3.6.07

Jornais de grande circulação publicam artigos sobre o movimento libertário em Portugal


No último mês de Maio apareceram na imprensa de grande circulação alguns artigos sobre o movimento anarquista em Portugal ou, pelo menos, sobre alguns elementos que se reclamam deste ideário. Como mais vale tarde do que nunca, aqui se dá nota do acontecimento. O primeiro desses textos apareceu no semanário Sol de 5 de Maio sob o título «Os novos anti-fascistas», o segundo tem como titulo «O que faz falta é agitar a malta» e foi publicado na revista dominical que acompanha o jornal Correio da Manhã alguns dias depois da manifestação anti-autoritária realizada a 25 de Abril. Finalmente, um artigo de autoria do jornalista Pedro Rios foi publicado no jornal Público do dia 15 de Maio com o título «Anarquistas, apesar de tudo»



'Manif's'

O que faz falta é agitar a malta




Recusam o capitalismo e a globalização. São anti-racistas. São pelos direitos das mulheres e dos imigrantes. São jovens. Estudantes. Actores sem palco. Docentes às vezes. Recusam os partidos. Outros militam. Entendem-se algures, para além da esquerda bem comportada


Diferentes nos modos de acção, partilham as causas do anticapitalismo e do anti-racismo. Enfrentam, nas ruas e nas escolas, a extrema-direita. Quase sempre sem violência. Mas nunca fiando. É bom que os mais aguerridos de um lado e do outro não cheguem a cruzar-se. Ou haverá peleja.

Manuel Baptista é professor de Ciências do Ensino Secundário, tem 52 aos e define-se como anarquista. Só não lhe chamem militante da extrema-esquerda. Porque não é de extrema nem de esquerda, nem de direita e ainda menos do centro. “Os movimentos anarquistas colocaram-se sempre fora do sistema partidário”, explica aos menos atentos.

Filho de um resistente antifascista ligado ao PCP, na adolescência Manuel admirou Lenine, alma da revolução russa e fundador da URSS. Foi sol de pouca dura. “Rapidamente compreendi que esse comunismo não era o meu ideal.” Deu-se a ruptura. Fez trabalho sindical. Desiludiu-se ao constatar que “as pessoas, quando se tornam hierarcas, perdem o sentido político da solidariedade.”

Para o colaborador do jornal anarquista ‘A Batalha’, opor-se à exploração do homem pelo homem implica recusar a autoridade de uns homens sobre os outros e, em consequência, o Estado. É por isso que se considera comunista. E entende que não o são os que se dizem marxistas-leninistas.

Casado e pai, paga os seus impostos, embora gostasse de poder fugir-lhes. Resiste a qualquer forma de Estado – seja “suporte do capitalismo” ou dito “dos trabalhadores” –, mas cumpre as leis que dele emanam. Tem bagagem teórica e experiência de vida suficientes para reconhecer que ser anarquista hoje é “viver em contradição”.

Mesmo insatisfeito, é um libertário cortês e elegante. Tem o sorriso fácil. Não se veste de preto. Não usa gorro passa-montanhas. Não exibe qualquer pin ou bandeira com a primeira letra do alfabeto rasgada dentro de um círculo. Mas partilha com os que assim se apresentam as causas do anticapitalismo e a defesa dos imigrantes. Diz que fazem parte da mesma “galáxia antiautoritária”.

Uma galáxia que integra também astros habitualmente na órbita do Bloco de Esquerda – para Manuel Baptista, “não compreenderam ainda que há um fosso entre marxismo autoritário e marxismo libertário”.

Os astros antiautoritários tornaram-se por estes dias mais luminosos em reacção aos sinais de recrudescimento da extrema-direita em Portugal. Desde a morte, no Bairro Alto, de Alcino Monteiro, às mãos de sete skinheads, a 10 de Junho de 1995, que não se falava e escrevia tanto sobre pessoas que perfilham ideias neo-nazis, entre as quais a supremacia da raça branca. Ter-se considerado, mesmo se no âmbito de um programa de televisão, Oliveira Salazar o maior português de sempre também contribuiu para acicatar os ânimos daqueles cujo coração bate à esquerda. Ou para lá dela.

