Tradução e reprodução de uma texto já clássico sobre o condicionamento autoritário e a repressão sexual sobre os corpos e as vidas individuais dos trabalhadores que explicam muitos dos comportamento «irracionais» que se podem observar nas sociedades humanas.
Este texto é uma tentativa de análise dos vários mecanismos pelos quais a sociedade moderna manipula os seus escravos para a aceitação da sua escravidão e - pelo menos, a curto prazo – parece ter êxito. Não se trata de «polícia» e de «cadeias» na sua acepção normal, mas daqueles padrões internacionalizados de repressão e coacção , e dessas prisões intelectuais em que os indivíduos – o «indivíduo-massa» - caem.
O texto começa por dar alguns exemplos do comportamento irracional – a nível da política – classes, grupos e indivíduos. Continua rejeitando certas «interpretações fáceis» apresentadas para explicar estes fenómenos. Mostra as várias maneiras pelas quais o terreno ( a psique do homem moderno) se tornou fértil ( receptiva) para uma cultura autoritária, hierárquica e dominada por uma classe. Considera a família como o local de reprodução da ideologia dominante, e a repressão sexual como uma determinante importante do condicionamento social, resultando na produção em massa de indivíduos perpetuamente desejosos de autoridade e de chefia , para sempre receosos de caminharem sozinhos ou de pensarem por si próprios. Discutem-se, em seguida, alguns dos problemas da revolução sexual em marcha.
Todo o texto tem o objectivo de ajudar as pessoas a adquirirem uma maior introspecção na sua própria estrutura psíquica. Os desejos e as aspirações fundamentais do indivíduo comum, tanto tempo distorcidos e reprimidos, estão em profunda harmonia com um objectivo que é a reconstrução libertária da sociedade. O «ideal» revolucionário deve, por conseguinte, tornar-se menos remoto e menos abstracto. Deve mostrar-se como sendo a realização – a começar aqui e agora – das próprias vidas independentes das pessoas.
O Irracional em política
Alguns exemplos
Para qualquer pessoa interessada em política o comportamento«irracional» dos indivíduos, grupos ou grandes sectores da população surge como um factor desagradável, assustador, mas incontroverso. Eis alguns exemplos.
Entre 1914 e 1918 milhões de trabalhadores mataram-se una aos outros na «guerra para acabar com as guerras». Morreram por fins que não eram os seus, defendendo os interesses dos seus respectivos dirigentes. Os que nada tinham juntaram-se às respectivas bandeiras e massacraram-se uns aos outros em nome do «Kaiser», do «Rei», da «Pátria». Vinte anos depois o processo repetiu-se ainda numa escala maior.
Nos princípios dos anos 30 a crise económica atingiu a Alemanha. Centenas de milhares de pessoas ficaram sem trabalhão e muitas tinham fome. A sociedade burguesa mostrava a sua suprema incapacidade atém em prover às elementares necessidades materiais dos homens. Era chagada a altura de uma mudança radical. Contudo, nesse momento crucial, milhões de homens e mulheres ( incluindo sectores muito substanciais da classe trabalhadora alemã) preferiram seguir as exortações cruamente nacionalistas e contraditórias (anti-capitalismo e anti-comunistas) de um demagogo reaccionário, pregando uma mistura de ódio racial, puritanismo e disparate etnológico, em vez de trilharem o caminho desconhecido da revolução social.
Em Nova Deli em 1966 centenas de milhares de camponeses indianos, quase a morrer de fome, e citadinos pobres participaram activamente na maior e mais militante manifestação a que a cidade jamais tinha assistido. Zonas inteiras da cidade foram ocupadas, polícias atacados, automóveis e autocarros incendiados. O objectivo desta acção em massa não era, contudo, protestar contra o sistema social que mantinha a vasta maioria do povo num estado de pobreza permanente e de escarnecia com as suas vidas. Era sim denunciar o abate de vacas em certas circunstâncias. Os «revolucionários» indianos não estavam em posição de fazer comentários. Não permitiam ainda eles, afinal, aos que os pais contratassem os casamentos? E não permitiam eles que considerações de casta colorissem frequentemente a sua política?
