27.11.10

Eu não abracei o tio rico (Teatro Nacional S. João): texto de Nuno Meireles

Texto de Nuno Meireles, retirado do blogue

http://jogodramatico.blogspot.com/


Um abraço ao tio rico cuja mulher foi para longe, enquanto os primos passam dificuldades

Abraçou-se o Teatro Nacional S.João. Foram entre 1200 e 200o pessoas (conforme as fontes). Estavam pessoas das escolas de teatro (alunos e professores), estavam celebridades, profissionais (a participar no actual espectáculo do TNSJ), e ainda estavam anónimos.

Foi notícia abraçar-se um teatro que não vai falir, que não passa dificuldades, cujos membros não precisam de emigrar, que tem um orçamento milionário e cobra bilhetes a preços comerciais e, mesmo assim, produz trabalhos que são somente criações pessoais, apresentados como criações pessoais, com as arbitrárias consequências de qualquer criação pessoal, tendo o selo deste ou daquele criador - mas com a diferença fundamental de ser feito com muito dinheiro, num espaço sociológico que automaticamente imprime um selo de "qualidade superior".

As últimas produções de qualidade que vi no TNSJ foram acolhimentos: A Mãe, de Bertolt Brecht, pelo Teatro de Almada/Encenação de Joaquim Benite; Idiotas, a partir de Dostoiévski, pelo Memo Fortas/encenação de Eimuntas Nekrosius.

Paguei para os ver.

Assim como paguei para ver as estopadas do Platónov, de Anton Tchékhov/encenação de Nuno Cardoso, Turismo Infinito, a partir de Fernando Pessoa/encenação de Ricardo Pais e Breve Sumário da História de Deus, de Gil VIcente/encenação de Nuno Carinhas - produções da casa.

Muitos dos que foram fotografados a abraçar o teatro não pagaram, nem pagam. Não vêem as peças pensando se vale o dinheiro e a espera na fila.

Seguem as perguntas e respostas sobre este tema:

"Tem o TNSJ a qualidade superior que o seu selo dá a entender?"

Não.
Tem muito dinheiro e pessoas como todas as outras.

"Valem as produções do TNSJ mais que as outras?"

Não.
São feitas apenas com muito dinheiro e em salas quentes, grandes e douradas.

"Saímos modificados das produções do TNSJ?"

Não.
Saímos enfastiados, porque é só mais uma criação deste ou daquele criador, sabendo invariavelmente a desnecessário.

"A cidade do Porto deve muito ao TNSJ?"

De facto sim, como deve a qualquer instrumento de poder e legitimação do poder: muitos da cidade do Porto estarão eternamente agradecidos ao TNSJ pela elevação simbólica que lhes trouxe a sua associação com o TNSJ.

"Então, sendo assim, se o TNSJ é dessa maneira, quem devemos abraçar?"
Abrace-se antes os não alinhados, os que não têm padrinhos, que não estão dentro do sistema, que fazem um trabalho não comprometido, independente e - ponto vital que o TNSJ falha completamente a dar - artisticamente pertinente. Por exemplo:


LaMarmita, na dança-teatro e música

Nuizis Zobop, nas novas linguagens e escritas performativas

Dois Pontos Associação Cultural, na descentralização das actividades culturais, em especial teatro e poesia

Isto só para falar de estruturas próximas, que são tenazes sobreviventes persistindo com um trabalho ímpar, de uma riqueza artística inversamente proporcional aos seus baixos orçamentos, sem padrinhos, sem papás, e sem o tio rico.


Imagens do abraço, muito concorrido, por sinal, ao tio rico