Tem uma peruca roxa, óculos escuros e piercings nos lábios. De estatura franzina, aparenta cerca de 20 anos. Não fala para a Imprensa, que – acusa – “deturpa a mensagem”. Distribui comunicados. “Todos conhecemos casos de miséria, de injustiça social, de terrorismo policial, estatal ou patronal (...) Mas esses pouco ou nada são divulgados nos media. No entanto, a grupúsculos de extrema-direita que propagam ideias racistas e xenófobas, que defendem ideologias como o fascismo e o nazismo, responsáveis por dezenas de milhões de mortos, é dada publicidade desmedida”. É o que diz o comunicado. Não assinado.

Diz ainda: “Defender a sacrossanta propriedade privada contra os que voluntária ou involuntariamente são colocados à margem do sistema” é a “necessidade histórica do capitalismo”. Para concluir que “a existência de grupos nazis e fascistas e a sua sobrevalorização pelos media distrai-nos dos que são os nossos verdadeiros inimigos: o Estado e o Capital.”

Junto da peruca roxa segue um rapaz com o capuz da camisola cinzenta sobre a cabeça, uma rapariga com rastas e outros dois rapazes. Não integram o cortejo ‘MayDay’ – significa Dia 1 de Maio e ao mesmo tempo um pedido de socorro usado pelos aviadores, que se supõe derivar da expressão francesa “m’aidez”, em português “ajudem-me”.

O grupo mantém a distância em relação à cauda da comitiva dos trabalhadores precários e intermitentes do espectáculo que, após o pic-nic vegetariano, abandona a Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, em direcção ao Estádio 1.º de Maio, onde vai juntar-se à manifestação da GCPT-IN, sob o olhar vigilante da Polícia, que não intervém.

Não foi assim no 25 de Abril, quando se celebrou o 33.º aniversário do “dia inicial, inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio” – como deixou escrito Sophia de Mello Breyner.

"ENCURRALARAM-NOS"

“Eles encurralaram-nos!” Eles são os agentes do Corpo de Intervenção da PSP e quem os acusa de terem recorrido a uma táctica usada contra os estudantes que se manifestavam contra o regime de Salazar e depois de Caetano é ‘Mário’, 30 anos, intermitente do espectáculo - às vezes trabalha, às vezes não.

‘Mário’ foi objector de consciência quando o serviço militar era obrigatório. Nunca votou. Habitou casas ocupadas em Portugal e passou por outras no estrangeiro, mas não lhe faltou o apoio do pai, académico, em períodos difíceis. Diz não ter partido nada. Não ter agredido ninguém na zona da Baixa/Chiado. Está assustado. “Eles encurralaram-nos!” Nem mais uma palavra. Nenhum comentário ou explicação sobre três ‘cockaitls molotov’ que a PSP diz ter apreendido. Nem sobre os mastros de metal, a substituir a madeira, das bandeiras negras.

Foi uma “manifestação antiautoritária, anticapitalista e antifascista”, não autorizada, que, a seguir às comemorações populares do 25 de Abril, partiu da Praça da Figueira em direcção ao Largo do Camões. Havia gente de cara tapada e vestida de preto, com o visual e comportamento associados ao ‘black block’ (ver caixa). Havia cães sem trela – alguns entre os anarcas são simpatizantes da Animal Liberation Front, organizada em células para o resgate, se necessário violento, de animais sujeitos a experiências científicas.

O relato de alguém que se intitula sub camarada Campos – o culto da clandestinidade entre os anarquista é evidente – encontra-se em blogues ligados à causa anticapitalista. “Ao longo do percurso foram pintadas frases na parede e atiradas algumas lâmpadas com tinta a vidros de lojas e bancos. Ninguém partiu montras.”

As frases ainda lá estão: “Eras um homem, agora és um polícia”; “O 25 de Abril passou mas a lei do bastão continua.” Os agentes do Corpo de Intervenção carregaram sobre quem se arriscou a voltar para trás, endireitando à sede, na rua da Prata, do Partido Nacional Renovador (PNR), de extrema-direita.

