25.1.06

Arte, Poesia e Vida. Manifesto 2006


Autores: Cristina Castello et Ricardo Dessau

«Porque os homens, Sócrates, esqueceram-se do seu dever de pensar…»
(Miguel Betanzos, in SOCRATE, LE SAGE EMPOISONNÉ)


Nós, poetas do mundo, dizemos «Basta!» e falamos ainda dos «lobos»

«Basta»: uma das mais belas palavras poéticas pronunciadas ou ainda possíveis de pronunciar

«Lobos». Nós poetas, nós somos «lobos das estepes»; nós organizamo-nos como os lobos e não como o homem, enquanto lobo do homem.

«Os lobos sãos e as mulheres sãs …foram perseguidos, cercados e falsamente acusados de serem insaciáveis, pérfidos, demasiado agressivos e, em particular, serem menos respeituosos que os seus detractores. Eles foram o alvo dos que desejavam não só limpar a selva mais ainda queriam ainda eliminar o território mais selvagem do psiquismo, neutralizando o intuitivo até ao ponto de não deixar rasto algum. A depredação exercida contra os lobos e as mulheres por aqueles que não os compreendem é espantosamente afim» ( Clarissa Pinkola Estes, « Mulheres que correm com os lobos»)

Nós, poetas do mundo, nós somos lobos, defensores deste «território selvagem» e sublime que ainda felizmente existe, escondido na sombra desta vida feita à imagem do «Deus Mercado»
Nós, poetas do mundo, uivamos alto e bom som que a Poesia é antagonista, crítica, rebelde e subversiva por natureza

Que a poesia destrói e se destrói num só movimento

Que ele cria e recria permanentemente o mundo. Nietzsche: «Pronuncia a tua palavra e desaparece»

Nós dizemos, tal como os surrealistas, que a Poesia é uma liberdade absoluta. Ela é imaginação. E com o fogo prometaico de Léon Filipe e num grito de anjos, nós uivamos que a Poesia é um sistema luminoso de sinais.

Após o nosso «Basta!», eis o nosso uivo, os nossos sinais. E a nossa tentativa de asas:
1. «Eis o tempo dos assassinos!» escreveu Rimbaud. Esse tempo perdurou até ao século XXI, impôs-se mais que nunca e, finalmente, parece ter ganho para sempre raízes em toda a Terra.

2. Nós, poetas do mundo, nós erguemo-nos contra esse «Tempo dos Assassinos», como sempre fez a Poesia, desde o nascimento do primeiro verso feito pelo primeiro ser humano e desde a primeira marca deixada pelo primeiro ser humano na primeira caverna

3.O Tempo dos Poetas é o das Mães que dão a Vida. « Ah, que delicada é a terra do meu pomar. Tem um perfume de mãe que o torna amoroso» ( Miguel Hernández)

4. Eis o tempo da poesia escrita e cantada no feminino, ainda que a cólera, a dissonância, as aberrações de linguagem ( para os «académicos»), a falta de «decência» ( para os «bem-pensantes»), e a sede angustiada de reparação dominam e nos apontam o dedo como novos rebentos dos velhos «assassinos»

5 Nós, as mulheres e os homens, poetas do século XXI, nós decidimos «matar», através das nossas palavras, os Assassinos armados. Palavras ditas senão pelo próprio poeta. Palavras forjadas apenas pela sua própria fornalha; que não vêm dos Deuses, se bem que o canto possa ser o seu dom, e ainda menos na da linguagem usada ( ou, na realidade, na «não linguagem»), grosseira caricatura da Linguagem Comum e, por isso, da Razão Comum que foram lançados pelos Assassinos ao Povo convertido em massas.

6. As massas não compreendem a poesia; o Povo – ou o que resta dele -, sim.

7. A Ilíada e a Odisseia eram poemas tão belos quanto populares. Nesses tempos longínquos não havia nenhuma diferença entre os gregos, ou os seus predecessores, e os seus poetas. A Grécia foi antes de tudo Poesia e só mais tarde Filosofia. E a Poesia, durante séculos, foi transmitida de boca em boca ( e assim nasceu a tradição oral), e a discutia-se filosofia em plena praça pública, no mercado - em miniatura, pois era só um mercado de ovos e de galinhas. Germinou assim a dialéctica, a discussão razoável, hoje tão repreendida pelo positivismo, pelo pragmatismo ou pela Razão Técnica.

