20.8.05

Libertar a terra das ilusões celestes e da sua tirania ( por Raoul Vaneigem)



Inaugurando há cerca de dez mil anos um sistema de exploração da natureza e humana, a revolução agrária deu origem a uma civilização mercantil cuja evolução e as formas são, apesar da sua grande diversidade, marcadas pela persistência de alguns traços dominantes: a desigualdade social, a apropriação privada, o culto do poder e do lucro, o trabalho e a separação que este introduz entre as pulsões de vida e o espírito, que os pretende domar e reprimir, ainda que se trate de elementos naturais.
A relação que, na economia recolectora, anterior à aparição da agricultura intensiva, se estabeleceu por osmose entre a espécie humana e os reinos mineral, vegetal e animal, cedeu o lugar à sua forma alienada, a religião, a submissão da terra a um império celeste, a uma putrescência etérea repleta de criaturas fantasmáticas chamadas Deus, Deusas, Espíritos.
Os laços que, de uma forma compreensiva e afectiva, se tinham entrelaçado entre os elementos vivos, tornaram-se cadeias de uma tirania tutelar reinante, numa tonitruante vacuidade, nas alturas beatas do além.
As religiões institucionais nasceram do medo e do ódio dirigidos à natureza. Elas reflectem unanimemente aquela hostilidade gerada, há dez mil anos atrás, pela pilhagem, para fins lucrativos, dos bens prodigalizados pela terra. Em todo o lado em que os elementos naturais são celebrados em nome da fecundidade, o seu culto testemunha rituais bárbaros, holocaustos, sacrifícios sanguinários, crueldades tais que só miseráveis recalcando as suas pulsões de vida teriam talento para imaginar e caucionar por via de mandamentos do espírito, um instinto predador bestial que cabe à humanidade, não em transcender, mas em superar.
O sentido humano consiste em controlar a proliferação caótica da vida, a intervir de tal modo que a exuberância criativa se propague sem se destruir por super-abundância, a impedir que o brilho vital não se inverta em radiação mortal, da mesma maneira que uma necessidade de amor não satisfeito se transforma em animosidade.
Acontece o mesmo aí: manter entre os animais selvagens um equilíbrio entre presas e predadores; prevenir o empobrecimento das árvores em excesso e a combustão das matas limpando as florestas; fazer nascer crianças que sejam desejadas, amadas, estimadas, educadas no amor à vida, e não encorajar a proliferação natalista condenando-os à pobreza, à doença, ao enfado, ao trabalho, sofrimento e violência.
Todas as religiões, sem qualquer excepção, oprimem o corpo em nome do espírito, menosprezam a terra em nome do céu, propagandeiam o ódio e a crueldade em nome do amor. As ideologias fazem a mesma coisa, sob o pretexto de garantir a ordem social e o bem público. Limitar-se a opor a laicidade do poder ao poder das religiões é combater a mentira sagrada com as armas da mentira profana.
O clero assenta a sua hegemonia na base do caos social e da miséria. Eles aproveitam-se desse formigueiro, em que a sobrevivência se faz à custa da verdadeira vida, para arrogar-se o privilégio de fazer, segundo as directivas pretensamente divinas, cortes na super-abundância dos povos. Eles realizam suplícios, imolações, eliminando os excedentes e legalizando as hecatombes, tudo em nome do Todo-Poderoso. Defendem a salvação da clã, da tribo, da comunidade, da espécie pelo nivelamento da morte soberana. Abrem sobre uma estrada mítica, cuja riqueza acompanha as carências de cá em baixo, a invisível porta das suas certezas dogmáticas.
O individuo fica sacrificado a favor do gregário. Na prensa dos rituais de endoutrinamento, a alegria de viver, comprimida, recalcada, esmagada, laminada, rebenta e deixa transpirar, no seu cadáver, a fé . Uma crença, que defende a salvação pelo preço de uma vida mutilada, mata. Como nos espantar?
O princípio da fatalidade, segundo o qual a cada instante a morte cerca o vivo, ilustra o mecanismo de auto-regulação, que o caos, a proliferar, recorre espontaneamente. Daí o obscurantismo, a inteligência obstruída, o credo quia absurdum, que, ocultando a potência criativa do homem, revoga, há milénios, a nossa única possibilidade de aceder à vida e de a propagar.
O pretendido regresso das religiões não traduz senão uma dessas regressões em que o passado se manifesta por uma ressurgência factícia e passageira. Não há arcaísmos unidos que não sejam espectaculares e paródicos. Arrasando os nossos modos de crenças e de pensamentos tradicionais em benefício do cálculo a curto prazo, o mercantilismo planetário fez das religiões e das ideologias políticas simples elementos conjunturais para as suas necessidades. Recupera-as e desembaraça-se delas conforme o mercado sente ou não necessidade.
