2.8.06

Elogio da loucura (segundo Erasmo)


…a religião cristã tem um parentesco com uma certa loucura e muito pouca relação com a sabedoria. Quereis provas? Reparai primeiro que as crianças, os velhos , as mulheres e os imbecis têm muito mais prazer do que as outras pessoas nas cerimónias e coisas religiosas e, levados unicamente pelo impulso da Natureza, querem sempre estar mais próximos do altar.
Vêde depois que os primeiros autores da religião, de uma simplicidade admirável, foram inimigos mortais das letras. Enfim, os loucos mais extravagantes são aqueles que foram completamente arrebatados pelo ardor da fé cristã. Delapidam os seus bens, desprezam as injúrias, suportam com paciência os enganos, não fazem distinção entre amigos e inimigos, têm horror à volúpia, satisfazem-se com jejuns e vigílias, lágrimas, trabalhos ultrajes, desprezam a vida e não desejam senão a morte. Numa palavra, parecem de tal modo privados de senso comum, que poder-se-ia julgar que as suas almas existem desligadas dos seus corpos. Que é isto, senão a loucura?

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Cristo chama ovelhas àqueles que destina à vida eterna. Ora não há animal mais néscio que a ovelha . Aristóteles afirma que o provérbio «cabeça de ovelha» provinha da estupidez deste animal e se aplica injuriosamente a todos os estúpidos e imbecis. Tal é o rebanho de que Cristo se declara pastor. Agrada-lhe mesmo o nome de cordeiro.É assim que o designa S. João: «Eis o cordeiro de Deus» e é esta a expressão mais frequente no Apocalipse.

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«Os padres deixam, por modéstia, o exercício da piedade ao povo. O povo delega-a naqueles a quem chama eclesiásticos, excluindo-se da Igraja, como se os votos do baptismo não tivessem qualquer valor. Muitos padres, por sua vez, fazem-se denominar seculares, parecendo assim votar-se ao mundo e não a Cristo. Rejeitam o fardo entregando-o aos seculares e estes aos monges; os monges não reformados aos monges reformados e todos juntos emetem-nos aos Mendicantes e os Mendicantes aos cartuxos, os únicos em cujo convento a piedade se oculta, tão bem, aliás, que ninguém a consegue ver.
De igual modo, os papas, tão diligentes quando se trata de receber as rendas, deixam aos bispos os trabalhos apostólicos, estes aos curas, os curas passam-nos para os vigários,os vigários para os frades mendicantes e estes últimos entregam as ovelhas aos que as sabem tosquiar.»

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Digamos a verdade tal como ela é: a Fortuna ama os irreflectidos, os temerários, os aventureiros, aqueles que dizem facilmente: «os dados estão lançados!». A sabedoria torna os homens tímidos; assim encontrareis por todo o lado sábios a morrer de fome, pobreza e dor, esquecidos, sem glória e sem simpatia. Os loucos, pelo contrário, nadam em dinheiro, governos os Estados e, numa palavra, encontram em pouco tempo a prosperidade. Se fazeis consistir a vossa felicidade em agradar aos princípes e em ser admitidos entre os cortesãos, divindades brilhantes de pedrarias, de que vos servirá a sabedoria? Recuaríeis perante um perjúrio, coraríeis antes de mentir, pois tendes na cabeça os escrúpulos dos sábios sobre o roubo e usura. Se ambicionais as dignidades e bens eclesiásticos, mais facilmente os conseguiríeis se fosseis asno ou boi, do que sendo sábio.
Se procurais o prazer amoroso, as mulheres, parte importante neste assunto, amam os loucos e fogem dos sábios como de um escorpião. Enfim, se decidis viver para os divertimentos, deveis evitar o sábio. Em suma, indo por onde quiserdes, entre os papas, princípes, juízes, magistrados, amigos, inimigos, grandes e pequenos, todos procuram o metal sonante; e, como o sábio, despreza o dinheiro, todos evitam a sua companhia.

É universalmete admitido que: «Quando não temos algo, devemos simulá-lo». Donde se conclui que «simular a loucura do louco é a sua sabedoria»

Excerto retirado do livro de Erasmo, «Elogio da Loucura»