28.3.05

A Sociedade contra o Estado ( P. Clastres)

A Sociedade contra o Estado é uma obra fundamental cujo autor é Pierre Clastres, fundador da antropologia política e um dos maiores antropólogos de todos os tempos .

A sociedade contra o Estado, colectânea de onze artigos publicados por Pierre Clastres entre 1962 e 1974, é um dos mais importantes trabalhos de antropologia política já divulgados. Lançada em 1974, traz o sabor de sua época reflectindo uma reviravolta nas ciências humanas, propiciada na década anterior por autores franceses como Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Como estes, Clastres agarra-se ao projecto de uma forte crítica da Razão ocidental - no seu caso, uma crítica da Razão política, então aferrada em noções de dominação e subordinação. No entanto, Clastres morreu prematuramente (aos 43 anos), não podendo continuar, como queria e poderia ter feito, o seu projecto original de constituição de uma antropologia política geral.

A tese que atravessa os textos da colectânea, fortemente alinhavados a despeito dos anos que os separam, é retumbante: a sociedade civil pode prescindir da figura do Estado, e isso pode ser verificado - empiricamente - na experiência de boa parte dos povos indígenas da América do Sul. Com efeito, o argumento lançado aguçou o interesse de antropólogos, filósofos e cientistas políticos. Se, por um lado, Clastres escrevia para especialistas em povos não-ocidentais, tocando num problema bastante delicado para eles - até que ponto essas sociedades podem ser ditas igualitárias? -, por outro, ele (re)abria uma séria discussão, própria da filosofia política, sobre a natureza do poder político.


Um chefe sem poder


A figura que serviria de inspiração a Clastres é a do chefe indígena (figura certamente genérica), autoridade que não detém poder algum, prisioneiro do grupo. Mesmo dotado de privilégios como a poliginia (casamento com mais de uma mulher), esse chefe está submetido a uma série de obrigações que pressupõem certas habilidades, dentre as quais, as mais importantes são a generosidade e o dom da oratória.

O chefe indígena é, em suma, aquele que pode dar e sabe falar. Essa sua fala reúne os homens ao seu redor sem, no entanto, mostrar-se eficaz para cooptá-los. Em suma, é uma fala vazia, pois não tem poder de mando, mantém o chefe numa posição de poder que é de fato aparente. O argumento de Pierre Clastres vai mais longe. Não se trata simplesmente de afirmar que o chefe indígena não detém o poder, pois, para o autor, a sociedade indígena (ou "primitiva", como ele prefere chamar de modo algo antiquado e que hoje poderia soar como "antropologicamente incorrecto") não é estranha ao poder. O chefe não detém o poder porque é impedido pela própria sociedade, essa sim a detentora de um certo poder, que não consegue, no entanto, constituir-se como esfera política separada - ou seja, como Estado. O poder ali permanece difuso.

Essa tese fora formulada por Clastres quando ele tinha apenas 28 anos e divulgada num artigo intitulado "Troca e poder: filosofia da chefia ameríndia" - segundo capítulo da presente colectânea. Nessa época, ele ainda era um estudante de filosofia e preparava-se para iniciar suas pesquisas de campo em sociedades indígenas sul-americanas, como os Guayaki, Guarani e Chulupi - todos do Chaco Paraguaio -, os Yanomami da Venezuela e os migrantes Guaranis mbyá das redondezas da cidade de São Paulo.

Questionando o marxismo e estruturalismo


As experiências de campo foram certamente responsáveis pela sofisticação de seu pensamento, no entanto, a ideia central havia sido lançada já no texto de 1962, publicado originalmente na revista L´Homme, que tinha como director Claude Lévi-Strauss. A propósito, "Troca e poder" - seguido, sobretudo, de "Independência e exogamia" (Cap. 3) - é um diálogo aberto com a obra deste autor e, com efeito, um momento decisivo de ruptura com o estruturalismo. Ao tomar o poder como foco, Clastres afasta-se de campos como a mitologia e o parentesco, então consagrados pela análise estrutural. A Clastres não interessa a dedução de princípios cognitivos universais que tornam possível a existência de qualquer sociedade, mas sim a verificação de como determinadas sociedades - no caso, as indígenas - respondem de maneiras diferentes a problemas de facto gerais, como a possibilidade de vigência de um poder político separado, o Estado. Vale lembrar que, nesse ponto, Clastres também aposta em questionar o marxismo, visto que, ao contrário do que este pensam, ele não vê a formação do Estado como função do desenvolvimento de uma desigualdade económica. A realidade, para ele, é justamente a inversa: são as relações de poder que definem as classes e, portanto, a divisão da sociedade em pobres e ricos.


