20.6.06

A sexualidade e as classes sociais (in «A Revolução Sexual», de Daniel Guérin)


Transcrição do quarto capítulo do livro de Daniel Guérin, «Revolução Sexual, segundo Reich e Kinsey»(Essai sur la révolution sexuelle après Reich et Kinsey», no original),
editado pela Inova (1975)


Breve nota biográfica (retirada da contracapa do livro editado pela Inova):
Daniel Guérin nasce em 1904 de uma família burguesa. Aos 26 anos rompe com o seu meio de origem para se tornar militante revolucionário, e assim manter-se-á durante toda a sua vida. Daniel Guérin foi um autor multiforme: os seus escritos estendem-se desde a sociologia, história, teoria política, sexologia e até ficção.
Muitos das suas obras são hoje verdadeiros clássicos nas respectivas matérias.
Ideologicamente Daniel Guérin reivindica-se do chamado marxismo libertário, entre o anarquismo e o marxismo, e por isso mesmo, é um dos nomes mais citados pelos estudantes revoltosos em Maio de 68.
Muito antes de Maio de 68, Daniel Guérin já desmascarava o puritanismo e defendia a revolução sexual ao lado da revolução social, apoiando-se em Wilhelm Reich e Alfred Kinsey.
Para Daniel Guérin, a liberdade de cada um praticar o amor à sua maneira faz parte dos direitos do homem: confunde-se com a liberdade, simplesmente.

Nota prévia de advertência deste weblog:
os inquéritos sobre as práticas sexuais foram realizados por Kinsey nos Estados Unidos na década de 50, e os comentários de Guérin foram escritos no final da década de sessenta. Apesar de serem algo datados, a verdade é que estes dados ( e comentários subsequentes) são imprescindíveis caso se queira fazer uma análise histórica e sociológica acerca da sexualidade nas sociedades contemporâneas.




Kinsey, se bem que menos orientado para a sociologia do que para a biologia, consente no entanto em fazer uma incursão na primeira destas duas ciências quando enumera as diferenças de comportamento que lhe foi possível verificar em toda a escala social. Mas tais observâncias são limitadas pela sua repugnância ( bem americana) em admitir que existem classes sociais: apenas pretende conhecer «níveis de instrução» ou «categorias profissionais». Comete o deslize de se limitar a alinhar cifras e a traçar curvas sem demasiada preocupação em interpretar as variações registadas.

Para Kinsey, as diversas camadas sociais são todas elas inibidas sexualmente, obedecendo a «tabus» cuja origem remonta à moral judaico-cristã. Mas, segundo a sua opinião, tais tabus não são por elas observadas do mesmo modo. O que é «tabu» para as camadas ditas «superiores» é-o em menor grau para as classificadas de «inferiores».

Comecemos pelas interdições de que são vítimas as chamadas classes «superiores» e com as quais as «inferiores» se preocupam muito menos.

De um modo geral, a actividade sexual global das camadas «superiores» é bastante menor que a das camadas «inferiores». Kinsey dividiu a sociedade em 3 camadas e em função do seu nível de instrução, que ele cifra respectivamente: 0 a 8 ( instrução primária), 9 a 12 ( instrução secundária), 13 e mais ( instrução superior) e traça a curva da actividade global das 3 categorias, dos 10 aos 45 anos. Enquanto que as curvas das duas primeiras categorias coincidem até cerca dos dezassete anos ( ou seja, a idade em que cessa a instrução da 1ª categoria), elas afastam-se a seguir ligeiramente até cerca dos 40 anos. Os louros cabem aos que têm apenas a instrução primária. Quanto à curva da terceira categoria, ela diverge muito acentuadamente em comparação com as duas primeiras desde os 12 anos de idade com clara desvantagem da actividade sexual para as camadas «superiores», ainda que a distância diminua sensivelmente depois dos 30 anos de idade.

As camadas sociais ditas «superiores» são menos precoces que as classificadas de «inferiores». Três quartos dos rapazes que não ultrapassam a escola primária exercitam-se no coito pré-adolescente ( e muitas vezes vão mesmo até ao acto sexual consumado) contra apenas um quarto dos rapazes que vão frequentar o ensino secundário.

Nos adolescentes das camadas «inferiores» o coito pré-conjugal é absolutamente corrente e considerado como normal e mesmo saudável, enquanto que as camadas «superiores» estão mais impregnadas do conceito cristão que atribui a mais alta importância à virgindade antes do casamento, ainda que em maior grau no referente à mulher. 98% dos rapazes que não continuam os estudos após a escola primária praticam o coito antes do casamento, contra 84% dos rapazes de formação secundária e 67% dos que prosseguem os seus estudos na universidade.

