15.3.10

Os poetas da Meia-Noite




No proximo dia 20 de Março, a Casa da Comédia , por sugestão de Catarina N. de Almeida, vai comemorar o dia Mundial da Poesia com um evento onde vão estar presentes os poetas Miguel-Manso; Filipa Leal; Vasco Gato;Catarina Nunes de Almeida; Ana Salomé e Hugo Milhanas Machado.

Segue em epigrafe alguns exemplos da obra de cada um deles..

Lá os esperamos!
A entrada é livre..
Reservas pelos numeros: 919175069 / 967767512.

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Último Cigarro

o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima insuficiência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia

(Miguel-Manso, in "Contra a Manhã Burra", reeditado por Mariposa Azual)

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Os Que Não Viam
Na cidade, os que não viam
perguntavam: "Estás aí?"
mesmo quando não falavam
ao telefone.

E tudo era pausa
sem a nítida respiração
das coisas.
Tudo era ainda
à espera da voz, do som
natural ou improvável.
Tudo era antes de ser.

Havia também os que viam.
Mas esses, tragicamente,
perguntavam menos.

(Filipa Leal, in "A Cidade Líquida e Outras Texturas", Deriva Editores)

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SONATA

O violoncelo encosta a cabeça ao teu ombro
e é um lamento ainda vegetal que lhe sai do sangue
quando o arco rasga o ar, o silêncio, a mão.

Fechas e abres os olhos, há gente a escutar,
as paredes curvam-se e estalam, tudo é frágil,
e a partitura é sempre um pouco além do olhar.
Os dedos levitam sua dureza sobre as cordas,
estremeces amarrada à vertigem da tua
própria queda - nisto se ergue a música.

Também tu não possuis trastos, tacteias
interiormente em busca das notas particulares
e do movimento inspirado.

Há uma demorada e subtil alquimia nesta sala.

E o violoncelo é o imóvel instrumento
da tua trágica, suave aparição.

(Vasco Gato, in "IMO", Edições Quasi)

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A estrada entregava-se lenta aos pés
e as vozes recolhiam-se sempre mais até serem
um fio de prado um horto de lutos cristalizados:
da marcha líquida dos soldados
bebem as aves e as aveleiras.
Os homens desaguaram dentro dos homens
bailarinas alinhadas para o primeiro acto de amor.
Só o amor cheira a sangue só as cigarras
o perfume das espadas na ossatura dos campos
completam a primavera na vala comum.

(Catarina Nunes de Almeida, in "A Metamorfose das Plantas dos Pés", Deriva Editores)

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Ode ao amor entre pintores
Para o Egon.

é tão ruidoso aquele bater do vento nas mãos
é tão límpido também aquele cheiro nauseante da aguarrás
poderia dizer-te vem e vamos pegar fogo a esta casa
e mudamo-nos para aquele canto
pôr nas palavras o pastoso sabor da cor
e passar pelo corpo os pincéis e a língua de gato
embebedarmo-nos com terebentina tomarmos mescalina
e outras coisas felizes compradas na feira
nas radiantes tardes naquele estúdio pequeno em frente ao mar
é tão ruidosa a existência de alguma coisa que começa
as telas encaixotadas a caminho de Bombaim
vão todas a arder mas não faz mal
é tão límpida cada mancha nos teus dedos
poderia envolver-me nos braços em teu redor
perguntar-te queres café compor-te o cabelo
adormecer no seguimento do cigarro
enquanto pintavas a noite nas paredes

é tudo tão ruidoso tão repentino
que não houve tempo de escolher as cortinas
com outros cuidados desculpa
também elas se põem todas a arder mas não faz mal
poderia pedir-te que me dissesses um poema longo
perguntar-te queres café compor-te o cabelo
enquanto escrevias os meus braços nas paredes
com marteladas fundas mas delicadas

nas paredes daquele pequeno estúdio em frente ao mar
há um ruído muito nosso
que passa em todas as estações de rádio e ninguém ouve
em todas as gasolineiras e ninguém ouve
em todas as tribunas e ninguém ouve
ele cabe ali naquele caos naquele vislumbre
e também ele se põe todo a arder mas não faz mal

o teu corpo é uma luva onde entro quando entras
uma luva à prova da bala que arde violentamente
à nossa procura
na pequena galeria dos cristais de sangue
a poesia acontece disparar abrir fogo
e o universo, naquele pequeno estúdio em frente ao mar,
não precisa de um desenho para nascer
quando dizes estou aqui a sorrir
e pegas na minha mão para o passeio habitual
depois de vestirmos os casacos de lã.

(Ana Salomé, in "Odes", Canto Escuro)
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PRE!
O estádio ergue-se na maravilhosa
respiração da tua força
corres veloz
no pulmão do meu poema

na ponta dos dedos
o vínculo do teu ensinamento
no olímpico de Munique o animal eco
do teu desejo
no tartan

a tua morte permissão de todas as mortes
a tua derrota um hino o mais belo

e o teu sabor
e tudo reescrito
uma imagem que por aqui
se apoderava
e trazia sentido.

(Hugo Milhanas Machado, in "Clave do Mundo", Sombra do Amor)