Sofia Roque, 24 anos, aluna de Filosofia combateu os neonazis com todas as suas forças de mulher delicada. O cenário da peleja foi a Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, disputada por uma lista com elementos da extrema-direita. Não foram além dos 81 votos. Ganhou, com 818, a lista U, supostamente afecta à JCP. Nem por isso Sofia, com um caracol louro de cada lado do rosto, mais compridos do que o restante cabelo, descansa: “Desta vez tiveram o dobro dos votos.”

Não aparenta 24 anos. Desde os 16 que se empenha na defesa das ideias tradicionalmente associadas à esquerda: direitos das mulheres e dos imigrantes, anticapitalismo e antiglobalização.

Neste momento milita no Bloco. Reparte-se entre os estudos, o trabalho, “precário”, numa livraria e o activismo. Reside na casa dos pais. “Pertenço à geração dos 500 euros.” Refere-se a uma geração qualificada, diplomada, pós-graduada, que salta de emprego em emprego, normalmente assinando recibos verdes. Em Espanha chamam-lhes mileuristas. Em Portugal não ganham nem metade.

Sofia participou no desfile ‘MayDay – o Precariado Rebela-se’ e, dias antes, na manifestação do 25 de Abril ao longo da Avenida da Liberdade. Deu pelos tomates deixados ao pé do cartaz do PNR, protegido pela Polícia, em que se apela ao regresso dos imigrantes. Mas não teve tempo de pegar num e lançá-lo. O anticapitalismo e o anti-racismo que preconiza são “festivos”. Não violentos. “Isso são generalizações permitidas pelos media.”

"ESPERO QUE PASSE"

“Espero que a moda passe” Vítor Ferreira, 20 anos, refere-se à “moda” de adoptar ideais e posturas da extrema-direita. Sinal de que a maré está a mudar é – assegura – o resultado do referendo sobre a despenalização do aborto. Fala calmamente. Não tem a resposta na ponta da língua. Franze a testa como se isso o ajudasse a reflectir ou então é por causa do sol, descoberto pelo movimento de uma nuvem. Traz uma t-shirt verde onde pode ler-se ‘sun block’ – significa protector solar mas, à letra, lê -se ‘bloco solar’. Indirecta para os ‘black block’? Vítor não se identifica com os anarquistas, mas partilha as causas do anticapitalismo e do anti-racismo. Não perde tempo a falar sobre os nacionalistas. “Tem-se dado demasiada visibilidade a essas pessoas.”

Veio do Porto para estudar Medicina. No futuro espera não tratar só os endinheirados. “Não acabam com o Serviço Nacional de Saúde!” Mesmo então não se zanga. É o rosto da esquerda tranquila.

PRECÁRIOS DO MUNDO...

“Mayday, mayday” é um pedido de socorro usado pelos aviadores aflitos. Os trabalhadores precários não pilotam aviões desgovernados, mas sentem-se quase tão ansiosos acerca do futuro como aqueles. MayDay significa também Dia 1 de Maio e, no caso, reporta-se a uma parada de trabalhadores sem vínculo laboral simultânea em vários países do Mundo. Iniciou-se em Milão em 2002 e este ano realizou-se pela primeira vez em Lisboa. Operadores de call center, bolseiros de investigação científica, artistas e estudantes universitários rebelaram-se contra “a promessa de um futuro de exploração selvagem, sem direitos ou qualquer espaço para os exigir”. Um dos manifestantes contava que se os asmáticos são um milhão, os precários são muito mais e “o pior é que há precários asmáticos”. Mas não lhes falta criatividade.

"POLÍTICA É MAIS DO QUE IR VOTAR"

Os pais de Sofia Roque, 24 anos, militante do Bloco de Esquerda, “são politizados na medida em que a maioria dos portugueses é politizada, ou seja, votam quando há eleições”. Para esta estudante de Filosofia, não é suficiente. Sofia começou aos 16 anos a empenhar-se na denúncia do capitalismo, da discriminação das mulheres e dos imigrantes. “Foi o resultado de uma reflexão própria de que a política havia de ser mais do que votar nas eleições.” Na altura estudante do Ensino Secundário, tinha, além disso, “algo a dizer sobre a maneira como funcionava a escola”. Desenvolveu consciência política e dirigiu-a para a acção, depois também na Universidade.

