24.1.07

A descriminalização do aborto


Numa tentativa de contribuir para esclarecer o que está em questão quando se fala da descriminalização do aborto seguem-se algumas notas propedêuticas sobre o assunto que possam de alguma forma clarificar o tema.


Começaria por dizer que existem várias ordens normativas na nossa sociedade.
Entre outras, podem-se indicar as seguintes:
as normas religiosas ( exemplo: o direito canónico proíbe os padres de se casarem);
as normas consuetudinárias (os usos e costumes de uma região ou de um grupo social);
as normas morais ( não matar, etc)
as normas jurídicas ( que são elaboradas, aprovadas e impostas pelos Estados)

Acontece que entre estas várias ordens normativas podem haver coincidências ou divergências.


Exemplo de divergências:
- os padres não podem casar-se segundo o direito canónico mas já podem fazê-lo segundo o ordem jurídica estatal ( direito civil);
-divorciar-se é proibido pela norma religiosa mas aceite actualmente pela norma civil estatal
- ludibriar os outros através da publicidade pode ser legal, na ordem jurídica, mas ser inaceitável na ordem moral.
- tratar e cuidar dos parentes doentes pode ser uma norma moral, mas já não ser uma norma jurídica

Exemplo de convergência:
- não matar é uma norma comum à ordem jurídica e à ordem moral
- drogar-se pode ser condenável pela norma civil e pela norma moral

Para a questão do aborto importa sobretudo as normas consuetudinárias (usos e costumes), as normas morais e as normas jurídicas.

Quanto às primeiras ( usos sociais) é objecto de conhecimento geral que o aborto ( o «desmancho» na linguagem popular) é algo de habitual ( fala-se de milhares de abortos anuais) , já de há muitíssimo tempo, tanto nas classes altas como nas baixas, e o seu número só terá vindo a diminuir com os métodos contraceptivos, a que nem todos conseguem ter fácil acesso.



Pelas normas morais, e segundo a moral ( os valores, os princípios orientadores das nossas condutas) partilhada por certas pessoas o valor da vida é um valor absoluto, logo por consequência, o aborto seria um acto moralmente censurável.
(curiosamente este enunciado nem sempre se verifica, uma vez que alguns defensores desta tese admitem a pena de morte e a morte como consequência da guerra)



Para outras pessoas, outras normas morais se impõem e são tanto ou mais valiosas que o valor da vida. Dou apenas três exemplos:
a) aquele que dá a vida na luta pela liberdade, está implicitamente a colocar ao mesmo nível o valor da liberdade e o da sua própria vida
b) aquele que se suicida, porque algo na sua vida o atingiu tão fortemente ( ter sido desonrado, ter sido apanhado a roubar, etc), fá-lo porque para ele é impossível continuar a viver ( um valor mais alto se sobrepõe ao da sua vida)
c) uma mulher que interrompe voluntariamente a sua gravidez fá-lo porque outros valores se sobrepõem e são determinantes da sua decisão



Estes exemplos mostram como cada indivíduo tem a sua moral ( a sua consciência moral), e como a moral varia de época para época ( antigamente certos actos eram moralmente condenáveis, e hoje não o são) e de sociedade para sociedade ( os juros podem ser moralmente censuráveis numa sociedade e não o ser noutra)



Estes exemplos mostram também como é muito «feio» alguém impor a sua moral aos outros através dos mais variados artifícios ( imposição coerciva, ameaça e intimidação, do tipo «faz isto senão...»), pois o que importa é a formação e a educação das pessoas segundo certos e determinados valores e princípios que livremente escolherem para si como orientadores dos seus comportamentos dentro de uma comunidade humana, valores e princípios esses que devem estar em sintonia com todo o historial e todos os avanços da Humanidade, por maior que seja a sua diversidade cultural.


Finalmente temos a ordem jurídica, isto é, as leis produzidas e impostas pelos Estados modernos, desde que se formaram a partir do século XVII. Estamos aqui ao nível da chamada política legislativa que se desdobra em muitíssimas áreas ( legislação comercial, legislação ambiental, legislação criminal, etc).


O aborto é um acto que tem sido criminalizado em Portugal até este momento.
(recorde-se já agora que há pouco anos atrás a infidelidade no casamento era considerado um crime, o mesmo se passava com os actos homossexuais, etc



A descriminalização ( ou, então, a manutenção da sua criminalização) do aborto é pois uma questão de política criminal estatal. Trata-se de saber se, segundo determinados critérios, a sua criminalização ou a sua descriminalização satisfaz os interesses que o Estado (no entedimento dos governos ou dos deputados) ou os cidadãos (através de um referendo) consideram relevantes.


E neste plano é sobejamente conhecido que em quase todos os países europeus ( com a excepção de Portugal, Irlanda, Malta) os respectivos Estados consideraram que era do interesse social ( saúde pública, não humilhação para as mulheres, respeito pela escolha da mulher, etc, etc) que o aborto fosse descriminalizado, pois que o aborto clandestino trazia mais prejuízos e danos à mulher e à sociedade, pelo que foi legalizada e admitida a realização do acto de interrupção voluntária de gravidez de forma a garantir boas condições sanitárias e outros bens considerados de interesse relevante


E é neste ponto que nos encontramos em Portugal: saber qual dos dois, o aborto clandestino ou o aborto legal (sujeito a determinados condições: até às 10 semanas), serve melhor os interesses sociais em jogo ( do Estado, da mulher, e da sociedade).

Trata-se pois de uma questão de política legislativa ( mais exactamente de política criminal).

Claro que me podem dizer que atrás das normas jurídicas esconde-se uma moral. Sim, é verdade!

Só que há dois tipos de moralidade:

A - aquela concepção moral que se quer impor aos outros, nem que seja recorrendo a meios coercivos ( prisão, multa, sanção criminal)

B- aquela concepção de moral que parte do princípio que cada indivíduo é um cidadão livre e responsável que é capaz de desenvolver uma consciência moral por si próprio, respeitadora da pluralidade de opções que cada qual faz perante os dilemas existenciais da sua vida, sem querer impor pela força ( isto é, pela lei criminal) uma determinada moral e determinados valores, deixando portanto às pessoas auto-determinarem-se em função da sua consciência moral.

Falta falar finalmente do referendo e saber até que ponto ele constitui um dispositivo idóneo em plena «democracia parlamentar e representativa» para auscultar e retratar a opinião da população. Mas aí entraremos no terreno da teoria política ...