Na Grã-Bretanha vários milhões de trabalhadores, apesar das medidas tomadas pelos sucessivos governos, prejudiciais aos seus interesses votam no Partido Conservador ou no Trabalhista.
A um nível mais mundano, o comportamento dos consumidores de hoje não é mais «racional» que o dos eleitores ou das classes oprimidas da história. Os que compreendem as raízes da preferência popular sabem quão facilmente a procura pode ser manipulada. Os técnicos de publicidade estão perfeitamente conscientes de que uma escolha racional tem pouco a ver com as preferências do consumidor. Quando se pergunta a uma dona de casa porque prefere um produto a outro as razões que ela apresenta raramente são as verdadeiras (mesmo que esteja a responder de inteira boa-fé).
Motivos profundamente inconscientes influenciam também as ideias dos revolucionários e o tipo de organização em que escolhem militar. À primeira pode parecer paradoxal que aqueles que aspiram a uma sociedade não-alienada e criadora, baseada na igualdade e na liberdade, rompam com as concepções burguesas…para virem abraçar as ideias hierárquicas, dogmáticas e puritanas do leninismo. Poderia parecer estranho que a rejeição dos padrões de comportamento irracionais e arbitrariamente impostos na sociedade burguesa, com as suas exigências de obediência cega e de aceitação da autoridade, venha a adoptar uma outra forma sucedânea através do seguidismo de um Partido de vanguarda. Podia parecer também estranho que aqueles que persuadem as pessoas a pensarem por si próprias e a resistirem à lavagem do cérebro operada pelos «mass media» fiquem perturbadas quando ideias novas emergem dentro do meio em que actuam. Mas, como adiante se mostrará, há toda uma coerência interna em toda essa irracionalidade aparente.
Explicações Inadequadas
Em face de factos perturbantes como o apoio popular de massas às guerras imperialistas ou ao aparecimento do fascismo, um certo tipo de revolucionário tradicional pode ser levado a dar uma resposta estereotipada. Automaticamente salientará a traição ou a incapacidade da II ou III Internacional, ou do Partido Comunista, ou desta e daquela liderança que, por uma ou outra razão, não conseguiu elevar-se até ao momento histórico. As pessoas que argumentam assim não percebem que a repetida tolerância das massas relativamente a tais traições ou incapacidades é ela própria uma importante explicação…
Revolucionários mais sofisticados apontarão o seu dedo acusador para as culpas de alguém: os meios de moldar a opinião pública (imprensa, rádio, TV, igrejas, escolas e universidades) estão nas mãos da classe dominante, pelo que tais media difundem as ideias, as prioridades e os valores dessa mesma classe., contagiando todas as camadas populacionais. Será, então, surpreendente – perguntarão estes revolucionários, com um sorriso amarelo – que, em tais circunstâncias, as massas ainda resistam? Ou seja, o poder de dominar totalmente as condições materiais levaria à consequente neutralização de qualquer vestígio de resistência.
Estas explicações, embora parcialmente correctas, são insuficientes. A longo prazo, não explica a aceitação passiva, da classe trabalhadora, do sistema burguês – ou que, tal sistema só tenha sido destronado para ser substituído por instituições em tudo semelhantes às do capitalismo como foi o caso do capitalismo de Estado soviético, reproduzindo fundamentalmente relações hierárquicas de igual tipo aquelas que pretendia subverter (culto do chefe, delegação da autoridade num Partido, e à sua elite, a adoração da verdade revelada pelo Comité Central, etc).
Se milhões de pessoas não podem enfrentar corajosamente as implicações da sua exploração, se não podem dar-se conta do seu forçado subdesenvolvimento intelectual e pessoal, se não podem suportar a contemplação do vazio das suas vidas, senão têm consciência do carácter intrinsecamente repressivo de tanta coisa que eles consideram «racional», «de senso comum», «óbvio», ou «natural» ( hierarquia, desigualdades, puritanismo, etc), se têm medo da iniciativa e da auto-actividade, medo de pensar coisas novas e de trilhar novos caminhos, e se estão sempre prontos a seguirem este ou aquele líder ( que lhes prometem, invariavelmente, a lua) ou um Partido vanguardista ( que promete mudar o mundo como representante de milhões de pessoas), é porque há factores poderosos que condicionam o seu comportamento desde muito novos e que impedem o acesso a uma forma diferente de consciência.