Nasceu nove anos depois do 25 de Abril. Não sentiu a ditadura na pele, mas entristece-a o “branqueamento” da sua figura maior – Oliveira Salazar.

FRASES ANARCAS

- Ruim por ruim, votem em mim [no Galo de Barcelos]

- O MRPP é a vanguarda da classe operária. Está tão à frente que a classe operária não consegue apanhá-lo.

- Eu trabalho. Tu suas. Ele engorda.

- O nosso trabalho é o negócio (sobre a Polícia)

- em 1976 era... A terra a quem a trabalha, mortos fora dos cemitérios já!



TÁCTICA 'BLACK BLOCK' TAMBÉM EM LISBOA

Chamam-lhe ‘black block’ (bloco negro). É um pequeno grupo de activistas, entre três e 20, que se reúne em acções de protesto e manifestações anticapitalistas ou antiglobalização. Os elementos vestem-se de preto e tapam a cara – assim aparentam coesão, remetem para iconografia da acção revolucionária e evitam que a polícia os identifique. Confundido muitas vezes com uma organização internacional, o ‘black block’ é de facto uma táctica usada por alguns manifestantes.

Quando há destruição de propriedade, os ataques dirigem-se a bancos, edifícios do Estado, lojas de multinacionais, estações de abastecimento de gasolina e instalações de videovigilância. Em Portugal, os movimentos antiglobalização e anarquistas não representaram, em 2006, preocupação para o Serviço de Informações de Segurança (SIS), mais inquieto com os grupos neonazis. “São um risco efectivo para a segurança interna no tocante ao incitamento e promoção da violência política e racial.”

O ‘black blocK’ não é uma organização internacional, mas isso não significa que os activistas mais radicais não colaborem. Na manifestação contra o fascismo e o capitalismo de 25 de Abril estiveram presentes belgas, espanhóis e irlandeses.
Isabel Ramos

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Anarquistas, apesar de tudo
(histórias de 10 anarquistas)
Artigo do jornal Publico (15 de Maio de 2007)


O protesto no Chiado no 25 de Abril foi um dos maiores agrupamentos de anarquistas dos últimos anos em Portugal. Acreditam numa sociedade sem chefes, mas convivem com as inevitáveis contradições. Histórias de dez anarquistas de todos as idades
No último 25 de Abril, no Chiado, em Lisboa, surgiram de bandeiras pretas, panos com letras "A" circuladas e foram entoando palavras de ordem contra o Estado, o fascismo e o capital, numa manifestação que terminou com uma polémica carga policial.
São na sua maioria jovens, mas também os há em plena idade adulta. São anarquistas: acreditam numa sociedade sem Estado nem chefes, mas convivem diariamente com as contradições de quem vive num mundo oposto ao que imaginam.
É o caso de José Silva, nome fictício, que pede o anonimato por receio de represálias por parte dos militantes da extrema-direita. Tem 20 anos, vive em Lisboa e é estudante universitário. A actual maior visibilidade da extrema-direita portuguesa foi um dos factores que o levou a participar no protesto: "estão a crescer" e "andam saídos da casca".
A manifestação do 25 de Abril "serviu de ponto de encontro de diversos movimentos", não apenas anarquistas, contra um inimigo comum - o fascismo. "Foi uma concentração bastante grande. Foi bastante surpreendente ver tantas pessoas." E José Silva define os contornos do protesto: foi uma "manifestação anti-autoritária contra o capitalismo e o fascismo". Terá juntado cerca de 300 pessoas (150 na versão policial), sendo porventura o maior protesto a envolver anarquistas dos últimos anos.
José Silva, que se queixa de ter levado três bastonadas de um polícia sem justificação, foi um dos criadores do Cravado no Carmo, um site que reúne testemunhos e informação sobre o que os manifestantes consideram ser a acção "despropositada" e "injustificada" da PSP no Chiado. A polícia justificou a intervenção com um alegado comportamento agressivo e actos de vandalismo dos participantes do protesto. Onze pessoas com idades entre os 20 e os 30 anos foram detidas.
António Sousa é outro dos manifestantes, de 28 anos, também anarquista. Invoca o mesmo receio de represálias para usar um nome fictício na conversa com o P2. "Durante dois anos tive a minha foto na net. Vi amigos terem "nazis" à porta de casa", justifica este lisboeta, que andou pela "okupa" da Praça de Espanha, nos anos 90 e já foi detido por participar em manifestações ilegais. "Por posição ideológica não pedimos autorização ao governo civil", refere.
Com 22 anos, João (pediu para não ser identificado pelo apelido), de Évora, secretário e membro da banda anarco-punk Inconformidade Anti-Constitucional, participou no protesto para "mostrar às pessoas que existe uma alternativa", "numa altura em que o sistema tem legalizado um partido político assumidamente "nazionalista" [o PNR]", conta por e-mail. À semelhança dos outros manifestantes ouvidos pelo P2, ficou "espantado" com as dimensões da manifestação e conclui que "o movimento está a crescer".
Diogo Duarte, de 22 anos, anarquista e estudante de Antropologia Social no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), não concorda com esta análise. "Não considero que haja um movimento anarquista em Portugal. Mesmo os que se manifestaram são agrupamentos de indivíduos muito dispersos", contrapõe. O estudante acredita que "há terreno" para que "características anarquistas" tenham aplicação no dia-dia e cita como exemplos o software de código aberto e as licenças flexíveis de propriedade intelectual Creative Commons.