8. O positivismo, o pragmatismo e a Razão Técnica realizaram a «missão» para que nasceram. Eles espoliaram os seres humanos da sua ferramenta principal, a possibilidade de dizer «Não», de criticar, de contradizer. Eles espoliaram-no da sua «negatividade», p atributo humano por excelência, excepção que justamente nos diferencia do resto das criaturas do universo. Eles aprisionaram a rebelião. Em suma, transformaram-no num «Sim» absoluto. Transformaram-nos em máquinas predispostas a consentir, a obedecer, a admitir o «consensus». Em reflexos condicionados. A Humanidade encontra-se à beira de um precipício cujo monstruoso fundo mal antevemos. «Basta!» rugimos, nós, os poetas do mundo.

9. Duas dimensões essenciais nos orientam ( a do «Sim» e a do «Não»), mas só a primeira é permitida, pois insolente e quase que imperceptivelmente nos surripiam a segunda. Daí que os homens são hoje a fiel reprodução desse Homem Unidimensional de que o filósofo Herbert Marcuse nos falou pela primeira vez em 1964.

10. Todavia, a Beleza, a Verdade e o Bem ( valores supremos socráticos e de toda a filosofia que se lhe seguiu) não podem ser entendidos em toda a sua magnificência senão pela via do «Não».

O «Não» nega a comodidade, a facilidade e a vulgaridade do instante imediato, os «factos».
O «Não» é o símbolo da liberdade.

Que a terra gire em volta do sol, e não o contrário; que o «David» de Miguel Ângelo tenha a perfeição que jamais pode ter o autêntico David; que «o outro», o próximo, o eu aqui, constituam revelações , manifestações do Ser, que podem somente ser observado para além dos factos em estado bruto dos sentidos, para além do consentimento ingénuo ( do «Sim» dos Assassinos) que nós damos àquilo que diariamente nos aparece.

11. Nós, poetas do mundo, nós seremos os Poetas do «Não», ou não seremos.

12. Para nós, « a Beleza será convulsiva ou não será» ( Breton)

13. Este «Não» é totalitário no sentido mais nobre do termo, ou melhor, um «Não» totalizador: engloba todos os sujeitos do mundo humano, pois «o inumano é-nos estranho»

Nem o amor, nem o erotismo nem a sexualidade nos são estranhos. Nem a Paixão do Absoluto ( Louis Aragon). Nem aquilo que hoje se chamam as guerras.

«Guerras», são o que se chama às agressões do Império contra os povos mais frágeis da Terra, por mais pequena que seja a sua riqueza que falta ainda pilhar, ou aqueles que têm uma posição estratégica, do ponto de vista da execução do sacrossanto trabalho de pilhagem dos povos que restam ainda relativamente indemnes.

A nós, poetas do mundo, elas não nos deixam indiferentes e perturbam-nos. Somos igualmente sensíveis à iséria «globalizada» que cresce regularmente, à hipocrisia dos também e cada vez mais globalizados « direitos dos homens» que são, na realidade, os «direitos dos dissolventes».

«Direitos dos Homem». Eis uma esquisita associação de palavras. Palavras que temos o dever de defender contra toda a malícia, contra todo o contrabando que possa ocultar ou corromper a verdade.

14. Nós, os poetas do mundo, temos o dever de alumiar as auroras.

O nosso ofício são as palavras e a nossa obrigação, em conjunto com os nossos camaradas criadores da ficção literária, é de desmascarar milhões de termos e de frases evidentemente falas que nos «vendem» como se fossem verdadeiras.

Tal como acontece para com os tão citados «direitos do Homem», o nosso dever moral, subversivo, escandaloso, demencial para o mundo «politicamente correcto» consiste em denunciar a insuportável expansão e normalização «defesa do ambiente». Não! Rejeitamos esta bandeira quando, hoje mais do que nunca, ela é brandida por aqueles mesmos que puseram em saque, de maneira sistemática, o planeta.