A frequência das relações sexuais entre os 16 e os 20 anos eleva-se a uma média entre 2 e 4 vezes por semana nos rapazes que só têm a instrução básica, contra 1,5 para os que frequentam o secundário e 0,3 para os universitários.

Contrariamente aos das camadas «superiores», os homens pertencentes às camadas sociais inferiores não se preocupam com a escolha das suas companheiras, dado que possuem menos exigências estéticas a satisfazer e menos convencionalismos a respeitar. Pelo contrário, preferem prazeres positivos e que não os façam incorrer em obrigações sociais ou emocionais. Ainda entre os 16 e 20 anos, os rapazes das camadas «inferiores» ( ou com apenas escolaridade básica) têm relações sexuais com prostitutas 9 vezes mais frequentes que os que frequentam a universidade, enquanto os rapazes do nível «secundário» frequentam-nas mais de 4 vezes que os «universitários».

É sobretudo entre os «primários» e, em menor grau, entre os «secundários» que se encontra um gosto muito vivo pela variedade das companheiras sexuais.

Finalmente, os «universitários» são obrigados a contentar-se com prazeres imaginários em muito maior medida que os rapazes menos instruídos. O conceito de sexo evoca nele a masturbação, as poluções nocturnas, as carícias e uma avidez incessante de raparigas que só muito raramente aceitam copular com ele.

Nas mulheres, algumas destas diferenças são diametralmente opostas. Assim, por exemplo, apenas 30% das raparigas que têm «ensino primário» têm coitos pré-conjugais, contra 47% das que só frequentam até ao fim do «ensino secundário» e 60% das «universitárias». Claro está que estas estatísticas estão falseadas pela simples razão de que o casamento não tem lugar, nas 3 camadas ou categorias, na mesma idade de vida: as das camadas «inferiores» casam-se muito mais cedo, pelo que têm menos oportunidade de praticarem o coito pré-conjugal. Se restringir-mos a análise às mulheres que casam com a mesma idade, apercebemo-nos que a percentagem do coito pré-conjugal não varia demasiado em função do nível de escolaridade. Kinsey concluiu desse facto que os factores sociais influenciam mais o comportamento sexual dos homens que o das mulheres. E também neste aspecto ele abstém-se de levar as suas deduções até ao fim. Se os factores educacionais exercem menos influência sobre o comportamento das mulheres que sobre o dos homens, é, sem dúvida, porque todas as mulheres, sem distinção do nível de instrução, estão ainda, em larga medida, subjugadas pelo patriarcado e, portanto, inibidas por essa mesma razão.

No que se refere à homossexualidade, Kinsey faz uma constatação que confirma as suas afirmações precedentes quanto ao carácter natural desta conduta: ela é mais praticada pelos elementos que só têm a instrução básica do que pelos que possuem formação superiora, além de que aqueles, comparativamente a estes últimos, são muito raramente exclusivos.

Resumindo: sob muitos aspectos, as chamadas camadas «inferiores» são menos inibidas pelos tabus anti-sexuais que as camadas «superiores», e encontram-se muito mais próximas da natureza que as ditas «superiores»

Acontece que as camadas «inferiores» sofreriam, por seu lado, de certas inibições que atormentam em menor medida os membros das camadas «superiores».
Assim, por exemplo, aquelas não gostam de fazer durar o acto sexual durante tanto tempo como os das pretensas elites sociais, e isso talvez porque as suas capacidades imaginativas e emocionais são menos apuradas. Praticam, também, menos livremente os contactos bucais. Possuem ainda mais preconceitos perante a nudez ( tida como obscena) no momento das relações sexuais. Têm menos necessidade de estimulantes psicológicas (imagens eróticas, literatura «perversa»). Dedicam-se menos à masturbação e são mais reticentes quanto a ela.

Perante tais diferenças, Kinsey comete o erro de as atribuir pura e simplesmente a um maior respeito popular por certos tabus, quando também se podem explicar por uma maior conivência com a natureza, uma menor intervenção da actividade cerebral e das aquisições culturais na sexualidade das amplas massas.

É verdade, sem dúvida, que também o povo é prisioneiro de tabus, mas menos que as pretensas «elites» e somente na medida em que a religião ainda o subjuga. Mas os tabus não são tão rígidos, pelo que a sua sexualidade se mantém fundamentalmente «pagã». O povo, entregue a si próprio, pratica o amor também de uma maneira simples e espontânea.

Ou seja, a revolução sexual, tal como a revolução social, é, antes de tudo, obra do povo.