Viver em contradição


Mas no desfile pelo Chiado não havia só jovens. Júlio Conceição, 43 anos, gritou "contra o Estado e o capital". Pertence a uma "associação de ecologia social anti-autoritária", a Planeta Azul, que nasceu há 15 anos no Porto. Dá aulas de português a cerca de 50 imigrantes e dinamiza grupos de escuteiros livres, sem chefes e com uma postura crítica.
Também a Terra Viva, do Porto, desenvolve trabalho no âmbito da ecologia social e com escuteiros livres. José Paiva, membro da associação, refere duas ideias-chave da ecologia social: o capitalismo e o respeito pela natureza são incompatíveis e o ambientalismo é muitas vezes sinónimo de "capitalismo verde".
José Paiva tornou-se anarquista depois da revolução de 1974, quando percebeu que os partidos de extrema-esquerda, onde militou, não levariam a uma sociedade igualitária. Hoje, com 56 anos, põe a tónica na intervenção social. O anarquista deve intervir na sociedade, "não como vanguarda, mas ao lado, ombro a ombro, com pessoas não anarquistas", defende. "Se não hoje somos poucos e amanhã seremos ainda menos". Diogo Duarte, o estudante de antropologia, concorda. O anarquismo não é uma "utopia", diz. "Por uma razão: não pretende ser perfeito", explica o estudante, que chegou à ideologia no início desta década através de um livro de Noam Chomsky.
Anarquista dos sete costados, José Paiva recebe o subsídio de desemprego, concedido pelo Estado que ele próprio rejeita. Contradição? Ele diz que não: "O Estado não nos dá nada; devolve-nos um pouco do que lhes demos."


Ser vegetariano


"Qualquer anarquismo que se queira puro é reaccionário. A vida é feita de cambalhotas, mestiçagens e contradições", refere António Silva, de 48 anos, professor. Admite que o "sistema escolar faz das pessoas não tanto indivíduos livres como cidadãos obedientes", mas acredita que só através da "educação e da intervenção global" é que "o capitalismo e o poder dominante, cada vez mais global, se vão minando". É o que procura fazer nas suas aulas, no seu blogue , e no movimento ecologista.
"É quase viver em contradição", nota Diogo. Mesmo assim, tenta "questionar todo o tipo de autoridade". "Na faculdade, em que há um sistema altamente hierárquico, nunca me resignei ao espírito competitivo, quase de guerrilha", exemplifica. "Escolher aquilo que compro" e ser vegetariano são outras das pequenas vitórias do dia-a-dia para este libertário.
"Tento limitar o impacto da minha vida", aponta José Silva. Também é vegetariano e rejeita o tabaco, o álcool e as drogas para "estar o mais lúcido possível e consciente" de tudo o que o rodeia. A "autocrítica e o auto-controlo" são essenciais a este estudante que se diz "incapaz de tomar uma atitude autoritária". "Tendo a encarar isto mais como uma filosofia de vida do que como uma meta concreta que se tenta atingir. É um ideal lá ao fundo, vislumbrável aqui e ali."