Consideremos, por um momento, o eleitor inglês médio de meia idade, pertencente à classe trabalhadora, dos nossos dias, pouco importando que vote nos conservadores ou nos trabalhistas. Esse indivíduo terá, muito provavelmente, uma consciência positiva da hierarquia a que está submetido, é xenófobo, com preconceitos raciais, pró-monárquico, a favor da pena de morte, cumpridor da lei e respeitador da ordem social vigentes, crítico das manifestações mais criativas e dos movimentos e atitudes consideradas como marginais. É, além disso, quase certamente, um indivíduo com uma sexualidade reprimida, que o leva a consumir avidamente as imagens pornográficas.
Nestas circunstâncias ninguém sonhará em conquistar uma pessoa destas para a defesa da igualdade dos salários, para a gestão colectiva da produção pelos trabalhadores, para a integração social, para a reforma penal e abolição da monarquia, dissolução da polícia, legalização da «erva» e liberdade sexual. Quem anunciasse explicitamente um programa destes não só não receberia nenhum apoio como provavelmente seria alvo de um valente soco de desprezo e completa rejeição.
E quem tentar discutir tais assuntos enfrentará certamente uma hostilidade real e uma descrença absoluta que se traduz em comportamentos de ansiedade dos nossos interlocutores. Nada disso se passaria, isto é, não estaríamos a assistir a uma tal reacção caso estivéssemos a discutir questões insignificantes ou ridículas. É por não pertencerem a esta categoria de assuntos, que discutir aquelas questões sócio-culturais gera aquela ansiedade e encontra uma inconsciente carga emocional que impede um debate racional e uma esclarecimento completo.
A finalidade deste texto visa justamente explorar a natureza e a causas para essas reacções inconscientes e mostrar que ela não são inatas, mas o resultado de determinantes sociais. Na verdade, são o efeito de condicionalismos de longa data, que nos acompanham como membros de uma dada sociedade, que são transmitidos de pais para filhos através de todo um conjunto de instituições que são aceites inconsciente e acriticamente pelos indivíduos. Quem vê reforçada a sua força acaba por ser a ideologia dominantes que assim consegue fabricar em massa os indivíduos indispensáveis para se auto-perpetuar na sua dominação, indivíduos que estão prontos a defender o modelo «racional» que, segundo eles, é representado na obediência às figuras convencionais de autoridade (padre, professor, patrão, político do Estado).
Compreender tudo isto, toda esta estrutura colectiva de formação dos indivíduos permitirá uma nova visão sobre o comportamento irracional dos indivíduos e grupos, e a importância da dimensão irracional na política.
Pode também ajudar à humanidade a encontrar os meios para transcender os obstáculos e as inércias para a sua emancipação.
A Área Ignorada e a Esquerda Tradicional
Toda esta área tem sido largamente ignorada pelos revolucionários pelos revolucionários marxistas. Nenhuma censura pode ser imputada a Marx ou Engels por esta omissão. O instrumento apropriado para compreender este aspecto do comportamento humano – isto é, a psicanálise – só se desenvolveu nas duas primeiras décadas do século XX. As mais importantes contribuições de Freud para o conhecimento ( a investigação da causalidade na vida psicológica, a descrição da sexualidade infantil e juvenil, a afirmação que o sexo tinha mais interesse que a procriação, o reconhecimento da influência dos impulsos instintivos inconscientes – e da sua repressão – determinantes dos padrões do comportamento, a descrição de como tais impulsos são reprimidos de acordo com os ditames sociais prevalecentes, a análise das consequências desta repressão em termos de sintomas, e, em geral, «a consideração das facetas não oficiais e desconhecidas da vida humana» (Ver Malinowsky, «Sex and Repression in Sauvage society») só se tornaram parte da nossa herança cultural várias décadas depois da morte de Marx. Alguns aspectos reaccionários da psicanálise clássica ( a adaptação «necessária» da vida instintiva às exigências de uma sociedade cuja natureza de classe nunca foi explicitamente proclamada, a sublimação «necessária» da sexualidade «indisciplinada» com o fim de manter a estabilidade social, a «civilização» e a vida cultural da sociedade, a teoria do instinto da morte, etc) só serão superados pela psicanálise de .Reich e outros.
