2.8.06

A disneylandização do planeta, ou como o turismo está a transformar o mundo



Autora do texto: Sylvie Brunel


Viajar de outra maneira, viajar inteligente e, sobretudo, não fazer figura de turista…A fim de responder a estes desejos do viajante moderno, a indústria do turismo, a 3ª indústria mundial, multiplica as suas ofertas e os seus produtos. Com tudo isso o mundo acaba por se tornar num imenso parque de atracções em que a ilusão e o maravilhoso se substituem habilmente à realidade.

«Um pequeno mundo» é uma das atracões fetiches da Eurodisney em Paris, e na qual as famílias realizam uma volta ao mundo de barco no meio de autómatos cantantes. Todos os países e todas as civilizações são sintetizadas, umas após outras, em arquétipos imediatamente identificáveis tanto quanto eles se colam às representações mentais colectivas: os polinésios dançam o tamouré, os mexicanos trazem sombreros entre cactus, os japoneses vestem kimonos, etc. E aquela atracão acaba em apoteose no meio dos cintilantes luzes das Folies-Bèrgeres e de outros espectáculos «tipicamente parisienses», cuidadosamente reformulados já que se trata de uma atracão de carácter familiar. A uma outra escala é assim que o turismo está em vias de moldar o mundo, as paisagens e as civilizações.

Uma globalização pacífica

O turismo de massas desenvolveu-se a partir dos anos 1950 com o prolongamento das reformas pagas, a democratização do transporte aéreo e a emergência das classes médias. Quando a guerra fria termina, no fim dos anos 1990, pode-se dizer que a quase totalidade do mundo ficou aberta ao turismo que logo se tornou na terceira indústria mundial. Enquanto que em 1950 não passavam dos 25 milhões, o número estimado dos turistas, hoje em dia, ultrapassa em muito os 800 milhões, os quais todos os anos partem para mais um viagem de lazer para um local outro que não o da sua residência e habitação ( esta é a definição habitual de turismo). O fluxo não pára de crescer: a Organização Mundial do Turismo estima que daqui ao ano 2020 o número de turistas deverá atingir qualquer coisa como 1.600 milhões de pessoas!
A nível mundial o turismo representa 10% do PIB e emprega 8% da população activa (1). As suas receitas anuais elevam-se em média a 650 mil mlhões de dólares, ou seja, 8 vezes o montante da ajuda ao desenvolvimento. Os turistas, esses, já não apenas os brancos ricos do Ocidente, pois cada vez mais indíviduos originários dos países emergentes (Chineses, Russos, Brasileiros, Indianos, Coreanos…) se incluem no contigente dos turistas, constuído em grande medida por elementos das classes médias, ávidos por descobrir o mundo. A globalização permitiu abrir destinos que estavam fechados ou que eram de difícil acesso. É assim que, Dora em diante, o turismo se instala em todo o lado, salvo nos cenários de guerra. Ao permitir a milhões de pessoas ficar na sua região de origem, em vez de serem forçados a exilarem-se, o turismo pode ser visto –e é normalmente encarado – como uma actividade benemérita, que constituiria a versão pacífica e postiva da globalização. Fonte de consideráveis recursos, o turismo é geralmente promovido pelas regiões com capacidade de acolhimento ( recorde-se que a França é o primeiro destino turístico mundial com cerca de 70milhões de visitantes anuais). Não espanta pois que a epidemia chikungunya constitua não só uma catástrofe para as ilhas Reunion pelo seu impacto sanitário sobre a população local, mas também porque ao desviar os turistas, vem a traduzir-se numa verdadeira hecatombe económica.
Os géografos, nomeadamente a equipa MIT de Saint-Denis, dirigida por Rémy Knafou (2), mostraram que a «acção do turismo» transforma os locais e as culturas: cidades que estavam condenados ao declínio económico, como Bruges ou Veneza, encontram uma segunda vida graças ao turismo. Determinados sítios, que se encontravam em acelerado processo de degradação e mesmo de extinção, como é o caso das montanhas médias, vêem-se asso, revitalizados pela multiplicação de estações e a diversificação das actividades que são propostas aos visitantes. A colocação das paisagens e dos homens na disponibilidade da terceira indústria mundial traduz-se forçosamente em transformações que poderão ser encaradas pelos críticos mais exigentes como um aviltamento e uma desnaturalização. Não por acaso a palavra em alemão para designar o turismo é «Fremdenverkehr», que significa tráfico de estrangeiros. O termo não poderia ser, realmente, mais esclarecedor. Tudo é feito para atrair o turista…que, no entanto, não pára de ser criticado um pouco por todo o lado.