Estruturas alternativas : Uma associação, duas livrarias e uma "okupa"


Não estamos numa associação anarquista, faz questão de esclarecer José Paiva, em conversa com o P2 na pequena sede da Terra Viva, na Rua dos Caldeireiros, no Porto. Mas o trabalho da associação no âmbito da ecologia social tem pontos de contacto com a postura contrária à autoridade e às hierarquias que caracteriza o anarquismo. E nas prateleiras e paredes vêem-se símbolos da ideologia, como uma bandeira igual às da antiga Confederação Geral do Trabalho (CGT), que congregou os anarco-sindicalistas do início do século XX, quando esta era a ideologia dominante no meio operário português.
A Terra Viva desenvolve trabalho com 260 jovens, muitos deles de meios sociais carenciados. Desta forma, a pequena equipa da associação quer formar "pessoas críticas", que se habituem a criar movimentos de base, como o Movimento de Utentes dos Transportes da Área Metropolitana do Porto. Paiva e outros membros da associação têm sido presença constante nos protestos contra a recente mudança na rede de autocarros da cidade.
Professora do 3º ciclo numa escola do Porto, Pilar Estefânia colabora com a sociedade desde que "não fira" os seus valores. "Todos nós temos uma vida tão burguesa como as outras. Temos trabalho, família...", admite esta espanhola com 66 anos que veio para o Porto nos anos 60.
"O que singulariza o anarquismo dos outros movimentos sociais é que ele não acredita no poder e, por isso, cria mecanismos de auto-poder, baseados em grupos de afinidade. Começa da base", diz, entusiasmada, ao P2. Encontramo-la na Utopia, livraria mantida por outro anarquista, o amigo Herculano Lapa, de 50 anos. Ironicamente situada junto a dois símbolos do poder (o quartel-general da Praça da República e a Igreja da Lapa), vende livros e revistas sobre anarquismo, situacionismo, ecologia e outros temas.


Sem assalariados


O equivalente lisboeta à Utopia é a Letra Livre. Situa-se na Calçada do Combro, artéria importante na história do anarquismo português - era lá a sede da CGT e do seu jornal A Batalha, a principal publicação operária e sindicalista da Primeira República.
A filosofia anarquista preside à organização da livraria: não há assalariados, os três sócios são os únicos trabalhadores. "Não aceito assalariados. É como se fosse uma cooperativa", explica um deles, Eduardo de Sousa, de 50 anos. É a forma de "evitar usar mecanismos de poder" e viver segundo a sua ideologia, apesar das inevitáveis "contradições".
A "semente" libertária está também plantada na Casa Viva, uma "ocupação autorizada" de um prédio na Praça do Marquês de Pombal, no Porto. Com 36 anos, António Cunha, introduzido no anarquismo no final dos anos 80 por José Paiva, vive do seu trabalho como vendedor de têxteis. Reconhece que o seu pensamento político implica "engolir muitos sapos". Mas lembra: "Só te manténs a lutar se estiveres vivo."
É fora da actividade que lhe permite sobreviver que age de acordo com a sua "ética": produz desde 1991 o fanzine Cadernos Insurreição e em 2005 juntou-se à Casa Viva. Não sendo constituída apenas por libertários (reúne várias sensibilidades à esquerda), esta "okupa" autorizada pelo proprietário funciona segundo princípios anti-autoritários. Os quatro pisos da casa centenária albergam exposições, concertos, ciclos de cinema, debates, entre outras actividades.
A realidade diária frustra o anarquista? "Frustra qualquer um", sublinha Eduardo de Sousa. "A vida é feita disso. Sei que o ritmo biológico não é o ritmo histórico. Vivo o período que me foi dado a viver", diz o livreiro, sublinhando que o anarquismo valoriza o dia presente, "vive o seu tempo".
"Não é uma remissão para o futuro da salvação, como pretendem os católicos. Falar do anarquismo em termos de utopia pode ser ilusório porque há quem o diga num sentido depreciativo. A abolição da escravatura também era vista como uma utopia", acrescenta.