O repugnante princípio do « tudo é permitido desde que traga mais lucro» inunda até à náusea as mais diversas sociedades e tornou-se no niilismo a filosofia dos negócios.
O consumismo devorou o cristianismo. Depois de Jesus, Jeová, Monn e o Dalai Lama, não tardará que também Maomé entre no McDonalds como um enfeite oferecido como um brinde. O culto do dinheiro acaba por perverter todos os outros.
O espírito religioso subsiste nas águas corrompidas de um passado pantanoso, as instituições eclesiásticas não são mais que embalagens de um produto mercantil. O ecumenismo de negócios mistura no mesmo saco o catolicismo vaticanesco, o calvinismo de Wall Street, as máfias sob as bandeiras do sunismo, do chiísmo, do wahhabismo, do sionismo, do hinduísmo, do sikhismo. O Deus da agiotagem e a fé de não importa que deus servem de livre-trânsito para crenças obsoletas e fantasmagorias à Jérôme Bosch, que contribuíram para uma extraordinários voga de seitas, apesar deste facto ter caído no esquecimento rápido demais. Está na lógica mercantil recuperar em seu proveito a perdição da alma que aquela provoca. Nessa matéria, as modas equivalem-se.
O capital conduz, sob todos os climas que vêm degradando, uma verdadeira guerra fria contra as populações. Ele parodia o antigo afrontamento que opôs o Leste ao Oeste, o império moscovita ao americano. Hoje, do que se trata, é de uma guerra de gangs e de tribos comanditados pelos mercados de armamento, do petróleo, do narcotráfico, do agro-alimentar, das biotecnologias, da informática, dos grupos financeiros, dos serviços parasitários, da pesca intensiva, do comércio dos seres humanos, do tráfico de animais, da pilhagem das florestas.
A única Internacional efectiva e eficaz é d’ora avante a dos mortes-vivos que têm necessidade de fazer da terra um cemitério. Verdade seja dita que o movimento operário tinha já abandonado o internacionalismo ais estalinistas do antigo império soviético e aos seus sectários, os Mão, os Pol Pot, os Ceausescu, os Castro e outros caudilhos. Como é que o reflexo da servidão voluntária, conseguida com tanto zelo graças ao matraquear da informação e da educação, não aumentaria a taxa de audiência junto dos meios promocionais do fatalismo, sejam eles laicos ou religiosos? ( os que, nos tempos actuais, conjuram a resignação dos muçulmanos, talvez fizessem bem em interrogar-se sobra a sua própria).
Saídas de um sistema económico que as regurgitava até ao seu ponto mais alto, as religiões, sempre irrisórias e ameaçantes, são bem a imagem do dinheiro virtual, que, no meio de absurdos e abstractas cotações bolsistas, destrói a estrutura da metalurgia, dos têxteis, da agricultura natural , da saúde, do ensino , dos serviços públicos e a existência de milhões de pessoas.
Deste bolha especulativa financeira, a encher sem parar, e que os economistas prevêem uma estouro, procede um espírito apocalíptico, menos marcado de medo que de cinismo.
Reproduzindo o velho esquema do fim do mundo – tão frequentemente associado, outrora, a reivindicações igualitárias – o programa de destruição planetária e da vida terrestre identifica-se hoje, mais do que nunca, com o mundo dos negócios. Como é que esta visão eminentemente religiosa não poderia prescindir do espectáculo? Nada suscita maior fascínio trivial e mórbido que a encenação, regida por um maniqueísmo de função variável, de bons e maus anjos exterminadores, cujas milícias indistintas apoiam indiferentemente corruptores de climas, envenenadores de alimentos, poluidores de todo o género, fazedores de guerra e miséria, assassinos, autores de massacres, terroristas brandindo ou não a bandeira de uma causa.
Uma única coisa não aparece no universal espectáculo e nas suas cenografias da morte em directo: a simples evidência para milhões de seres humanos que a vida existe e merece ser vivida.
As sociedades patriarcais menosprezaram a busca de felicidade terrestre. Agora que os valores fundadores da sociedade gregária se dissolveram nas águas sujas do cálculo egoísta, cada um encontra-se sozinho a procurar referências no seu caminho, sozinho a errar na falta de tais referências com a angústia de se perder, sozinho a fazer-se à sua própria custa, a descobrir os seus recursos pessoais, a faculdade de criar, os seus verdadeiros desejos e a vontade de os satisfazer.