Habitar a sua viagem

O turismo apresenta-se com efeito como um paradoxo: ainda que todos sejam turistas, ninguém o quer admitir, nem aceitar esse estatuto, visto como desvalorizador. Por isso, é que o turista é quase sempre o outro. Um outro que se despreza e que se tenta escapar (3). Mas será que essa caricatura de turista existirá realmente? É conhecido como a maioria dos turistas manifestam o desejo de conhecer os locais visitados.
O turismo organiza-se com base num encontro: de um lado, milhões de pessoas estão prontas a gastar muito dinheiro para se desnacionalizarem-se à procura de exotismo, e do outro lado,, existem milhões de pessoas que também estão dispostas a acolhê-los e a satisfazer essa ânsia de exotismo, e que lhes permita ganhar dinheiro e continuar a viver no seu local habitual de residência, sem necessidade de se exilarem para outro local em busca de melhores condições de vida. Formulada assim, compreende-se-á fácilmente que este encontro não pode concretizar-se senão de uma maneira muito enviezada. É que na sociedade capitalista a felicidade, tal como muitas outras coisas,é algo que se fabrica e se compra. O arquétipo é o parque temático ( a Disneylândia, os Universal Studios) ou o falso ambiente tropical das estufas ( como em Central Park). Tratam-se de locais artificiais, enclaves em que o turista entra, e que são concebidos para o seu divertimento. Os geógrafos falam a propósito de um turismo «hors sol» (fora do locais de origem)
Além disso cada vez mais um número crescente de turistas manifesta o desejo por viagens alternativas. Mas alternativa a quê? Tradicionalmente em alternativa àquela figura de turista japonês «de câmara fotográfica ou de vídeo em mão» - uma conhecida fórmula comum de carácter pejorativo – e que parte em grupo, em viagens organizadas pelas agências especializadas, muitas vezes em autocarros fretados para o efeito e que se dirigem invariavelmente para os locais massificados onde tudoestá organizado para os recber com base num mesmo figurino de oferta turística. Hoje, no entanto, os turistas querem cada vez mais «habitar a sua viagem», como diz eufemisticamente o jornalista da conhecida revista Géo, Jan-Luc Marty, no número de Março daquela revista. Com efeito, os profissionais do turismo, agências e revistas, compreenderam há muito que era necessário responder a esta expectativa, dando ao turista a sensação de que ele é diferente daqueles estereótipos de turistas japoneses.

Oferecer a ilusão de «viajante»

«Tudo» é, hoje em dia, objecto de escolha: poder ser aventureiro, salvador da humanidade, etnólogo amador, ou um temerário pioneiro-explorador. O turista precisa agora de «autenticidade». E, na verdade, essa autenticidade passou a ser um produto como qualquer outro, e toda a arte de um bom profissional de turismo consiste em saber fabricar o melhor possível essa tal «autenticidade». O turismo molda pois os locais, a natureza e a cultura em função das representações mentais dos próprios indivíduos que o realizam. Com isso é todo o planeta que se «disneyliza-se» por força da influência do turismo de massas: as paisagens tornam-se em cenários (décors) e os indivíduos que aí vivem convertem-se em actores prontos a satisfazer aquele desejo de autenticidade que está presente nas expectativas dos turistas que são vistos, acima de tudo, como grandes portadores ( e fornecedores) de divisas.
No seu último número do passado mês de Março a revista Géo propunha 50 viagens «inesperadas», distribuídas por cinco painéis: natureza, cultura, desporto, descando, humanitário. No capítulo temático da natureza o turista pode descobrir, por exemplo, os gorilas, os pandas, as baleias e até ser o salvador de certas espécies raras. No capítulo da cultura, por seu turno, convida-se os interessados a partir ao encontro de «povos autênticos» como os Touaregs ou os Inuits. Já no capítulo do desporto o planeta é transformado num imenso terreno de jogos em que se pode sobrevoar em balão, ou em parapente, que se desce em kayak ou em VTT, e que, no fundo, mais não faz que tentar satisfazer a ilusão do homem moderno em tornar-se num Tarzan moderno, protector da natureza, e na qual ele pode realizar os saltos de árvore em árvore em pleno ambiente tropical graças aos esquemas montados para o efeito. Quanto ao capítulo da ciência os destinatários são convidados a vestirem a pele de vulcanólogos, de oceanógrafos ou de paleantólogos, quais crianças modernas, cujos pais zelosos as enviam para colónias de férias, onde inteligentemente podem «aprender, divertindo-se». Com uma diferença, apenas: com os adultos, as coisas são mais sérias. Na rubrica das «paixões» é-se desafiado a retomar a prática saudável dos ateliers de actividades que pretendem concretizar as artes que fazem escola: os mosaicos de Itália, a cozinha do Vietname, a fotografia da Gutemala, a salsa em Cuna ou o cinema no Níger,… e até a «risoterapia» em Bombaim, ou o «banho» no Tirol.
Tal como a indústria agro-alimentar inventa sem cessar novos produtos para aumentar os seus encaixes , também a indústria turística pretende desenvolver e explorar incessantemente novos conceitos, novos nichos a fim de oferecer a cada um o sonho desejado, segundo a tarifa previamente fixada. Na rubrica «aventura» converte-se o turista, segundo a sua opção, em cow-boy ( nos EUA), em explorador de ouro ( na Austrália), em explorador de lixo e destroços (nas Filipinas): pretende-se, no fundo, em tentar realizar os «sonhos de criança» do próprio turista. Todas essas viagens têm dois pontos comuns: custam caro, o que as faz serem exclusivasde elite; e, depois, organizam-se segundo um princípio de regressão infantil do homem ocidental, cujas necessidades materiais, uma vez satisfeitas, fazem nascer nele a necessidade de ilusão, que o leva a aderir a um jogo de papéis que lhe permitam regularmente ser um actor que desempenhe a função de, por exemplo, etnólogo, de Tarzan ou de Robinson. E quando não lhe cabe o papel de salvador da humanidade, ao menos sempre pode aderir ao chamado turismo humanitário, muito em voga nos dias que correm.

