1.9.05

A liberdade e/ou libertação sexual



Facilitada pela contracepção, prescindindo do casamento, exibida às claras no espaço pública e tolerada em várias das suas variantes, a sexualidade não deixa de suscitar questões e interrogações acerca da real libertação sexual.


«À medida que enfraqueceu o peso da moral tradicional, com forte conotação religiosa, a liberdade sexual foi-se progressivamente afirmando como uma dimensão fundamental da autonomia individual e uma componente essencial do direito ao respeito da vida privada. A crise jurídica dos «bons costumes» fez sair do campo do direito penal um certo número de comportamentos doravante socialmente tolerados (adultério, homossexualidade, …), fazendo com que o direito penal só sancione os actos sem consentimento ( violação, assédio, …)», escrevem Daniel Borillo e Danièle Lochak na introdução de um livro sobre liberdade sexual.
Todavia a noção de consentimento não é simples senão na aparência. Há, bem entendido, os casos em que ela não se aplica, como o das crianças e das pessoas privadas de capacidade de avaliação Por altura dos escândalos judiciais, comportamentos outrora marginais, foram erigidas em modelos do que uma liberdade sexual tornada excessiva seria capaz de gerar - violações, incestos, sado-masoquismo – reclamando uma protecção acrescida das vítimas. Noutros casos, o consentimento dependerá da análise que se faça da situação. É, assim, que a liberdade dos indivíduos passou a ser alvo, desde os anos 80, pela crítica feminista relativamente à situação de autonomia desigual dos sexos: em que medida uma mulher, face à solicitação masculina, dá o seu consentimento? O delito de assédio, introduzido em 1992, visava compensar esta situação. A erotização dos media, a banalização da pornografia foram responsabilizadas por uma evolução inquietante da sexualidade dos jovens para com as violências sexuais, enquanto a prostituição levantava mais uma vez a questão da sua aceitação. Na falta de argumentos derivados da ideia dos «bons costumes», os seus adversários passaram a apelar para uma outra ideia que serve de base para os seus argumentos: a dignidade humana.
«A liberdade sexual não é uma liberdade como as outras», escreve D. Lochak: ela não é um direito do indivíduo, mas um aspecto da sua vida privada. Certos juristas não hesitam hoje a apontar o dedo às múltiplas intrusões da justiça, justificadas paradoxalmente pela modernização das normas sexuais. Os «bons costumes», uma vez postos de lado, levou ao direito contemporâneo a concentrar todos os seus esforços sobre o respeito do consentimento livre e outros princípios, como a dignidade da pessoa e a protecção das vítimas. A consequência é que a investigação dos abusos passa a intrometer-se na esfera da intimidade: os casos de processos por incesto, assédio, violação, abuso de menores entre parentes e amigos multiplicam-se e causam escândalo, originando a tese da decadência dos costumes. Mas qual é verdadeiramente a sua causa? O recuo da ética sexual ou será mais a intrusão do direito em domínios até ali não alcançados? É difícil responder.
Poder-se-á aceitar o que diz um jurista como D. Lochak para quem, paradoxalmente, a libertação dos costumes foi «a par com uma penalização cada vez mais espectacular dos comportamentos sexuais», dando lugar a um «enquadramento repressivo cujas malhas têm a tendência a apertar-se». Esta avaliação significará que a liberdade sexual atingiu os seus limites máximos sob a pressão de uma opinião pública inquieta e de um direito preocupado com as vítimas?

AMOR LIVRE OU DOMINAÇÃO MASCULINA ?

A paisagem das ideias é mais complexa que isso. Aonde podemos falar hoje de uma ideia como a da libertação sexual? O amor livre dos anos 70 parece não mobilizar as pessoas, em parte por causa da crítica feminista que eficazmente invocou a dominação masculina generalizada. Tendo como alvo a pornografia e a prostituição, que nunca gozaram de uma plena aceitação moral na população, a crítica feminista lançou a suspeita sobre a sexualidade como lugar em que se exercem as relações desiguais de poder, questionando portanto a autenticidade do consentimento. Mas nem todas as defensoras das mulheres seguem este diapasão: existe nos Estados Unidos, como na Europa, uma versão pró-sexo do feminismo que defende que é aceitável tanto o prazer como o dinheiro, e que é precisamente ao assumir este facto que permitirá às mulheres afirmar a sua autonomia. Este feminismo, representado em França por autores como Marcela Iacub ou Elizabeth Badinter, milita, por exemplo, por um reconhecimento e uma regulamentação da prostituição e, de uma maneira geral, para que a vitimização a priori das mulheres em matéria sexual não continue. Para além disso, o activismo dos movimentos gay e lésbico a favor de um reconhecimento da homossexualidade encarna hoje uma das formas mais visíveis de militantismo sexual. Se, como escreve Eric Fassin, « a heterossexualidade fica reduzida à dominação, então a libertação está do lado da homossexualidade».

Casamento: uma igualdade difícil

Em contrapartida, a igualdade coloca problemas, como bem mostra as resistências quanto à institucionalização dos casais monosexuais. Do casamento à família homossexual, passando pela adopção, já não é a sexualidade que está aqui em questão mas a identidade sexuada, isto é, a sua construção teórica. Podemos observar isso. quando em França se discutiu o casamento gay, e em que os antropólogos e os psicanalistas foram levados a defender a diferença dos sexos enquanto valor fundante da filiação ou da parentalidade. Em tais matérias nem o princípio do consentimento, nem o da dignidade humana, nem ainda a protecção dos mais fracos têm alguma pertinência. As normas sociais fazem do casamento uma instituição, por essência, heterossexual, sem que se saiba exactamente porquê. Um caso recente, relatado por E. Fassin, mostra-o claramente: um transsexual ( um homem que, mediante uma operação cirúrgica, adoptou traços femininos) e um transgénero ( um homem vestindo-se de mulher) apresentaram-se no Registo Civil e o seu pedido de casamento foi recusado, não obstante, a diferença dos sexos de ambos estar inscrita no estado civil, mas a sua aparência era a de duas mulheres, o que constituiu, aos olhos do responsável, uma provocação. Exemplos como este ilustram as perspectivas exploradas pelo teoria queer que se propõe mostrar até que ponto as identidades sexuais dos indivíduos são frágeis, uma vez que estão construídas sobre uma quantidade de factores independentes: biologia, aparência, práticas sexuais, papéis sexuais. Por exemplo: o que é um casal composto por um travesti e uma mulher: um heterossexual que se recalca associado a uma homossexual que se engana? Os jogos deliberados dos defensores da queer revelam uma liberdade que perturba não somente os usos sociais do sexo, como também toda a identidade sexual que daí resultaria. Daí que a sexualidade se torne, como explica E.Fassin, um «material» independente do género, eventualmente do casal, com todas as consequências que daí podem derivar. Assim, separada do resto, a sexualidade pode declarar-se livre, entregue à subversão das normas, elidindo a construção de novas.

Autor: Nicolas Journet
(texto publicado no nº 163 da revista Sciences Humaines, sob o título «La sexualité sous l’oeil de la critique»)

Bibliografia:
D. Borilio, D. Lochak (dir), La liberte sexuelle, PUF, 2005-08-09
M. Iacub, Qu’avez-vou fait de la libération sexuelle ? , Flammarion, 2002
C. Fabre, É Fassin, Liberté, égalité, sexualité, ed.Belfond, 2003
É.Fassin, «Trouble dans le mariage»,Liberation 15/6/2005