Reich iniciou a elaboração de uma psicologia social, baseada tanto no marxismo como na psicanálise. A sua finalidade era explicar como surgiam as ideias no espírito dos homens, em relação à condição real das suas vidas, e como, por sua vez, tais ideias influenciavam o comportamento humano. Havia uma nítida discrepância entre as condições materiais das massas e a sua perspectiva conservadora. Não era necessário qualquer recurso à psicologia para compreender porque é que um homem faminto roubava pão ou porque é que os trabalhadores fartos de serem manipulados, decidiam largar as ferramentas. O que a psicologia social tinha, no entanto, de explicar «não era porque é que um faminto rouba ou porque é que o explorado faz greve, mas porque é que a maioria dos famintos não rouba, e a maioria dos indivíduos explorados não faz greve». A sociologia clássica podia «explicar satisfatoriamente um fenómeno social quando o pensamento e a actuação humana servem um fim racional, quando servem a satisfação de necessidades e exprimem directamente a situação económica. Falha, no entanto, quando o pensamento e a actuação humana contradizem a situação económica, quando, por outras palavras, são irracionais». ( ver W.Reich, in «A Psicologia das Massas do Fascismo»)
O que é que era novo, ao nível da teoria revolucionária? Os marxistas tradicionais tinham sempre subestimado – e ainda o subestimam – o efeito das ideias na estrutura material da sociedade. Como papagaios, repetem que as infra-estruturas económicas e as super-estruturas ideológicas se influenciam mutuamente. Mas depois continuam a considerar a relação dialéctica dupla como se fosse exclusivamente unilateral ( a base económica determinaria o que se passa nas ideias). Nunca tentaram explicar como é que uma doutrina política reaccionária podia ganhar um apoio de massas e, mais tarde, pôr toda uma nação em guerra, tal como aconteceu nos anos 30 com a ideologia nazi.
Nas palavras de um marxista herético, Daniel Guérin, autor de uma das mais sofisticadas interpretações do fenómeno fascista:
«Algumas pessoas crêem-se muito marxistas e muito materialistas quando só se interessam pelos factos materiais e económicos, esquecendo porém os factores humanos. Acumulam números, estatísticas, percentagens. Estudam com extrema precisão as causas profundas dos fenómenos sociais. Mas como não estudam com a mesma precisão o modo como essas causas se reflectem na consciência humana, a realidade viva acaba por lhes escapar. Como só estão interessados nos factos materiais, não compreendem de modo algum como as privações sociais sofridas pelas massas se convertem em aspirações de tipo religioso» ( Daniel Guérin, in Fascisme et Grand Capital). Descurando este factor subjectivo da história tais marxistas não podem explicar a falta de correlação entre as frustrações económicas da classe trabalhadora e a sua falta de vontade para pôr fim ao sistema que as engendra. Não compreendem o facto de que, quando certas crenças ficam arraigadas ao pensamento das massas ( e influenciam o seu comportamento), tornam-se elas mesmas factos materiais da história.
Perguntava, pois, Reich: o que é que na vida real dos oprimidos limitava o seu desejo de revolução? A sua resposta era que a classe trabalhadora era influenciada por ideias reaccionárias e irracionais, uma vez que tais ideias caiam em terreno fértil. Para o marxista tradicional o que interessava era que o trabalhador alugava a sua força de trabalho aos capitalistas, e eram explorados por estes. Mas é necessário levar em consideração outros aspectos da vida da classe trabalhadora para se compreender as suas atitudes e os comportamentos. Isto significa que se tem de reconhecer que os trabalhadores tiveram uma infância, foram educados por pais condicionados pelo meio em que viviam, com necessidades sexuais, frustrações e conflitos familiares. Que a família era frequentemente numerosa, que se notava muita fadiga física, insegurança financeira, se davam alguns abortos clandestinos, e que tudo isso tornava muito agudos os problemas do quotidiano dos trabalhadores. Se assim é, porque omitir tais factores para explicar o comportamento dos trabalhadores e apenas tomar em conta os factores económicos? Reich procurou assim desenvolver uma análise total da incorporação desses factos e atribuir-lhe a devida importância.
(continua)