«Na pele de um explorador»

Apesar de todas as críticas que lhe são dirigidas, o turista é um ser admirável, pronto a gastar muito para obter a sua satisfação. Curiosamente, quanto mais dinheiro ele está disposto a gastar, mais ele rejeita ser tratado com turista. A indústria do turismo cria hoje produtos elitistas, que permitem vender ilusões de um turismo inteligente, de preço mais elevado que os tradicionais pacotes-padrão de oferta turística em hóteis-club. Dormir em sacos-cama e baver, mas ter auto-consciência de um cidadão responsável, ou seja, fazer tudo para que não prejudique o planeta, uma vez que é do conhecimento geral a necessidade de garantir um «desenvolvimento sustentável», entendido como preservação dos antigos equilíbrios, respeito pelos povos «autênticos» e pela natureza «selvagem». (4) Indignado pelas derivas da sociedade industrial, de que ele, não obstante, faz parte, o cidadão urbano do mundo moderno invoca a beleza dos ambientes «selvagens», frequentemente«ameaçados», e a «autenticidade» dos modos de vida tradicionais. Esquece, porém, aquilo que os geógrafos falam há muito tempo:as paisagens naturais não existem eternamente, elas foram e t~em sido moldadas pelo homem, assim como as sociedades e os ecossistemas estão em perpétua evolução, dado que é essa mesma a condição da sua permanência.
A indústria turística monta pois uma encenação programada com base em supostos «paraísos perdidos» ( ainda que o não sejam para o turismo) onde viveriam civilizações «preservadas». E tanto mais preservadas quanto o acesso à modernidade lhes é frequentemente negado precisamente por aqueles que, por razões mercantis, os colaram a representações foclóricas, muito longe de serem autênticas. O turismo disneylandiza, pois, o mundo, transformando os locais de acolhimento num sucessão de parques temáticos, onde o turista pode encontrar um passado recriado ou preservado com toda a segurança.
A este respeito o primeiro texto do número de Março da revista Géo é revelador da actual tendência. «Na pele de um explorador», é o seu título. E é proposto ao leitor uma marcha pela natureza «selvagem» da Tasmânia – e, de facto, não há nada mais longínquo e exótico que a Tasmânia ? O adjectivo «selvagem» retorna um pouco mais à frente através do título «espaços selavagens» Trata-se mais uma vez do reencontro com um paraíso perdido, que seria totalmente preservado pelo homem. O vocabulário utilizado retoma os termos habituais do género. Os subtítulos referem-se a uma «floresta amazónica» ( na Tasmânia?!), depois a uma «solidão dos espaços grandes», e ainda às «primeiras idades Terra». Nesta «jóia ecológica», neste «destino mítico», o explorador estaria «só entre os cangurús».
Todavia, a verdade é que os ocupantes originais – humanos e animais – da Tas
Mania foram erradicados pelso colonos europeus. E nesse parque natural protegido, como em muitos outros do mundo algo-saxão, o visitante está sob controle apertado, quer nos itinerários dos praticantes de trekking,quer nas pausas para descanso, todos devem estar registados e expressamente proibidos de abandonar o mais pequeno alimento. Os nossos aprendizes exploradores estão bem enquadrados e sob grande vigilância. Eles são mesmo duramente repreendidos no caso de ousarem passar a noite num refúgio em vez de temporário cumprirem com o percuso previsto para a estape do dia. E nem pensar sair dos caminhos balizados nem tomar qualquer iniciativa. Quanto aos animais selvagens, eles são-no tão pouco que o turista é avisado a não deixar o seu saco sem protecção, vigiar a sua tenda, onde podem penetrar indesejáveis opossums, e ter cuidado com tudo o que leva para o pique-nique. No fundo, é o mito do «wilderness», a natureza selvagem, que os anglo-saxões, os grandes predadores do Novo Mundo,acabaram por encenar no fim do século XIX nos «grandes espaços» que tinham previamente conquistado, e diligentemente esvaziado dos seus ocupantes indígenas ( índios, aborígenes, Maoris,…). Agora é preciso reconstituir os grandes painéis da naturez selvagem para gozo do homem branco.O turista começou por ser um caçador, num género de caça só reservada a uma elite ( Hemingway, Roosevelt, Giscard d’Estaing,…), que ainda hoje se perpetua, embora os safaris se tenham tranformado sobretudo em safaris fotográficos, nas reservas da África Oriental e Austral, em que o preço dos troféus atinge somas astronómicas. (5). O turista new-look é de ora em diante um «explorador» que parte para uma aventura cuidadosamente balizada nos parques naturais – sob alta protecção – do Novo Mundo. A classifcação desses espaços pela Unesco a título de «património mundial da humanidade» resultou na prática, através da publicidde mundial concedida, em erigir o conservacionismo no mais rígido dogma. Sob o pretexto do desenvolvimento sustentável pretende-se santificar e sacralizar uma natureza forçosamente ameaçada, os tais «mundos em vias de extinção» que semanalmente as televisão não se cansam de falar.
Para viajar «alternativo», o turista aceita um certo desconforto, cuidadosamente construído, uma vez que tal faz parte integrante da aventura. Ele traz a sua mochila, para não «explorar» as populações locais que, no entanto, encontram nele uma fonte não negigenciável de rendimentos. Marchas a pé até ao esgotamento, mas sem arriscar todavia a vida, sob pena de processos judiciais altamente dispendiosos. O interessado deve, aliás, assinar um formulário de responsabilização antes do início da aventura. E aceitar as incómodas sanguessugas e mosquitos, vistos como «naturais». O desconforto paga-se caro, pois também ele é uma forma de comprar o mito: mil euros por pessoa para uma viagem à Tasmânia com 6 dias de marcha, noites na tenda e carga por conta do «aventureiro». Uma hierarquização subtil se constrói igualmente entre os neófitos, que aí se enredam, e os mais experientes, qe conhecem todos os truques do aventureiro, nomeadamente em matéria de equipamento de última estação ( sapatos, tendas, telefone satélite) reproduzindo assim as diferenças de classe entre os turistas de base e a elite, que se pode dar a luxo de usufruir as aventuras no maior conforto (noites nos melhores hóteis, deslocações em helicópteros,etc)