Temos igualmente horror aos restos das bandeiras negras dos piratas dos piratas do século XXI. Essas bandeiras não têm já as caveiras com dois ossos entrecruzados. Por um passe de magia, elas exibem agora as caras de jovens raparigas, fascinantes e bonitas. Caras essas com as quais nos tentam vender quer um veículo quer uma crença ingénua, sob o pretexto que o único interesse dos Assassinos Internacionais, multinacionais e nacionais é o nosso bem estar ou a preservação da Natureza, os nossos «direitos do homem» e a nossa benfeitora - ainda que por eles desprezada – Terra Mãe.

Fariseus! Nós, os poetas do mundo, tomamos por exemplo o Cristo dos Evangelhos, e caminharemos ao lado dos Povos quando eles acordarem e gritarem «Basta!», lançando os mercadores para fora do Templo. O Templo do século XXI não se encontra em Jerusalém mas na própria Humanidade, aprisionada e espoliada como hera seca.

«Basta!»: chega de seres humanos condenados e condescendestes, apesar de condenados às trevas.

15. Nós, os poetas do mundo, voltar-nos-emos ao amor

Porque temos a certeza que não se vive mais «O Amor em tempos de Cólera»,mas antes a cólera desprovida de todo o amor. E que por causa do sexo sem alma, nem vida, nem mancha que nos envolve – virtual, incolor, inodoro e insípido – Eros tornou-se num gesto puramente patético que esquece toda a transcendência.

O desejo transpõe-se em objectos de consumo e consome-se neles.

Renuncia às delícias da comunhão dos corpos, das almas e dos espíritos, e transforma o mundo num «não-ligar», privado de todo o erotismo, com homens e mulheres entregues ao consumo da sua própria solidão.

Nós dizemos «Basta!» a esta des-erotização do mundo em que cada «eu» é um mónada sem janela a partir da qual ninguém consegue comunicar com quem quer que seja. Nesta compra-e-venda «global» em que o amor se tornou também numa mercadoria, é preciso dizer – uma vez mais com Marcuse – que a chamada «Revolução Sexual» que nos devia libertar e trazer a Felicidade se metamorfoseou em «Revolução de Negócios»

16. Um mundo sem amor é um mundo sem poesia. Se John Donne, Paul Eluard, Jlio Cortázar, Paul Celan, Garcia Lorca, Miguel Hernández, Nazim Hikmet ou Robert Desnos ressuscitassem neste século eles não escreveriam senão poemas de magnificência pelo amor.
Nós, os poetas do mundo, vivendo a mais dramática passagem entre dois séculos, nós erguemos os seus archotes e tentemos desesperadamente erotizar o mundo, a partir e com a nossa Poesia.

A Beleza é o nosso dever

17. «Não são os restos, são sementes», disse Tencha Bussi junto dos restos mortais do seu homem amado, Salvador Allende.

E nós, poetas do mundo, nós estamos implicados na esperança, na luta celeste e na sementeira. Para um dia poder dizer:

«Nós tomamos a palavra. Nós matamos os Assassinos com as palavras»

«As sementes tornar-se-ão frutos e petrificarão as falsidades dos Assassinos para que nunca mais conheçamos mártires. Nunca. Nunca mais!»

«Eis enfim o tempo dos que amam!»

[« … et bien que le troupeau pourrait vivre bâillonné, bien que certains pourraient tolérer ou encore préférer la discrétion, lui, Socrate, n'imaginait aucunement un monde fait de silences, un monde sans la parole qui réveille, qui excite, qui stimule, un monde dans lequel n'existeraient pas même les vers d'Homère, les tragédies d'Euripide, les histoires d'Hérodote. Il ne pouvait imaginer un monde dépourvu de voix et de mots. Le mot était pareil à l'antique feu que Prométhée déroba aux Dieux ; le mot donnait un sens à l'homme et lui conférait une aura sacrée, quasi divine. Sans ce mot, il était réduit à la plus simple créature sauvage et condamné à errer de par le monde comme une ombre ».]

Cristina Castello et Ricardo Dessau

Para aderir a este manifesto mandar uma mensagem a
manifeste@cristinacastello.com