É aqui, no próprio lugar em que, por via da crise planetária, se esboça uma mutação, que o nascimento plausível de um mundo novo faz renascer do passado figuras que resistiram ao obscurantismo, se rebelaram contra a opressão, defenderam a emancipação do homem e da mulher, e testemunharam, para uma insolente modernidade, uma radicalidade que só agora vai emergindo: Aleydis de Cambrai, Marguerite Porete, Willem Cornelisz de Antuérpia, Heilwige Bloemmardine de Bruxelas, Dolcino e Margarita de Novara, Thomas Scoto de Lisboa, Francisca Hernández de Salamanca, Herman de Rijswijk, Éloi Pruystinck de Antuérpia
Nota-se que, desde a Idade Média ao Renascimento, numerosas mulheres combateram, com persistência, a opressão religiosa em nome do amor, da liberdade de desejar, da generosidade da vida. A emancipação da mulher acompanha o declínio do patriarcado cujo destino está ligado ao sistema de exploração da natureza. É por isso que ela constitui um elemento motor da consciência humana.
É preciso não esquecer que as mulheres sicilianas foram as primeiras a combater a máfia, assim como a coragem das mulheres árabes, iranianas, afegãs face ao despotismo exercido pelo homem sobre elas, que faz esquecer o quanto ele é esmagado por uma opressão similar.
Porque professa o temor e o desprezo pela natureza, não há religião que não tenha medo e menospreza a mulher. Mas depois de tanto tempo a alimentar esta servidão, de que o macho prevalece na sua obsessão de ser enganado, a tradição patriarcal vacila e bate em retirada. O receio do macho de ser destronado não é alheio aos sobressaltos dos movimentos populistas laicos, que os integrismos não são mais que a versão ainda mais arcaica.
Que o machismo em desespero descubra um reconfortante refúgio no coração das citadelas do fundamentalismo, do nacionalismo, do tribalismo explica também porque é que a vontade viril e democrática de erradicar os totalitarismos religiosos e ideológicos acabe tão facilmente na mole indignação, em decisões inoperantes e em homílias inconsequentes.
Toda a religião é fundamentalista desde que ela possua poder. Se, como diz Holbach, «padres, predicantes, rabinos, etc invocam a infalibilidade todas as vezes que são alvo de contradita, será interessante notar quanto eles se mostram conciliantes e doces nos períodos em que não gozam a comodidade de oprimir.
Abandonar o Estado ao Islão é termos logo os talibãs e a charia; tolerar o totalitarismo papista e a Inquisição não tarda a surgir, tal como o crime de blasfémia, a propaganda natalista. Reforçar o poder dos rabinos e não será surpresa o renascimento do velho anátema da religião hebraica contra os goyim.
É altura de dizer claramente: que ninguém seja impedido de praticar uma religião, de seguir uma crença, defender uma ideologia, mas que não queira impô-la aos outros e, sobretudo, endoutrinar as crianças. Que todas as crenças se exprimam livremente, até as mais aberrantes, estúpidas e ignóbeis na condição expressa que, respeitando as opiniões, por mais singulares que sejam, ninguém seja obrigado a segui-las contra a sua vontade.
Nada é sagrado. Cada qual tem o direito de criticar, de esconjurar, ridicularizar todas as crenças, religiões, ideologias, sistemas e pensamentos. Há também o direito de achincalhar os deuses, os Messias, os profetas, os papas, os rabinos, os imãs, os bonzos, os pastores, os gurus, tanto como os chefes de Estado, reis e caudilhos de todo o género.
Mas uma liberdade renega-se desde o momento em que ela não emana da vontade de viver em pleno. O espírito religioso ressuscita sempre em que se perpetua o sacrifício, a resignação, a culpabilidade, o ódio de si, o medo da alegria, o pecado, a desnaturalização e a impotência do homem em tornar-se humano.
Os que tentam destruir a religião reprimindo não fizeram senão reforçá-la, porque ela é por excelência o espírito da opressão renascendo das cinzas. Ela alimenta-se de cadáveres e é-lhe indiferente que sejam vivos ou mortos os mártires da sua fé ou as vítimas da sua intolerância. O vírus religioso reaparecerá enquanto houver gente a lamentar-se, como de um título de nobreza se tratasse, da sua pobreza, da sua doença, da sua debilidade, da sua dependência, ou seja, de uma revolta condenada ao fracasso.
Deus e os seus avatares não são senão os fantasmas de um corpo mutilado. A única garantia para pôr fim ao império celeste e à tirania das ideias mortas é religar os laços entre as pulsões do corpo e a inteligência sensível que as afina. É restabelecer a comunicação entre a consciência e a única radicalidade: a aspiração do maior número à felicidade, à alegria, à criatividade.
Só há invenção de uma vida terrestre, devolvida à riqueza dos nossos desejos, para consumar a superação da religião e da sua serva, a filosofia.

Raoul Vaneigem,
1 Janeiro de 2005

( texto que serve de prefácio à reedição de 2005 de «Le Mouvement du libré-esprit», nas edições L’or des fous editeur)