Todos estão por sua conta

O turismo está a transformar o mundo numa imensa Disneylândia em que tudo é concebido e controlado para vender a natureza «selvagem» e as «povoações autênticas» aos visitantes ricos que são cuidadosamente enquadrados. Deplorável? Se pensarmos que a operação é rigorosamente montada, que cada qual sabe de si, que o turista parte feliz uma vez que teve a sua parte de sonho, enquanto o autóctone fica satisfeito, pois teve a sua bolsa mais recheada, e o agente de viagens, organizador desta troca, não deixa de esfregar as mãos de contente, porquanto vendeu caro um serviço que não lhe custou quase nada, dado que no que diz respeito às condições alojamento e restauração os custos são mínimas, se assim pensarmos a resposta não é certa. Aliás, as populações locais sonham com o conforto e o desenvolvimento, aquilo que paradoxalmente a oferta turística lhe poderá garantir. Fica por verificar se a disneylandização do mundo não transformará, tal como nos parques temáticos do Mickey, os protagonistas locais em figurantes reduzidos ao silêncio, e mal pagos.

(1) L. Carroué, D. Collet, C. Ruiz, La Mondialisation, génese, acteures et enjeux, Bréal, 2005
(2) Equipe MIT, Tourismes I. Lieux communs. Belin, 2002; Tourismes II Moments de lieux, Belin, 2005
(3) J-D. Urbain, L’idiot du voyage. Histoires de touristes, 1991
(4) G.Rosssi, L’ingérence écologique. Environnement et développemente rural du Nord au Sud, CNRS, 2001
(5) A. Volvey(dir.) , L’Áfrique, Atlande, 2005


Autora do Texto: Sylvie Brunel
Título: “Quand le tourisme disneylandise la planète
Publicado em Sciences Humaines nº174, Août-Sept 2006-07-31
( Sylvie Brunel é também autora do livro «La planète disneylandisé», ed. Sciences Humaines)