21.2.08

O Povo das Mercadorias

Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam os seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era a sua floresta, mas eles despiram-na pouco a pouco cortando as árvores para construir as suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, pois não havia mais caça também. Depois, os seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias e o seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram o seu pensamento.
Eles construíram casas de pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo: "Nós vamos-nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas mercadorias e dinheiro também! Assim, quando formos realmente numerosos, jamais seremos miseráveis". Foi com esse pensamento que eles acabaram com a sua floresta e sujaram os seus rios. Agora, só bebem água "embrulhada", que precisam de comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não é boa para beber.

Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e os seus ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles as suas palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quis ocultar sob a terra e a água porque o seu calor é perigoso. Mas os brancos encontraram-nas e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles ficaram eufóricos e disseram: "Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento que eles perderam realmente toda a sabedoria. Primeiro estragaram a sua própria terra antes de ir trabalhar na dos outros para aumentar as suas mercadorias sem parar. Nunca mais eles disseram: "Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra?"

Quando conheci a terra dos brancos isso deixou-me inquieto. Algumas cidades são belas, mas o seu barulho não pára nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com comboios por debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito torna-se obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigens e eles não compreendem as nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os yanomami são mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo das suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes", as mineradoras, entram por toda parte sob a terra para retirar minérios, eles vão-se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais.

[O universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um "grande vazio". O mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos. É habitado pelos ancestrais yanomami da primeira humanidade, que se tornaram monstros canibais, os aõpataripë.]

Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapiripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos. Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. A terra dos brancos estão contaminadas, estão cobertas da xawara wakixi, uma "epidemia-fumaça", que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça dirige-se para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito Hutukarari repele-a ainda sem descanso. Acima da nossa floresta o céu ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. O seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso nas suas mercadorias, como se estas fossem as suas namoradas.

Davi Kopenawa Yanomami, xamã, 1998.