Contra o Estado e a favor da sociedade


Sob esse aspecto, as sociedades indígenas deixam de ser tomadas, como de costume em abordagens evolucionistas, como passado ou infância das sociedades modernas, cuja organização política seria mais complexa e, logo, "superior". Se as últimas optaram por viver sob o jugo de um Estado, as primeiras recusaram-no em nome da liberdade. É então que chegamos à conclusão do último texto, "A sociedade contra o Estado" (Cap. 11), que dá nome à colectânea. Ou seja, as sociedades indígenas não são simplesmente sociedades "sem" Estado - esta seria a tese de um filósofo como Lapierre, criticada em "Copérnico e os selvagens" (Cap. 1) -, são, sim, "contra" o Estado na medida em que reconhecem a possibilidade de emergência de um poder político, que está, segundo a definição da filosofia política clássica, atrelado ao exercício da coerção, da violência.

A violência que se encontra nas sociedades indígenas não é monopolizada por um Estado, mas controlada pela própria sociedade. Em "Da tortura nas sociedades primitivas" (Cap. 10), Clastres salienta os rituais de iniciação - fortemente marcados por intervenções no corpo, como perfuração de lábios e orelhas, escarificações, reclusões etc. - como mecanismos de inscrição da lei (e memória) social nos indivíduos.


Promessas proféticas


Em "Do Um sem o Múltiplo" (Cap. 9), Clastres encontra no pensamento dos Guarani a identificação do Mal com a figura do Um - e esse Um coincide justamente com centralização política, com o Estado. No entanto, devido a factores incertos como o crescimento demográfico - tema discutido em "Elementos de demografia ameríndia" (Cap. 4) -, os Guaranis vêem-se não raro às voltas com a emergência do Estado e isso pode ser compreendido pelo aparecimento de líderes religiosos, os chamados profetas. Os profetas, como os chefes, falam. Mas a sua fala não é um mero dever - o capítulo 7 ("Dever da palavra") trata desse aspecto -, tão pouco é vazia. É uma fala que anuncia o fim dos tempos e incita à busca da Terra sem Mal, onde a mortalidade poderia ser, enfim, encontrada - este é, com efeito, o tema do capítulo 8 ("Profetas da Selva").

O profetismo ocupa, em A sociedade contra o Estado, um lugar intrigante. Referido inicialmente como uma revolta, ele pode ser também o germe de uma organização estatal entre os ameríndios. Com isso, Clastres reflecte sobre a situação dos povos tupi-guarani antes da Conquista.

As eventuais organizações em confederações, como aquela constituída pelos Tamoios no século XVI, não seriam um produto do contacto com os europeus, mas antes um processo constituído pelos próprios ameríndios. Mais uma vez, a questão não reside na ausência do Estado, mas na sua presença, mesmo entre os nativos, em forma latente. O que os distingue de nós, ocidentais, é a capacidade que eles apresentam de contornar, sempre que possível, o poder. Ao contrário de nós, eles riem do poder e de seu perigo - essa é a revelação de "De que riem os índios"? (Cap. 6).

Os índios e nós

Em A sociedade contra o Estado, Clastres viaja longe para reflectir, de facto, sobre a situação do Ocidente. NUma outra colectânea, «Arqueologia da violência: pesquisas em antropologia política», ele rememorará o filósofo do século XVII Etienne de La Boétie, que vê a razão da subordinação do homem como um acto de vontade. As sociedades ameríndias, para Clastres, são aquelas que recusam a subordinação - por isso, controlam o seu chefe, que não impõe leis nem executa sanções. Isso não reflecte nem significa sociedades desorganizadas, fragmentadas, como muito se pensou. Pelo contrário, revela um alto nível de organização a tal ponto de tornar inviável o aparecimento de um Estado. Essa escolha pela liberdade é o que Clastres quer sublinhar nas paisagens que percorreu e, assim, formular uma lição para o Ocidente, em que a dominação encontra-se por toda parte.

Em tempos como os que vivemos nos dias de hoje, marcados por guerras entre Estados e pelo desejo de expansão e dominação de verdadeiros impérios, a leitura de A sociedade contra o Estado parece, no mínimo, reconfortante. Diante de uma batalha pelo poder político (e, por conseguinte, económico) que tem custado inúmeras vidas, nada como imaginar um lugar onde este possa ser vivamente combatido pela sociedade.


Sobre o autor


Pierre Clastres nasceu em Paris em 1934. Foi director de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crónica dos índios Guayaki [1972], A sociedade contra o Estado [1974], e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani [1974]. A sua morte prematura, num acidente de carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política [1980].