime Porta.
(adaptação de um texto retirado da net)